Saúde

HPV e câncer de ânus: o risco é grande até para quem não faz sexo anal

No Brasil, 52% dos rapazes e das moças entre 16 e 25 anos apresentaram o HPV em amostras colhidas no ânus

Por UOL/Viva Bem 18/12/2023 11h11 - Atualizado em 18/12/2023 11h11
HPV e câncer de ânus: o risco é grande até para quem não faz sexo anal
HPV e câncer de ânus: o risco é grande até para quem não faz sexo anal - Foto: iStock

Ninguém tem nada a ver com o que uma pessoa faz para dar prazer a si própria ou ao outro, ainda mais quando já tem maturidade para ser responsável pelo próprio corpo e pelo de quem está ao seu lado ( ou por cima ou embaixo). Ponto.

Mas, para quem perde tempo matutando sobre a vida íntima alheia, um esclarecimento: o diagnóstico de um câncer de ânus, um dos tumores malignos que mais crescem no mundo inteiro, não tem a ver com a prática sexo anal. E isso apesar de a doença ser desencadeada por aquele que é o maior causador de infecção sexualmente transmissível do planeta. Eu me refiro ao HPV, o papilomavírus humano.

Sinto acabar com velhas fantasias, mas esse vírus não precisa de tanto sexo — ou desse tipo de sexo — para chegar bem ali, se me entende. Melhor seria, portanto, se todos se preocupassem mais com o futuro dos jovens, já que, no Brasil, 52% dos rapazes e das moças entre 16 e 25 anos apresentaram o HPV em amostras colhidas no ânus. Aliás, esse vírus foi encontrado muito mais nas garotas — precisamente, em 63,2% delas — do que nos garotos. Entre eles, apenas 36,8% tinham o HPV na região anal. A anatomia ajuda a explicar essa diferença.

Maneiras e maneiras de contaminar
"Nas mulheres, a vagina fica relativamente próxima do ânus. Por ser tão perto, é fácil para o vírus que está em uma área contaminar a outra", nota a médica epidemiologista Eliana Wendland, do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

Ela dá um exemplo bastante corriqueiro: "A gente sempre ensina as meninas a, depois de usarem o banheiro, se limparem da frente para trás com o papel higiênico para não levarem, sem querer, micro-organismos presentes nas fezes para os genitais. Porém, quando fazem isso, que seria o mais certo, podem arrastar o HPV da vulva para o ânus".

m relação aos garotos, apesar de a distância anatômica ser maior para o HPV deslizar de um canto para o outro, por assim dizer, isso também é possível. Uma parcela pequena dos que apresentaram o vírus já tinham experimentado sexo anal. Lembre-se, também, que há outras possibilidades para eles, para elas (e para o HPV),como o uso de brinquedos, carícias... Ora, sexo nunca se resumiu à penetração.

De onde vêm esses dados

A doutora Eliana Wendland foi a coordenadora do POP Brasil. Esse estudo, liderado pelo hospital gaúcho onde ela trabalha, teve duas fases e envolveu inúmeros centros de saúde pelo país. A ideia de realizá-lo foi do próprio Ministério da Saúde, por meio do Proadi-SUS.

"Os poucos trabalhos eram pequenos, muitos deles avaliando apenas a população de alto risco, como homens que fazem sexo com homens e pessoas vivendo com o HIV", recorda a pediatra Ana Goretti Kalume Maranhão, que, sem dúvida, é um dos nomes mais respeitados quando o assunto é vacinação.Integrante do PNI (Programa Nacional de Imunizações), ela é responsável justamente pela vacina do HPV, sempre incansável nas batalhas para esclarecer pais e responsáveis e aumentar o número de adolescentes protegidos. Argumentos não lhe faltam. Agora, mais do que nunca.

Na fase 1 do POP-Brasil, entre 2015 e 2017, foram examinados 8.077 jovens. "O objetivo era determinar a taxa de infecção entre eles. Ora, só assim poderíamos saber qual seria o impacto da chegada da vacina, realizando uma nova avaliação depois", explica.

Já na segunda fase, realizada entre 2021 e este ano, 2023, foram 11.982 voluntários da mesma faixa etária, isto é, dos 16 e 25 anos. "Dessa vez, já conseguimos comparar vacinados e não vacinados", conta Eliana Wendland. O resultado revela o sucesso da imunização contra o HPV. Ao mesmo tempo, ao coletar amostras dos genitais, do ânus e da orofaringe — leia, da boca e da garganta — ,o POP Brasil 2 traz surpresas.

A prevalência do vírus na região anal é uma delas, como se viu na apresentação que a epidemiologista fez em um evento realizado no último dia 7 de dezembro no Inca (Instituto Nacional de Câncer), no Rio de Janeiro. Local mais emblemático para enquadrar o HPV, impossível.

O envolvimento com tumores

Há mais de 150 tipinhos de papilomavírus humano. Muitos provocam verrugas genitais que, embora estigmatizantes e com tratamento doloroso, não se tornam lesões malignas. Mas 13 deles, no mínimo, são acusados de desencadear cânceres. No Inca, o principal foco da discussão era o de colo uterino.

"Esse é um tumor que já deveria ter sido eliminado graças à vacina", opina Marlene de Oliveira, fundadora do Instituto Lado a Lado pela Vida, uma das instituições apoiadoras do encontro, que culminou com uma carta em que todos se comprometiam com a prevenção dos tumores em que o HPV está por trás.

É a doutora Ana Goretti quem resume o cenário: "O câncer de colo de útero é o quarto mais comum no mundo — o terceiro no nosso país, assim como é terceiro com maior mortalidade, levando a vida de mulheres em idade produtiva, que sustentavam suas famílias. Os tumores de vulva, por sua vez, representam 5% dos cânceres ginecológicos, enquanto os de pênis provocam cerca de 500 amputações desse órgão por ano. Já o câncer de orofaringe é o quinto mais frequente nos homens brasileiros e seus casos dobraram nos últimos anos."

"Esse é um tumor que já deveria ter sido eliminado graças à vacina", opina Marlene de Oliveira, fundadora do Instituto Lado a Lado pela Vida, uma das instituições apoiadoras do encontro, que culminou com uma carta em que todos se comprometiam com a prevenção dos tumores em que o HPV está por trás.

É a doutora Ana Goretti quem resume o cenário: "O câncer de colo de útero é o quarto mais comum no mundo — o terceiro no nosso país, assim como é terceiro com maior mortalidade, levando a vida de mulheres em idade produtiva, que sustentavam suas famílias. Os tumores de vulva, por sua vez, representam 5% dos cânceres ginecológicos, enquanto os de pênis provocam cerca de 500 amputações desse órgão por ano. Já o câncer de orofaringe é o quinto mais frequente nos homens brasileiros e seus casos dobraram nos últimos anos."

Em outro estudo, também liderado pelo Moinhos de Vento e coordenado pela epidemiologista Eliana Wendland, que comparou indivíduos com e sem diagnóstico desses tumores de cabeça e pescoço, a conclusão foi de que a presença do HPV é um fator mais importante para o surgimento da doença do que o fumo e o consumo excessivo de álcool, como se achava antes. E, quando há o vírus na jogada, o tumor é capaz de aparecer bem mais cedo, às vezes na faixa dos 20 e poucos anos.

"E, sim, temos ainda os tumores de ânus, com uma prevalência elevadíssima da população brasileira, especialmente nas mulheres", completa a doutora Ana Goretti.

Da infecção ao câncer
O POP Brasil 2 mostra que 42% dos jovens têm na região anal tipos de HPV considerados de alto risco para o câncer. Aqui, estamos falando principalmente de dois deles que, sozinhos, são responsáveis pela maioria dos casos — o 16 e o 18, contemplados na vacina disponível no SUS.

Atenção, ninguém está dizendo que todos os meninos e as meninas terão câncer de ânus, amanhã ou depois. "O organismo tende a se livrar do vírus, o que na Medicina chamamos de clearance", ensina a doutora Eliana. Popular, livramento.

Porém, em algumas pessoas isso não acontece. O vírus então fica ali, na mucosa, causando uma infecção persistente e sem sintomas. E é aí que mora o perigo. "Com o tempo, ela provoca modificações nas células, que acabam se tornando malignas", diz a médica.

O prazo para isso acontecer no caso do câncer de colo uterino é de aproximadamente sete anos após a infecção — "esse é uma espécie de número mágico nos estudos sobre a doença", conta a epidemiologista.

Os tumores de orofaringe podem levar um pouco mais de tempo. Quanto ao câncer anal, por ser menos estudado, ninguém sabe o período médio entre a infecção e o eventual surgimento da lesão maligna.

O sucesso e o insucesso da vacina
Ao se comparar os dados da primeira com os da segunda fase do POP Brasil, fica claro que a vacinação contra o HPV fez com que a proporção de pessoas com os tipos 16 e 18 ficasse cinco vezes menor. Ela caiu até entre aqueles que não foram vacinados, de 30% para 26%. "Há uma proteção de rebanho, uma vez que as pessoas imunizadas não passam o vírus adiante", diz a doutora Ana Goretti.

A vacina quadrivalente oferecida pelo SUS — que ainda protege contra dois HPV causadores de verrugas genitais — acabou diminuindo a prevalência dos tipos 45 e 52, que causam câncer, embora sejam mais raros. "Possivelmente, ela acaba treinando o sistema imunológico para responder a características que também são encontradas neles", pensa a doutora Eliana.

O fator de insucesso somos nós. Apesar de a vacina aguardar adolescentes de 9 a 14 anos em mais de 38 mil postos pelo país, eles não andam aparecendo para tomá-la. Cerca de 80% das meninas nessa idade receberam a primeira dose, mas apenas 50% completaram o esquema com uma segunda. "Com os meninos, é uma tragédia: 57% tomaram a primeira dose e pouco mais de 20%, a segunda", lamenta Ana Goretti.

Também podem — e devem — procurar pela vacina pessoas de 9 a 45 anos de idade que sofrerem abuso sexual ou que estão imunossuprimidas, como quem é transplantado, enfrenta um câncer ou, ainda, vive com o HIV. Mas, para ter uma ideia, só 10% dos indivíduos com HIV estão vacinados contra o papilomavírus humano — e, neles, o risco de a infecção deflagar um câncer é sempre maior.

Após o evento no Inca, o Instituto Lado a Lado pela Vida promoveu a iluminação do Cristo Redentor. Na cor roxa da campanha de combate ao HPV, inevitável imaginar que diria: "perdão, eles, que não buscam uma vacina contra o câncer, não sabem o que fazem."