Violência

O escuro por trás da luz: o conhecimento como arma contra a violência obstétrica

Cartilha do Ministério Público de Alagoas traz orientações para gestantes de como identificar e denunciar abusos durante atendimento

Por Pedro Acioli e Felipe Ferreira 28/01/2024 08h08 - Atualizado em 28/01/2024 09h09
O escuro por trás da luz: o conhecimento como arma contra a violência obstétrica
Estima-se que 1 a cada 4 mulheres são vítimas de violência obstétrica no Brasil - Foto: Arte: 7Segundos

“Quando olhei, vi que minha vagina estava um horror, totalmente deformada”. Essa é a lembrança de Fernanda* no momento mais importante da vida de quem sempre sonhou ser mãe. Forçada a fazer um parto normal de um bebê que pesava quase 5kg, teve desprendimento do útero, além de ter a vagina deformada. O caso descrito como “noite de terror”, espantou a própria equipe médica.

Fernanda foi vítima de violência obstétrica, situação pouco debatida, mas corriqueira em unidades de saúde. O ato realizado pelo médico ou pela equipe do hospital é caracterizado pela forma violenta, seja verbal, física, psicológica ou sexual em uma mulher que esteja gestante, em trabalho de parto, ou ainda no período puerpério.

A falta de conhecimento sobre o tema faz com que mulheres, apesar do desconforto no momento da violência, relativizem as práticas criminosas que estão perpetradas na rotina de boa parte dos profissionais de saúde.

Com Fernanda não foi diferente. O desconhecimento acerca desse tipo de violência fez com que ela normalizasse, de certa forma, os absurdos cometidos pela equipe médica durante a cirurgia. Além do parto normal, quando o mais recomendado seria uma cesárea, a vítima relata que esperou oito horas para ser atendida. Enquanto o único obstetra do hospital estava dormindo, ela perdia líquido amniótico na sala de espera.

Sem contrações, a gestante foi forçada a fazer o parto normal. Após 30 minutos de desgaste, seu corpo não aguentou, e ela apagou. “Senti que era uma máquina de hospital desligando. Nunca vou esquecer isso”.

O médico a fez tomar 13 injeções de ocitocina - para induzir as contrações - que provocaram efeitos colaterais, como consequência apareceram manchas roxas em seu corpo e perdeu o movimento das pernas. Sem conseguir ficar de pé, foi arrastada para a sala de parto, mais uma vez.

Próxima a dar a luz, ela não conseguia mais sentir o corpo e apagou novamente. De acordo com sua irmã, que estava presente na sala de parto, o médico agrediu seu rosto, com um tapa, na intenção de acordá-la.

Sem obter êxito, o profissional subiu em cima da barriga de Fernanda e tentou forçar a saída do bebê. A Manobra de Kristeller, como é conhecida, foi banida pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A técnica consiste em pressionar a parte superior do útero para acelerar a saída do bebê.

Diante de situações como estas e de repercussão nacional, como o da influenciadora Shantal Verdelho e também o do anestesista Giovanni Quintella, o Ministério Público de Alagoas decidiu criar o Projeto ‘Boa Hora’, com o objetivo de informar à população sobre esta forma de violência pouco falada.

É o que explica uma das responsáveis do projeto, a promotora Lídia Malta: “A disseminação de notícias ainda é tímida, e a gente verifica que existe uma enorme dificuldade das mulheres identificarem que foram vítimas de violência obstétrica."

Promotora Lídia Malta, idealizadora do projeto /Foto: Felipe Ferreira

Cartilha

De acordo com os idealizadores do projeto, a principal causa da violência obstétrica é a falta de informação. No país, muitas mulheres não sabem do que se trata e nem que podem adotar alguma medida a respeito dessa violência.

Pensando nisso, o Ministério Público de Alagoas lançou, no ano passado, uma cartilha para prevenção da violência obstétrica. O material tem a intenção de fornecer à população informações de maneira simples e didática acerca do conceito do tema.

Cartilha Boa Hora do Ministério Público de Alagoas (foto: Reprodução)

A cartilha conta com uma definição deste tipo de violência, casos e exemplos mais comuns, bem como, leis que garantem o direito das gestantes e quais órgãos se deve procurar para obter orientação. Confira ela completa clicando aqui. 

“O importante é que a mulher se dirija à maternidade ou atendimento de saúde, já sabendo quais são seus direitos”, explica a promotora.

Amplamente divulgada nos veículos de comunicação em seu lançamento, a cartilha deverá ser novamente difundida e divulgada.

Subnotificação de casos

De acordo com Lídia Malta, apesar da alta estimativa de que 25% das gestantes sejam vítimas de violência obstétrica no Brasil, na prática, os dados devem ser maiores, devido à subnotificação.

Durante uma visita in loco realizada por integrantes do projeto Boa Hora, a promotora pôde perceber o quanto a desinformação acerca do assunto pode causar essa situação em Alagoas.

Quando o grupo de trabalho esteve em Rio Largo, região Metropolitana de Maceió, durante uma roda de conversa, gestantes foram questionadas se já teriam sofrido violência obstétrica. Nenhuma levantou a mão. Quando o tema foi apresentado para elas e seus familiares reunidos, pouquíssimas que ali estavam, não expuseram histórias de violência obstétrica pela qual passaram.

Dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania mostram que Alagoas, em 2020, registrou apenas uma denúncia através do Disque 100. Nos últimos quatro anos, registrou 15. Número muito aquém da realidade.

Nacionalmente, 45% dos partos realizados no Sistema Único de Saúde (SUS), tiveram traços de violência obstétrica. Já na rede privada, o número caiu para 30%. Os números são da pesquisa mais ampla sobre o assunto realizada pela Fiocruz em 2012.

Cada estudo revela um número diferente por não haver denúncias institucionalizadas. As mulheres não denunciam por falta de conhecimento. O que ressalta a importância de programas como a cartilha educativa do Ministério Público para garantir o acesso à informação por parte das mulheres.

Em um comparativo nacional, o Nordeste é a segunda região do país que mais obteve registro de casos nos últimos quatro anos. Entre os nove estados, Alagoas é o quarto com maior número, atrás da Bahia, Ceará e Pernambuco.

Violência Obstétrica não é só agressão física


Além de procedimentos invasivos e agressões à integridade física da mulher, a violência obstétrica passa também por xingamentos e piadas jocosas à qualidade da gestante. “Na hora de fazer foi bom, mas agora você tá gritando” é uma das frases mais ouvidas por mulheres que estão sentindo contrações e dores profundas, inimagináveis por um homem, sendo o grito uma das poucas alternativas para aliviar a tensão.

Quando o médico pede para a mulher se calar, diante dos gritos de dores no processo do pré e durante o parto, é violência obstétrica. Ao deixar a mulher na mesma sala com outras que acabaram de realizar um processo abortivo, também é.

Frases mais ouvidas por mulheres durante o parto/ Arte: 7Segundos

O questionário sobre violência obstétrica disponibilizado no site do Ministério Público de Alagoas, revelou que as violações mais comuns foram: intervenções médicas sem o consentimento da gestante, como cesáreas desnecessárias e não indicadas; procedimentos invasivos; e xingamentos.

Consequências da violência obstétrica

Assim como Fernanda, Stefane* também foi vítima de violência obstétrica. Mãe de três crianças, Stefane em duas de suas gestações sofreu diferentes tipos de violência. Ela descreve como aterrorizante as experiências. Na primeira, teve atendimento hospitalar negado, apesar das dores intermináveis que vinha sentindo.

Na sua segunda gestação, decidiu retirar as trompas uterinas. Por pedido da médica, foi necessário o pai da criança ir junto em uma das consultas e autorizar o procedimento, apesar da Lei 14.443/2022, dispensar o consentimento do cônjuge para a autorizar a laqueadura em mulheres.

A médica alegou que muitos pais se arrependem em autorizar a laqueadura culminando em diversas separações. Mesmo com a insistência da médica em questioná-lo sobre o procedimento durante o parto, ele assinou a autorização.

“Me senti impotente, até porque eu escolhi ter aquela criança. E todas as decisões, tudo que aconteceu era para ter sido tratado comigo. Mas na hora que era para ser, não foi. Outras pessoas tiveram que decidir”, relata Stefane.

Após a segunda gestação, ela apresentou quadro de depressão pós-parto que acabou por afastar, por dois meses, mãe e filha. Stefane buscou ajuda psicológica para restabelecer sua relação com o bebê.

A psicóloga perinatal e parental, Christiane Cruz, explica que a violência obstétrica pode desencadear diversos transtornos: “Tem a depressão pós-parto, ansiedade mais generalizada, mas o impacto maior é o vínculo com o bebê e a relação da mãe com seu filho.”

Psicóloga Perinatal e Parental Christiane Cruz - CRP 15/4278 /Foto: Felipe Ferreira


A promotora Lídia Malta também adverte para as consequências: “São danos irreversíveis. Fala-se em violência obstétrica, desde a violência verbal até erros que podem ter sido intencionais ou não, mas que podem culminar na morte da criança, ou na morte da gestante. Então, estamos falando de uma progressividade que vai de 0 a 100.”

Para reduzir danos psicológicos, após ocorrer um caso de violência obstétrica, é pertinente um acompanhamento psicológico junto à gestante. Este visa levar a mulher a uma ressignificação do que ocorreu e assim não acabar em consequências para a relação com o bebê.

No entanto, Christiane alerta que o ideal é o acompanhamento psicológico anterior ao parto para prevenir os casos de violência obstétrica “A gente orienta e cuida dessa mulher antes. Para quando ela passar por uma situação como essa, ela vai entender que é uma situação que está rompendo os limites dela”.

Papel do apoio psicológico na fase pré-natal

Diferenças de traumas para as vítimas

Nem todas as mulheres que passaram por episódios de violência obstétrica vão, necessariamente, desenvolver alguma espécie de trauma psicológico. A psicóloga Christiane Cruz afirma que cada caso deve ser analisado separadamente. “As chances de ter traumas é grande, porque pode afetar a vinculação da mãe com o bebê. Ela [mãe] vai proteger demais o filho, ou acabar se distanciando do bebê”, aponta Christiane.

A psicóloga alerta que, caso a mãe já tenha predisposição, as chances de desenvolver um trauma pós-parto, também sendo vítima de violência obstétrica, é muito maior. Caso não tenha predisposição, o trauma pode acontecer devido a gravidade das violações que a vítima venha a sofrer.

Prevenção de casos

Para a médica obstetra Grace Monteiro, a cartilha do Ministério Público e outras práticas institucionais já impactam na diminuição de casos de violência obstétrica “Quando você dá informação a essas pacientes e aos profissionais de saúde todo mundo vai ser mais cuidadoso.”

Entretanto, para diminuir ainda mais os casos, a obstetra acredita que as equipes precisam de mais informações e capacitações: “A capacitação vai trazer informação, vai treinar esses profissionais tanto tecnicamente quanto de forma humanizada e mental para que cada participante desse momento entenda a responsabilidade com aquela mulher.”

Buscando prevenir que esse tipo de violência ocorra, o Ministério Público de Alagoas firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e com a Secretaria de Estado da Saúde (Sesau), sendo previsto em uma das cláusulas a capacitação de profissionais da saúde.

“Em uma capacitação vai ser ensinado o trato com a gestante para que os profissionais sejam mais empáticos e entendam a fragilidade daquele momento, a responsabilidade de estar se tratando de uma gestante e do momento mais importante da vida daquela mulher”, esclarece Grace.

Além do tratamento, a promotora Lídia Malta explica que a capacitação também vai ajudar na adoção de medidas cabíveis “O próprio profissional de saúde é quem, muitas vezes, está diante de um ato de violência e ele também pode e deve adotar as providências necessárias”.

Desafios e futuro do projeto Boa Hora


Lídia Malta aponta que a vulnerabilidade da mulher em relação à subnotificação dos casos de violência obstétrica é um dos maiores desafios enfrentados pelo projeto Boa Hora. “A mulher não apenas está ali numa situação de cansaço físico e mental, como também acredita que não haverá responsabilização daquelas pessoas que foram responsáveis por aquele ato. Fatalmente, ela acaba desistindo de relatar, não encontrando forças, apoio familiar ou assistência adequada”, diz a promotora.

Neste ano, o foco do Ministério Público será iniciar a coleta de informações e dados que serão fornecidos, através do TAC, pelas secretarias de saúde do município e do estado. Com essa coleta de dados, haverá uma avaliação da situação para adotar medidas necessárias a fim de melhorar os indicadores e a realidade.

Além disso, o órgão irá verificar as cláusulas de cumprimento do TAC, como fornecimento de informações à população, a disponibilização de dados e a verificação para que os dados sejam atualizados todo ano, para haver um comparativo.

Leis de apoio às gestantes


A Constituição Federal de 1988 tem por fundamento a dignidade da pessoa humana e garante a preservação de direitos individuais e sociais.

Com o objetivo de assegurar as garantias presentes na constituinte, a emenda à lei de número 174/2019, de autoria do deputado estadual Lelo Maia, e aprovada pela Assembleia Legislativa de Alagoas, estabelece medidas de proteção à gestante, à parturiente ou à puérpera.

As medidas vão da criação de uma semana no Calendário Oficial do Estado para divulgar informações sobre violência obstétrica, à garantia do direito da mulher em ter um acompanhante de sua preferência em todo o momento do parto.

O deputado Lelo Maia, que teve a atuação do Ministério Público através do projeto Boa Hora como um dos exemplos para a criação da emenda, contou que realizou uma Audiência Pública, antes de levar o projeto ao Plenário, para que a lei que fosse aprovada pudesse ser aplicável.

“Tive uma reunião com o sindicato dos médicos, com os obstetras e neonatologistas, com os enfermeiros, com os diretores de hospitais, com a sociedade civil, para que tanto a gestantes, as parturientes, como também a classe pudesse opinar para a gente ter uma legislação aplicável e também respeitando a medicina”, contou.

No âmbito municipal, a lei 7.207/2022, de autoria da vereadora Olívia Tenório, cria o “Maio Roxo” com o objetivo de alertar e debater sobre violência obstétrica, além de estabelecer diretrizes para o desenvolvimento de ações integradas, envolvendo a população civil e órgãos públicos junto à instituições privadas.

Apesar das leis citadas anteriormente, que priorizam a divulgação de informações sobre o tema, a psicóloga Christiane Cruz aponta para a falta de leis que punam pessoas que cometeram violência obstétrica.

“Ainda não temos uma lei que traga a punição de violência obstétrica, a gente ainda não tem ainda essa penalidade. Então, hoje falamos sobre o assunto, já tem o termo “violência obstétrica”, a gente já reconhece mas não tem uma punição específica. Estamos caminhando para isso”, ponderou.

Christiane lembra, ainda, que é permitido por lei, que a mulher tenha direito ao acompanhamento psicológico assim que decidir engravidar. “O profissional de psicologia vai trabalhar toda a psicoterapia da mulher nesse momento da vida, que é o momento de gestar, da gravidez. Então, ela vai trazer tudo incluído no pré-natal psicológico. Trazer tudo no sentido de preparar essa mulher, de amamentação, de parto”.

Acesso à justiça para as vítimas

Para acessar a justiça, as vítimas serão encaminhadas para os órgãos públicos dependendo do grau e do tipo de violência. Serão encaminhadas para a Defensoria Pública para adoção de medidas cabíveis na esfera criminal e na esfera cível.

Já para o Ministério Público, serão encaminhados os casos que se tratem de ação penal pública incondicionada, os casos que são excepcionais e que não precisam de manifestação da vítima. O órgão também pretende criar uma ouvidoria específica nos hospitais para esses casos de violência.

Já vítimas de violência obstétrica que denunciaram o caso em ouvidorias hospitalares e não obtiveram respostas, a orientação é que comuniquem o fato ao Ministério Público, bem como aos conselhos regionais de Medicina e de Enfermagem, para que seja possível a adoção de medidas cabíveis.

“Quando temos o domínio sobre a situação, até o tratamento muda”

Sem saber que nome dar a noite de terror vivida no hospital, Fernanda só descobriu que havia sofrido violência obstétrica quando voltou para casa e percebeu que sua vagina estava deformada. Assustada, procurou uma médica que disse, após os episódios relatados anteriormente, que ela havia sido mutilada. “Hoje eu tenho uma visão totalmente formada sobre o que passei”, revela.

Histórias como a de Fernanda reforçam a importância de projetos como o Boa Hora do Ministério Público de Alagoas, que garante o acesso à informações por parte das mulheres.

Fernanda aponta que ter informações garante que a mulher seja melhor atendida e reconhece a importância de iniciativas como a do Ministério Público. “Quando entendemos sobre qualquer assunto e somos apresentados à informações, podemos mostrar total amadurecimento sobre o tema, temos propriedade para confrontar, discordar, e impor nossa opinião também. E não ser enfiado um assunto 'goela abaixo' porque eles são superiores e sabem o que estão fazendo. Quando temos o domínio sobre a situação, até o tratamento muda”.

Como denunciar

É possível efetuar uma denúncia de violência obstétrica no mesmo hospital onde a vítima foi atendida, através da ouvidoria do hospital. Além dessa opção, pode-se denunciar o ato perante os Conselhos Regionais de Medicina (CRM) para médicos, e de Enfermagem, para enfermeiros ou técnicos de enfermagem.

As denúncias podem ser feitas, também, na Ouvidoria do Ministério Público, baixando o aplicativo ou pelo e-mail [email protected], na Defensoria ou na Delegacia da Mulher.

Existe ainda a possibilidade da denúncia ser realizada por meio de ligação, através dos números 180 (Central de Atendimento à Mulher), 136 (Disque Saúde) ou também pelo Whatsapp da Ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos (61) 99611-0100.

*Nomes alterados para preservar a identidade das vítimas