
No Conjunto Frei Damião, o silêncio das ruas esconde uma rotina de tensão que parece nunca ter hora para acabar. Mais conhecido como Valentim, o residencial localizado no bairro Canafístula, berço cultural de Arapiraca, é presença quase diária nos relatórios de ocorrências do 3 Batalhão de Polícia Militar (3º BPM). A presença diária de guarnições pela localidade não é novidade: é necessidade. É onde o tráfico de drogas encontrou terreno fértil para crescer, e onde operações policiais são tão constantes quanto a esperança de quem por ali mora.
A violência e a criminalidade, longe de serem fenômenos aleatórios, possuem endereço fixo nas cidades brasileiras. Em Arapiraca, o cenário não é diferente. A mancha criminal, alimentada por décadas de ausência do Estado e da desestruturação social, tem cor, classe e CEP. Conjuntos habitacionais como Brisa do Lago, Vale da Perucaba e Residencial Agreste compartilham da mesma arquitetura popular: a vulnerabilidade social.
Mais do que mapas do crime, esses territórios são reflexos de escolhas políticas — ou da falta delas. E, enquanto a segurança é discutida em salas climatizadas do centro da cidade, nas periferias ela é uma palavra que ainda não encontrou significado prático.

A DESIGUALDADE QUE ARMA OS CONFLITOS
O mestre em Políticas Públicas pelo Insper, João Ricardo Ribas de Morais, explica que o Brasil adotou historicamente uma lógica de urbanização segregadora, que empurrou os mais pobres para as margens e criou guetos da desigualdade. “O modelo de produção habitacional estatal baseado em grandes conjuntos isolados do tecido urbano intensifica a vulnerabilidade desses espaços”, afirma.
Esse modelo, ainda em vigor, é especialmente visível em cidades de médio porte, como Arapiraca, onde conjuntos habitacionais surgiram em áreas distantes dos centros comerciais, muitas vezes sem estrutura adequada de transporte, lazer, saúde e segurança. A ausência de serviços públicos abre espaço para a presença de facções, que ocupam esse vazio com suas próprias regras e punições. “O Estado ausente é substituído pelo poder paralelo”, alerta Morais em sua dissertação de mestrado.
Os dados analisados na pesquisa indicam que a sensação de insegurança nesses bairros não é apenas subjetiva: é estatística. Onde há pobreza extrema, há maior incidência de homicídios, roubos, furtos e tráfico de drogas. Em resumo, a política pública que deveria promover dignidade termina por potencializar o ciclo da violência.

QUANDO A HISTÓRIA SE REPETE: DUAS FACES DE UMA MESMA CIDADE
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HERANÇA DE UM PAÍS DESIGUAL
O professor arapiraquense Saulo Oliveira, especialista em violência e conflitos de terra, destaca que a origem dessa lógica excludente está nas raízes do próprio Brasil, onde o acesso à terra e à moradia sempre foi privilégio de poucos. Ao longo da história, a população foi empurrada para as margens, não apenas geográficas, mas também sociais.
Para ele, os conjuntos habitacionais de interesse social refletem uma falha estrutural na garantia do direito à cidade. A ausência de escolas, transporte público eficiente e espaços de lazer nesses bairros contribui para a formação de ambientes vulneráveis à violência e à ação do crime organizado. -
CRESCIMENTO DESENFREADO
Em Arapiraca, o crescimento urbano acelerado nas últimas décadas não foi acompanhado de uma política de inclusão urbana. E isso não é culpa exclusiva de gestões administrativas. Os residenciais seguem um padrão repetido: construídos distantes do centro e carentes de serviços públicos, tornam-se territórios marcados pela exclusão e pela violência.
Segundo Saulo Oliveira, o problema da segurança pública não pode ser discutido apenas do ponto de vista operacional. Ele aponta: “Na maioria das vezes, ficamos presos a uma discussão meramente administrativa e operacional — fala-se em efetivo, estrutura, viatura. Isso garante alguma ordem social, mas desgasta o policial, tensiona a comunidade e não resolve o conflito, que permanece ativo e caro para o Estado”.
O professor defende que o debate seja mais amplo, com abordagem estratégica e integrada. “É preciso uma discussão estratégica, sociológica, antropológica e historiográfica. Quando colocamos uma perspectiva comunitária na pauta, o debate ganha outro rumo. Não é coincidência que as comunidades mais violentas também sejam as mais pobres, mais desempregadas e com menor acesso à saúde e educação.”
O QUE PODE SER FEITO?
Segundo o 3º BPM, o Conjunto Frei Damião aparece entre os locais com maior incidência de ocorrências relacionadas ao tráfico de entorpecentes, seguido de outros conjuntos como o Brisa do Lago, onde também há registros frequentes de crimes violentos, incluindo homicídios. As estatísticas, embora alarmantes, não dão conta de revelar o cotidiano de tensão e medo vivenciado por moradores que, muitas vezes, evitam sair de casa à noite.
É o caso da dona de casa Maria de Lourdes*, que é costureira e mora há mais de 20 anos na comunidade. Segundo ela, é comum acordar com barulho na rua e sons de viaturas policiais. "A gente acaba se acostumando com a presença da polícia e da criminalidade. Todo dia alguém é preso. Todo dia acham drogas. Todo dia!", relatou ela.
Na avaliação do professor Saulo Oliveira, esses dados não são resultado do acaso, mas da ausência de uma presença qualificada do Estado. “Nada adianta criar equipamentos públicos se eles forem aparelhados por facções. Não podemos cair no romantismo de achar que a simples presença do Estado é suficiente, se essa presença for frágil ou capturada pelo crime.”
Em todos esses bairros, as operações policiais se intensificam, mas a presença do Estado continua limitada à repressão. Moradores, agentes de saúde e lideranças comunitárias relatam que a insegurança não será superada apenas com armamento e viaturas. É preciso presença permanente, política social estruturante, escolas que funcionem, unidades de saúde que acolham, praças que convidem ao convívio.
O professor Saulo Oliveira também alerta para a limitação das ações repressivas. “É ingenuidade acreditar que combater o tráfico apenas no plano local vai desmantelar uma rede que é nacional e até internacional, com esquemas de lavagem de dinheiro e corrupção de agentes públicos.”
Para ele, é essencial abandonar as soluções simplistas e apostar em políticas de longo prazo. “Nenhuma saída será simples ou rápida. Esse discurso de promessas fáceis é populista. Precisamos criar uma política integrada entre todos os níveis da República — difícil de imaginar no atual cenário político, mas necessária.”
A proposta passa por ações que conectem segurança, assistência social, educação, saúde e geração de emprego, tudo isso baseado em dados compartilhados e presença constante e eficiente do Estado. “É preciso criar um ecossistema de cuidado e desenvolvimento social que compartilhe dados, atue em rede e tenha continuidade. Tudo fora disso é paliativo e de tolerância ao colapso."
Ainda segundo o arapiraquense, quando o assunto é segurança pública, armas e fardas não são a única solução. "É preciso focar em justiça social e cidadania", finalizou.