Desigualdade: como a história moldou o acesso à saúde no Brasil

Ausência de planejamento e coesão social permanece na sociedade contemporânea

Por Mackson Douglas |

O acesso universal aos serviços de saúde, garantido pela Constituição de 1988 por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), ainda está longe de se concretizar no Brasil. As desigualdades persistentes no setor têm raízes históricas profundas, que podem ser compreendidas a partir de uma análise histórica que remonta ao final do século XVIII, quando o país era uma colônia portuguesa.

Naquele período, a sociedade era altamente hierarquizada, com elites que mantinham uma visão negativa sobre o trabalho, como destaca Sérgio Buarque de Holanda no livro "Raízes do Brasil".

A influência da Igreja Católica e o controle da Inquisição contribuíram para uma estrutura social fragmentada, onde a noção de bem-estar coletivo era pouco desenvolvida. A chegada da família real portuguesa trouxe novas ideias sobre cidadania, mas a herança cultural ibérica — resultado das influências dos povos que habitaram a Península Ibérica, especialmente na Espanha e em Portugal — continuou a moldar a sociedade.

Essa falta de coesão social e a ausência de uma noção de bem-estar coletivo, perpetuaram-se ao longo dos séculos. Esse processo contribuiu para a reprodução de estruturas excludentes que ainda impactam a organização dos serviços públicos, incluindo a saúde, que até hoje enfrenta desigualdades na distribuição de recursos — uma herança de um passado marcado pela exclusão social e econômica.

A luta pela equidade no acesso à saúde no Brasil com a criação do SUS

O conceito de bem-estar social começou a ganhar destaque no mundo entre o final do século XIX e no início do século XX. Nesse contexto, o papel do Estado e dos hospitais mudou, passando de locais de exclusão para centros de assistência, marcando a saúde enquanto um direito universal e promovendo reformas sanitárias globalmente.

No Brasil, a Reforma Sanitária dos anos 1970 consolidou a assistência à saúde como um serviço público, estabelecendo a responsabilidade do Estado em garantir esse cuidado e levando os hospitais a adotar novas normas organizacionais.

O surgimento do SUS ocorreu em 19 de setembro de 1990, por meio da promulgação (instrumento que declara a existência da lei e ordena sua execução) da Lei Orgânica da Saúde, que revolucionou o cenário social no Brasil ao consagrar a saúde como um direito da população brasileira e uma responsabilidade do Estado.

Equidade é dar o que cada um necessita para que todos tenham as mesmas oportunidades. Foto: Charge de autoria desconhecida

A legislação brasileira estabeleceu princípios como universalidade, integralidade e equidade, além de promover a descentralização e a regionalização, com o objetivo de atender às necessidades de saúde dos brasileiros. No entanto, a desigualdade no acesso continua a ser um desafio, já que a distribuição de recursos de saúde não leva em conta as particularidades e as necessidades específicas de cada localidade.

Essa situação resulta em uma universalização excludente, marcada por longos períodos de espera para atendimento e pela localização inadequada dos serviços, fazendo com que muitos optem por planos privados. Dessa forma, o SUS ainda enfrenta desafios para cumprir sua missão de assegurar um acesso equitativo aos serviços, perpetuando a desigualdade no acesso à saúde de qualidade.

Reflexo das diferenças sociais na saúde pública em Alagoas

  • Segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde, sete em cada dez brasileiros — mais de 150 milhões de pessoas — dependem exclusivamente do SUS para seus tratamentos de saúde, mas nem sempre conseguem a assistência necessária de forma imediata.

    Em dezembro de 2023, um levantamento da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) revelou que o setor de saúde privado alcançou 51.081.018 usuários, sendo a primeira vez que esse segmento ultrapassou a marca de 51 milhões. Além disso, os planos odontológicos contabilizaram 32.668.175 beneficiários.

    Ao trazer esse contexto para Alagoas, percebe-se que o Estado reflete as desigualdades históricas que marcam o Brasil, especialmente em relação ao acesso à saúde. Com uma das menores rendas per capita do país e altos índices de pobreza, Alagoas enfrenta sérios desafios em sua infraestrutura de saúde.

  • A demanda por atendimento na rede pública é muito maior do que no setor privado, o que reflete as limitações do sistema. Segundo a biomédica Camila Mascarenhas, de 32 anos, essa diferença é intensificada pela burocracia excessiva que dificulta o acesso aos serviços, resultando em longas esperas para consultas e exames, comprometendo a saúde de quem precisa de cuidados urgentes.

    Camila ressalta que a rede pública tem um padrão reduzido de funcionários em comparação aos hospitais particulares, que contam com equipes maiores e mais especializadas. Além disso, nas unidades privadas, há uma variedade mais ampla de exames e acesso a tecnologia avançada, permitindo diagnósticos mais rápidos e precisos. Em contrapartida, a rede pública enfrenta limitações em recursos e infraestrutura.

    De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde (Sesau), Alagoas recebeu investimento de R$ 529 milhões para fortalecer o atendimento nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) em 2024, o setor ainda não se compara ao privado, pois os recursos, embora significativos, são insuficientes para a alta demanda e, segundo a biomédica, as unidades privadas, com orçamentos maiores, conseguem oferecer serviços mais rápidos e eficazes.


Pai acusa hospital de negligência médica após morte de filho; veja vídeo

Comunidades rurais e periféricas de Alagoas vivenciam uma vulnerabilidade maior em relação à precariedade no acesso à saúde. Isso impacta, sobretudo, na qualidade do serviço e resulta em desfechos negativos.

Em uma denúncia publicada pelo portal 7Segundos, no dia 28 de junho de 2024, foi noticiada a trágica morte de um bebê, que pode ter sido consequência de possíveis falhas no atendimento ou nos cuidados médicos no Hospital Regional do Alto Sertão (HRAS), em Delmiro Gouveia, município sertanejo de Alagoas.

O caso gerou grande comoção e indignação entre os moradores da região, levantando questionamentos sobre a qualidade do atendimento prestado pela unidade de saúde. A criança estava internada desde o dia 23 de junho, e o pai acusa o hospital de negligência médica.

Veja o vídeo abaixo:

À época, a Secretaria de Estado de Saúde (Sesau) informou que, 48 horas após o nascimento, o bebê começou a apresentar sinais de instabilidade. Uma vaga em uma unidade especializada na capital foi providenciada; porém, devido a uma piora súbita no estado de saúde, a criança não resistiu e faleceu antes que a transferência pudesse ser realizada.

Diante de toda a dor e incerteza que envolvem o ocorrido, fica a pergunta: se o bebê tivesse sido levado a uma unidade particular, onde os recursos são mais acessíveis e as transferências mais ágeis, o desfecho teria sido o mesmo?

A luta de uma gestante por um pré-natal adequado

Valquiria Ferreira, de 25 anos, trabalha como copeira e está no quinto mês de gravidez. Ela decidiu deixar de utilizar o SUS, em Maceió, devido às dificuldades no atendimento e longas filas. Em busca de mais agilidade e conforto nos cuidados à saúde, optou por um plano privado, mas a sua situação financeira a impede de dar esse passo até o fim da gestação, deixando-a com um misto de esperança e frustração.

Após enfrentar longas filas e a falta de empatia no SUS, Valquiria decidiu contratar um plano de saúde. Foto: Arquivo pessoal

“A demora para a marcação de exames e o retorno dos resultados foi bastante frustrante, principalmente no pré-natal, onde o acompanhamento é crucial. Foram quase dois meses de espera e isso me gerou insegurança. Por isso, veio a decisão de optar por um plano de saúde, visto que a agilidade nos atendimentos pode fazer uma grande diferença. No entanto, a questão financeira é um obstáculo”, disse.

Valquiria relatou que, durante o atendimento no setor público, percebeu que havia um padrão automático entre os profissionais, como se ninguém realmente compreendesse as necessidades dela.

“As respostas das minhas perguntas eram genéricas e os profissionais não levavam em conta a minha realidade. Senti que não tinha a oportunidade de compartilhar minhas preocupações. Isso me deixou frustrada, pois esperava um atendimento mais empático e personalizado. Não me senti ouvida, e isso afetou minha confiança no processo”, contou.

Além da demora para conseguir realizar uma simples ultrassom, ela afirma que fez duas ultrassonografias pelo SUS e nenhum dos médicos a comunicaram que o bebê tem oligodramnia severa (volume de líquido amniótico abaixo do esperado para a idade gestacional). Ela só descobriu depois que realizou o mesmo atendimento no setor privado.

“A descoberta foi um momento preocupante, por isso decidi que não vou mais esperar pelo setor público. A longa espera para agendar a ultrassom me deixou ansiosa. Eu percebi que, se tivesse aguardado mais tempo, poderia ter demorado ainda mais para descobrir a situação atual da minha gestação”, finalizou.

As experiências apresentadas nesta reportagem expõem problemas maiores: as diferenças regionais e a falta de investimentos no SUS que intensificam a desigualdade no acesso à saúde. A escassez de recursos e a demora nos serviços públicos podem trazer riscos. Assim, é fundamental que as políticas de saúde levem em conta as particularidades locais, garantindo que todos tenham acesso efetivo e equitativo aos serviços de saúde.

A análise histórica nos ajuda a explicar por que as desigualdades na saúde pública brasileira têm raízes em uma estrutura elitista e excludente, onde a preocupação com o bem-estar da população era mínima, enquanto os interesses das elites prevaleciam — e continuam prevalecendo, como podemos perceber nas histórias ora apresentadas.