Reclusão, nota baixa e distúrbios: como o racismo afeta o desenvolvimento escolar de crianças entre zero e seis anos

Pesquisa revela que uma em cada seis crianças nessa faixa etária foram alvo de discriminação racial em creches e pré-escolas

Por Felipe Ferreira |

“Negrinha amostrada. Você não sabe o seu lugar”. Essa foi a frase que Maria*, mulher negra de pele retinta, ouviu nos primeiros anos de sua vida enquanto estava na escola. O episódio racista vivenciado por ela ainda foi marcado pela falta de ação por parte da unidade escolar que frequentava no início dos anos 2000.

Hoje com 28 anos, Maria conta que ainda lembra o nome da criança responsável por seu primeiro ataque racista. Sem reação, a pequena Maria não contou o que tinha acontecido na escola.

“Quando eu tinha 5 anos tinha uma menina que me odiava no colégio e disse para todo mundo que não era bom conviver comigo. Lembro o nome dela até hoje. Ela simplesmente achou que era de bom tom me excluir e não tipo: ‘Vou brigar com ela’. Foi me ignorar mesmo e fazer as outras pessoas não falarem mais comigo”, disse Maria.

Apesar do sentimento de exclusão, Maria não contou a nenhum adulto o que tinha acontecido entre ela e suas colegas. “Eu não quis contar. Eu não sabia o que era. Então, a primeira vez eu não contei. Mais velha, quando eu tinha 7 anos, porque as palavras foram ditas, aí eu contei”.

Maria se refere a vez em que foi chamada, por colegas da escola, de negrinha amostrada. Na época, a pequena Maria fazia alguns trabalhos como modelo e achou que a reação das outras crianças fosse por ela ser exibida.

“Eu aparecia na TV e isso deixou as coisas mais esquisitas. Eu achava que as pessoas só me achavam amostrada, não gostavam de mim por isso. Um dia me falaram que uma menina fez uma carta e todo mundo se juntou para falar que eu era uma negrinha amostrada e que não sabia o meu lugar”, disse.

A pequena Maria não viu a carta e foi correndo para a diretoria da escola contar o que tinha acontecido. Após ouvir o relato, a diretora não teve reação.

“Contei que as meninas tinham se juntado para falar de mim, mas eu não usei a palavra racismo. Eu sabia que era por causa da minha cor, mas eu não tinha entendimento do que era racismo. O colégio não soube o que fazer. Meus pais não souberam o que fazer”, lembra.

A experiência de Maria não é isolada. Uma em cada seis crianças, entre zero e seis anos, foi vítima de racismo no Brasil. Creches e pré-escolas são os locais onde ocorrem a maior parte desses crimes.

Os dados são do Panorama da Primeira Infância: o impacto do racismo, pesquisa nacional encomendada ao Datafolha pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal - organização da sociedade civil que trabalha pela causa da primeira infância -, divulgada na última segunda-feira (6).

A pesquisa ouviu 2.206 pessoas, sendo 822 responsáveis pelo cuidado de bebês e crianças de zero a seis anos. Os dados foram coletados em abril de 2025.

O ambiente barulhento e movimentado de creches e pré-escolas foi citado por 54% dos entrevistados como o principal local onde os crimes aconteceram.

Para a psicopedagoga e neuropsicóloga Patrícia Dantas, quando o racismo é vivenciado sem acolhimento, sobretudo na primeira infância, a vítima pode desenvolver um quadro de estresse tóxico.

“O racismo, especialmente quando vivido de forma repetida e sem acolhimento, é uma fonte real de estresse tóxico. Em crianças da primeira infância, ele pode se manifestar através de retraimento, medo de se expressar ou de frequentar determinados espaços; regressões comportamentais (voltar a fazer xixi na roupa, chupar o dedo, recusar-se a ir à escola); distúrbios do sono e da alimentação; agressividade, irritabilidade ou choro fácil; dificuldade de concentração e de aprendizagem; e confusão sobre a própria aparência (como querer ter outro cabelo ou ser de outra cor)”, avalia.

Patrícia Dantas é psicóloga, psicopedagoga e neuropsicóloga [CRP 15/2285] (Foto: acervo pessoal)



A falta de uma diálogo claro sobre racismo em ambiente escolar, como aconteceu com Maria, pode refletir diretamente no desempenho escolar da vítima.

“Quando a escola silencia ou minimiza um caso de racismo, ela reforça o sofrimento da vítima e naturaliza a violência. Essa omissão pode gerar bloqueios de aprendizagem; recusa escolar; isolamento social e desconfiança dos colegas e dos adultos; sintomas de ansiedade, tristeza e desmotivação”, diz a psicopedagoga.

Como a escola deve agir

Através de um profissional qualificado, a escola deve, em primeiro lugar, escutar a denúncia da vítima reforçando sua falta de culpa no ocorrido. Com os pais tanto da vítima quanto da criança agressora, Patrícia Dantas recomenda o cultivo de uma cultura racial e reeducação.

“Com os pais da criança que sofreu racismo, o diálogo deve ser de acolhimento e fortalecimento reconhecendo a gravidade do fato e pedir desculpas institucionais; pode explicar quais medidas foram tomadas para proteger a criança e orientar os pais sobre como reforçar em casa o orgulho racial, o amor pelo próprio corpo, cabelo e história;

Com a família da criança que praticou o ato, é importante uma conversa firme e educativa — sem culpabilizar, mas convidando à reflexão sobre os impactos do comportamento.

O objetivo é educar, não expor. Muitas vezes o racismo é aprendido dentro da própria casa, e esse também é um espaço que precisa ser transformado”, afirmou.

Educação antirracista é urgente

  • O caminho ideal para combater o racismo dentro das salas de aula ainda é a educação. Mais especificamente uma educação antirracista. A psicopedagoga Patrícia Dantas aponta os caminhos que devem ser adotados pelas escolas a fim de garantir a segurança de todas as crianças que frequentam o local.

    “A presença de materiais diversos comunica à criança que ela pertence a uma sociedade miscigenada, onde é vista e valorizada. Uma escola que se propõe a ser antirracista precisa investir em livros infantis com representatividade negra, bonecas com diferentes tons de pele e texturas de cabelo, painéis visuais e materiais didáticos diversos, com imagens que mostram pessoas negras em papéis de destaque e em situações cotidianas, além de materiais formativos para professores e equipe técnica sobre letramento racial, empatia e equidade”, disse.

  • Vale lembrar que, segundo a Legislação brasileira, o ensino de história e cultura afro-brasileira em todas as instituições de ensino fundamental e médio, públicas e particulares no país, é obrigatório.

    As instituições precisam, para seguir a lógica da educação antirracista, elaborar um planejamento pedagógico que contemple a história dos povos africanos e de sua vinda para o Brasil durante todo o ano letivo, não apenas em datas comemorativas.

Alagoas sem racismo

O governo de Alagoas, através da Secretária de Estado dos Direitos Humanos, está desenvolvendo o Programa Alagoas Sem Racismo. A medida, segundo a superintendente da Igualdade Racial de Alagoas, Manuela Lourenço, reunirá metas e diretrizes para enfrentar o racismo com atenção à Primeira Infância.

“Estamos implementando o Programa Alagoas sem Racismo, que reúne as principais ações governamentais de enfrentamento ao racismo e promoção da igualdade racial. A Superintendência de Igualdade Racial atua na coordenação técnica e na articulação com outros órgãos do governo para garantir a execução integrada das políticas. O programa abrange e organiza iniciativas já existentes, como o Protocolo de Atendimento às Situações de Racismo da Seduc, formações de profissionais da rede pública e o acolhimento de denúncias em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos. Dentro dessa estrutura, está sendo consolidado o Plano Estadual de Enfrentamento ao Racismo, em diálogo com o CONEPIR, que reunirá metas e diretrizes de médio e longo prazo, com atenção à Primeira Infância”, informou a superintendente.

Manuela Lourenço é superintendente de Igualdade Racial do Estado de Alagoas (Foto: acervo pessoal)



Manuela conta, ainda, que a Superintendência que comanda fiscaliza se as escolas da rede pública possuem um efetivo protocolo contra o racismo e se as denúncias são devidamente encaminhadas para os órgãos competentes, mas revela que no setor privado não há tanta supervisão.

“Atuamos principalmente sobre as escolas da rede pública estadual, acompanhando a implementação do Protocolo de Atendimento às Situações de Racismo da SEDUC. (...) Embora não haja supervisão direta sobre instituições privadas, a Superintendência mantém canais de orientação e encaminhamento, oferecendo informações sobre como registrar denúncias e buscar proteção junto à rede pública e aos órgãos competentes”, disse.

Maceió não tem protocolo antirracista

A Secretaria Municipal de Educação (Semed) não possui um sistema com registros de denúncias de racismo que aconteceram em suas unidades. O diretor especializado de Gestão Pedagógica da pasta, Ademir Oliveira, explica que a Semed espera um modelo elaborado pelo governo federal para que o Município desenvolva um protocolo próprio de atuação contra o racismo.

“Temos ciência que há casos de racismo em ambiente escolar, porém sem registro sistemático. (...) A Semed ainda não possui um protocolo formal e obrigatório no que tange às situações de racismo. Estamos no aguardo dos modelos que serão enviados ainda neste último trimestre pela Secadi/MEC e servirão como base para a construção do nosso protocolo em nível municipal”, informou.


                      Ademir Oliveira é diretor especializado de Gestão Pedagógica da Semed  (Foto: acervo pessoal)


Ainda sem um protocolo que possa orientar como os profissionais devem lidar diante dos casos de racismo que ocorrem nas escolas, Ademir Oliveira diz que a família das vítimas são informadas sobre o ocorrido e que há diálogo, quando necessário.

“Qualquer situação de violência, neste caso o racismo, as equipes gestoras e pedagógicas entram em contato diretamente com a famílias no intuito de dialogar e encaminhar junto às coordenações e diretoria de gestão pedagógica da SEMED os devidos encaminhamentos. O suporte pedagógico e a intervenção junto às unidades escolares é realizado prontamente junto ao corpo docente e escolar, e a Coordenação de Educação Socioemocional contribui em diálogos e mediações, quando necessário”, disse.

Racismo é crime


Desde 1989 cometer racismo no Brasil pode levar o autor para a cadeia. Segundo a Lei nº 7.716/1989 racismo é crime inafiançável e imprescritível.

Em 2023, o presidente Lula (PT) sancionou a Lei nº 14.532 que aumenta a pena para injúria relacionada à raça, cor, etnia ou procedência nacional. Com a norma, quem proferir ofensas que desrespeitem alguém, seu decoro, sua honra, seus bens ou sua vida poderá ser punido com reclusão de dois a cinco anos. A pena poderá ser dobrada se o crime for cometido por duas ou mais pessoas.

As vítimas de racismo devem registrar boletim de ocorrência na Polícia Civil. É importante tomar nota da situação, citar testemunhas que também possam identificar o agressor. Em caso de agressão física, a vítima precisa fazer exame de corpo de delito logo após a denúncia e não deve limpar os machucados, nem trocar de roupa – essas evidências podem servir como provas da agressão.

* Maria é um nome fictício. A identidade da vítima foi preservada para garantir sua integridade.