Aos 81 anos, João de Lima carrega o pesado título de um dos maiores repentistas do Brasil. O alagoano nascido em Porto Real do Colégio é também mestre do Patrimônio Vivo de Alagoas, cidadão honorário de Sergipe, autor de mais de 20 folhetos e 25 livros de poesias e repentes, além de uma extensa carreira fonográfica que inclui LPs, CDs e DVDs, mas, acima de tudo, é poesia pura.
E como ele é poesia, sua essência é subjetiva, imaginativa, por vezes difícil de explicar, embora muito simples de se compreender com o coração. João de Lima, com seu vocabulário corretíssimo, dicção preciosa e seu conhecimento de almanaque, é um imenso desafio para quem pretende escrever sobre ele de forma clara, concisa, simples e imparcial.
Bastou um pequeno mote [tema que os cantadores usam para desenvolver sua poesia], que na verdade era nada mais que um convite para uma entrevista, para que João de Lima, de sua forma poética, contasse sobre sua vida, suas andanças e seus versos.
Nascido em Porto Real do Colégio em 10 de maio de 1943 e batizado na igreja Senhor dos Pobres, no povoado Mumbaça, em Traipu. João Pereira Lima é filho de Damásio Crisóstomo Machado, que muito cedo adotou para si o nome artístico de Damásio Correia Lima, cantador e violeiro conhecido na região, e acabou deixando para trás o sobrenome de sua família e registrado os filhos com "Pereira", da esposa Ernestina Pereira, com o "Lima", que criou para si.
O menino João de Lima cresceu em um ambiente muito ligado à cultura rural. A rotina incluía o trabalho na roça durante o dia e assistir o próprio pai e outros cantadores à noite.
"A minha primeira viola eu comprei em Arapiraca, em uma loja de eletrônica musical. Quando fui comprar, vi um violão das costas pretas, a frente azul, boca de louça. Eu gostei muito e ele custava 13 mil, em nota de Pedro Álvares Cabral, mas eu tinha levado somente 6 mil. Então eu fui na Rua São Francisco e falei com minha prima, Emedina Calixto, e ela me emprestou os 7 mil que falavam .Comprei o violão e adaptei, usando cordas de viola. Esse violão me deu muita sorte. Toquei com ele em muitas fazendas e também foi com que que toquei a primeira vez na Rádio Difusora de Alagoas, no programa apresentado por Théo Brandão, o folclorista", conta.
Théo Brandão foi responsável por abrir as portas da carreira artística de João de Lima, que nos anos 1960 passou a tocar ao vivo também em outras emissoras da época, como a Palmares de Alagoas e a Progresso. Mas o sonho era ir além das ondas do rádio e cantar na televisão e se tornar conhecido em todo o Brasil. E ele conseguiu, começando pelo programa "Porque hoje é sábado", apresentado por Fernando Castelão e gravado no Teatro Parque, em Recife.
Anos depois, ao viajar para o Rio de Janeiro a convite do usineiro Evaldo Inojosa para cantar no município de Campos, passou a conhecer radialistas da região, como Antony Garotinho, de quem se tornou amigo pessoal. Com alguns discos gravados e poesias publicadas, bastaram alguns poucos passos para que ele conquistasse a fama que tanto sonhou.
João de Lima afirma, com orgulho, conhecer o Rio de Janeiro assim como conhece Maceió, e disse já ter tocado em todas emissoras de TV da capital fluminense. Fez participações no programa do Rolando Boldrim; sentou no trono do programa do Chacrinha; participou várias vezes do programa "O povo na TV", de Wilton Franco; foi apresentado por Cid Moreira no Jornal Nacional; e também por Sílvio Santos, no SBT, entre tantas outras aparições, sempre levando a poesia nordestina, fortemente inspirada em sua infância rural, que encantava a todos que a ouviam.
"Eu represento a verdadeira poesia, não canto pornografia ou imoralidade. Minhas poesias são limpas, podem ser ouvidas em qualquer igreja, escola, ou casa familiar", afirma. Mesmo considerado um dos maiores repentistas do Brasil, foge completamente do clichê da dicção arrastada e anasalada de muitos cantadores. "O sertanejo não fala assim. Mesmo que seja analfabeto, não fala com aquela linguagem horrível, usando uma tonalidade tão vulgar, tão pejorativa". Para ele, a poesia tem que ser bem-feita, usando palavras bonitas, escritas em português correto e com rimas:
DEUS CARREGOU PARA O CÉU, O NOSSO ZÉ DO ROJÃO
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Um grande amigo da gente
Locutor da voz sonora,
Deu adeus e foi embora
Pra um lugar florescente
Vendo Deus na sua frente
Pegado na sua mão
São Pedro abriu o portão
E lhe cobriu com um véu
Deus carregou para o Céu
O nosso Zé do Rojão.
Um locutor excelente
Da Rádio Novo Nordeste
Está na mansão Celeste
Muito distante da gente
Nós sentimos, ele sente
Bastante recordação,
Que a dor da separação
Fez chorar no mausoléu
Deus carregou para o Céu
O nosso Zé do Rojão.
Nosso amigo, gente nossa
Filho de trabalhador
Gente do interior
Criado perto da roça
Carro de boi e carroça
Chapéu de couro e gibão,
Os costumes do Sertão
Lhe deram muito troféu
Deus carregou para o Céu
O nosso Zé do Rojão.
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Com bastante nostalgia
Vejo a lágrima que desce
Que Zé do Rojão merece
A mais bela poesia
Não fiz porque não sabia
A melhor composição
Mas, canto a triste canção
Chorando igualmente um réu
Deus carregou para o Céu
O nosso Zé do Rojão.
Lá do Céu está olhando
Para a rua São Francisco
E, quem nunca tocou seu disco
Agora já está tocando
Eu só fico escutando
Prestando bem atenção
Que o Zé na gravação
Cantava igual um téu-téu
Deus carregou para o Céu
O nosso Zé do Rojão.
Foi amigo dos vaqueiros
Poetas-aboiadores
Amigo dos cantadores
Trovadores-violeiros
Dos boêmios-seresteiros
Que cantam com emoção
Se ver Dr. Théo Brandão
Dê lembrança ao Dr. Théo
Deus carregou para o Céu
O nosso Zé do Rojão.
Além do circuito Rio de Janeiro e São Paulo, João de Lima tocou em todas as regiões do Brasil, e com mais de 80 anos ainda consegue listar todos os palcos em que levou a sua poesia, mas um deles, em especial, o poeta relembra com carinho.
"Tive a honra de cantar na inauguração da TV Norte Fluminense, Canal 12, afiliada da Rede Globo e que pertencia ao deputado federal Alair Palmeira. Fui muito aplaudido pelo presidente João Figueiredo, pelo Roberto Marinho e por centenas de deputados, ministros e prefeitos que estavam na cerimônia. Foi o dia em que a minha estrela mais brilhou", relata.
Após ganhar o Brasil com seus repentes e sua poesia e fazer participações em showmícios - comícios em que artistas se apresentavam para o público - de políticos importantes nas décadas de 1980 e 1990, resolveu voltar para o Nordeste que tanto cantou e inspirou durante toda a sua vida e hoje se divide entre Maceió e Aracaju.
Em suas inúmeras andanças, João de Lima colecionou muitos amigos queridos, entre eles Zé do Rojão, a quem dedicou o cordel acima, e também o mestre Afrísio Acácio, falecido em 2021.
No último dia 09 de setembro, foi homenageado na Tenda Cultural Mestre Afrísio, em Arapiraca, e mostrou que a idade avançada não tirou a afinação da sua voz e nem da sua viola, como é possível assistir a seguir: