Entre linhas, agulhas de madeira e ancestralidade, o filé - Patrimônio Cultural Imaterial de Alagoas - se mantém como a principal fonte de renda para mulheres ribeirinhas do complexo lagunar Mundaú-Manguaba. O bordado que carrega em sua essência as cores de Alagoas e a história de seu povo, resiste ao mercado industrial e ganha as passarelas ao redor do mundo.
O filé tem origem europeia e chegou ao Brasil junto com os portugueses. Em terras guaranis, o bordado ganhou mais cores e se mesclou com técnicas indígenas e africanas. Ao longo dos anos, as “filezeiras” - como são conhecidas as mulheres que produzem esse tipo de bordado - foram repassando a técnica a seus descendentes.
Rênia Régia, 48 anos, é um exemplo vivo de artesã que soube utilizar o bordado, presente na família há gerações, unindo-o à sua visão empreendedora. Essa junção fez com que a bordadeira deixasse para trás uma vida humilde alcançando destaque profissional e pessoal.
O primeiro contato de Rênia com o filé aconteceu ainda menina. Aos seis anos, a pequena Rênia aprendeu a bordar com sua mãe, Dona Eliene Calheiros. A vida não era fácil, e Rênia tinha que vender os chapéus de filé que a mãe fazia para ajudar nas contas de casa. Indo de porta em porta, a pequena artesã tornou-se conhecida no Pontal da Barra, bairro onde nasceu e foi criada.
A família de rendeiras passou por momentos de tensão, quando em meados dos anos 1990, a pequena casa de barro onde moravam, que chegou a abrigar 26 pessoas, não resistiu às fortes chuvas daquele ano. Morando às margens da Lagoa Mundaú, a casa veio abaixo com a cheia.
Após a recuperação da casa - com a ajuda da comunidade -, a família de Rênia continuou na luta pela subsistência através do filé. As coisas começaram a mudar quando a artesã passou a desenhar seus próprios modelos e usá-los pelas ruas da vila de pescadores. As roupas chamaram a atenção das donas de loja do bairro que prontamente pediram o contato do estabelecimento que produziu a peça. A partir daí, como uma empreendedora nata, a bordadeira criou o Art Rênia, empreendimento que resiste há 28 anos.
Sem medo de começar do zero, Rênia mostrou para todos que estavam ao seu redor, como o empreendedorismo é capaz de mudar a vida não só dela, mas de toda a sua família. Com o sucesso do Art Rênia, a artesã casou, conquistou sua casa própria, criou seu filho e adquiriu o imóvel onde sua loja está instalada. Atualmente, a artesã emprega 11 mulheres que trabalham com o filé.
Preservação do filé alagoano
Com a chegada de técnicas do filé importadas de outras localidades, o filé tipicamente alagoano se viu ameaçado. As vendedoras do bordado no Pontal da Barra passaram a reproduzir o filé com práticas e equipamentos diferentes do que foi ensinado por seus antepassados.
Apoiado pelo Sebrae, o Instituto do Bordado Filé (Inbordal), nasceu com a missão de proteger a tradição do filé na região do complexo lagunar Mundaú-Manguaba, e ao mesmo tempo garantir produtos de qualidade, fortalecendo esse ofício tradicional atestado pelo selo de procedência.
“As artesãs estavam deixando de fazer nosso filé original com pontos variados, como as avós faziam, para poder fazer esse filé que vinha de fora e vender para o turista”, explica Petrúcia Lopes, uma das responsáveis pelo Inbordal.
Em 2014 o filé foi registrado como Patrimônio Cultural Imaterial de Alagoas por expressar a tradição e a ancestralidade de várias comunidades. Em 2016, o bordado ganhou o selo de Identificação Geográfica de Procedência (IG) para o complexo lagunar Mundaú-Manguaba. O selo funciona como uma garantia de qualidade e originalidade dos produtos criados nessa região reconhecida como o berço do bordado filé em Alagoas.
Apesar da concorrência do filé alagoano com técnicas vindas de outros estados, Rênia Régia revela que o maior complicador na vida dos artesãos do Pontal da Barra seria a queda no número de visitantes do bairro além da falta de investimentos do poder público através de fomentos à arte ancestral que ali é feita.
“Não tem investimento do poder público. A feira não tem infraestrutura necessária para receber os turistas e há um boicote por parte das agências de turismo. Eles não querem trazer turistas para cá”, revelou.
O suposto boicote a que Rênia se refere, seria a negativa por parte das agências de turismo, que alegam não ser viável levar visitantes para o Pontal da Barra durante o trajeto de volta das praias do Litoral Sul alagoano.
A artesã diz ainda que as filezeiras encontram dificuldades com boa parte do setor hoteleiro que não permite que as bordadeiras mostrem seu trabalho para os frequentadores dos hotéis e divulgue o Pontal da Barra.
“Os hotéis não permitem a divulgação do nosso trabalho, impedindo os turistas de conhecer nosso bairro. Se não tem como vender, por que fazer?”, questiona a artesã, dizendo que há 10 anos havia mais turistas passeando pelo bairro e comprando os produtos feitos pelas filezeiras.
Assim como Rênia, Guilherme dos Santos, ex-presidente da Associação dos Artesãos do Pontal da Barra, conta que no passado o número de turistas no bairro era muito maior. “Quando presidi a Associação chegava cerca de 10 ônibus todo dia aqui no Pontal. Hoje não vemos isso. É muito triste colocar nossas peças para vender e não sair nada”, lamenta.
Boa parte das pessoas que trabalham com o bordado filé são mulheres - aproximadamente 85%, de acordo com dados do Sebrae. Guilherme é um dos poucos homens da região que mantém a tradição que foi apreendida quando tinha 12 anos, observando pescadores enquanto faziam a rede de pesca - técnica semelhante com a rede do filé.
O artesão alerta para o possível apagamento do bordado já que, em suas palavras, a geração mais nova não tem demonstrado interesse em aprender a técnica ancestral que impacta na economia do bairro. “A geração mais nova não tem interesse de continuar. Os que nasceram e se criaram aqui, vejo pouco. Infelizmente, vejo mais pessoas de fora tendo interesse em aprender o bordado filé”, revelou.
Apesar das dificuldades, os empreendedores da região conhecida como o berço do filé alagoano seguem firmes, utilizando a arte como forma de sustento e preservação da memória de seus familiares.
Dos mariscos ao filé
As 11 filezeiras que trabalham com Rênia em seu ateliê são oriundas da mariscagem. Todas elas trabalhavam com o sururu, mas tiveram que migrar para o filé devido à escassez do molusco na Lagoa Mundaú.
A Lagoa Mundaú, protagonista no bairro Pontal da Barra, fez coro ao filé por muitos anos e foi o meio de subsistência de muita gente que por ali vive. Sofrendo diversas formas de poluição há décadas, a sinuosa lagoa vem perdendo sua vida aos poucos e um dos personagens de maior destaque que tem sumido dos pratos dos alagoanos é o sururu.
O molusco, Patrimônio Imaterial de Alagoas, aparecia aos montes na lagoa, garantindo a subsistência de marisqueiras - mulheres responsáveis por “despinicar”, ou seja, tirar o sururu da casca -, que agora buscam alternativas para conseguir sustentar suas famílias.
Pequenos negócios, como o Art Rênia, além de transformar a vida de seus donos impactam diretamente na economia local com a geração de emprego, causando um impacto positivo em comunidades tradicionais, como é o caso do Pontal da Barra.
De acordo com um levantamento do Sebrae, com base no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) da Receita Federal, o Brasil registrou a abertura de 859 mil micro e pequenas empresas em 2023, representando uma alta de 6,62% em relação ao ano anterior, quando foram criados 805,6 mil empreendimentos.
Em uma análise temporal mais longa, é possível ver o crescimento sustentável de micro e pequenas empresas no Brasil. Em 2019, foram registradas a abertura de 490 mil microempresas e 89 mil empresas de pequeno porte, ante 715 mil microempresas e 143 mil empresas de pequeno porte no ano de 2023, o que representou um aumento de 45,80% e 60,50%, respectivamente.
Mercado artesão no Nordeste
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Marina Gatto, gestora de Artesanato do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas em Alagoas (Sebrae), aponta que o artesanato tem sido vital tanto para a economia do Nordeste, quanto para a preservação da cultura local.
“Artesanatos enfrentam a concorrência de produtos industrializados, que são frequentemente mais baratos devido à produção em massa. Outro desafio é sobre as formas tradicionais de artesanato que estão em risco de desaparecer, pois dependem da transmissão de conhecimentos de gerações mais velhas para as mais novas”, diz Marina.A analista lembra que o artesanato nordestino é reconhecido por sua riqueza e diversidade, com destaque para a cerâmica, rendas, bordados, madeira, entre outros. Como o Nordeste é um polo importante do turismo nacional, Marina Gatto avalia que o artesanato deve estar entrelaçado à experiência do turista.
“A promoção do artesanato como parte da experiência turística e a exportação para mercados internacionais são oportunidades significativas. O interesse crescente dos consumidores por produtos sustentáveis e éticos oferece ainda uma vantagem competitiva para o artesanato, que é frequentemente visto como uma alternativa 'verde’”.
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Marina Gatto ressalta a importância das plataformas de vendas online para a comercialização desses produtos com o objetivo de alcançar um público mais amplo.
“Redes sociais como Instagram e Facebook, são usados para comercializar e vender produtos artesanais globalmente. A disponibilidade de tutoriais em vídeo e cursos online permite, ainda, que artesãos aprimorem suas habilidades ou aprendam novas técnicas sem precisar se deslocar fisicamente. Isso democratiza o acesso ao conhecimento e à capacitação profissional no campo do artesanato”, ressalta.
Apesar dos pontos positivos, a analista alerta para algumas dificuldades que podem surgir ao decorrer do caminho. “A necessidade de habilidades digitais pode ser uma barreira para alguns artesãos, especialmente aqueles mais tradicionais ou de gerações mais velhas. Além disso, a saturação do mercado online pode tornar difícil para novos artesãos se destacarem sem um investimento significativo em marketing e branding”, disse.
Filé alagoano ganhou as passarelas
O Renda-se é uma mostra de moda alagoana que nasceu em 2020 com o objetivo de exaltar, fortalecer e resgatar a criação mais ancestral através das manualidades. Alina Amaral, produtora executiva do Renda-se, contou que Alagoas tem sido destaque no mundo da moda.
“A região Nordeste demorou a se mecanizar e por isso nós temos ainda várias técnicas vivas, algumas as vias de extinção, mas a grande maioria delas ainda vivas. E hoje com esse resgate da importância das manualidades, das artesanias na moda, no mundo, Alagoas se torna realmente um foco de criatividade. O Renda-se surgiu exatamente em função de exaltar e de fortalecer essas artesanias, em especial na figura do filé, que é o nosso patrimônio imaterial”, disse.
Alina Amaral ressalta que uma peça de roupa artesanal traz muito mais que tendência. “Traz afeto, resgate, ancestralidade e principalmente, traz a história do nosso povo”.
Além das roupas, o bordado filé pode ser aplicado em várias peças como porta-copos, jogo americano, toalhas de mesas, cortinas, entre tantas outras possibilidades. “Isso é muito valorizado em todo o mundo, e aqui no estado já há uma interferência de design importante nesse material, que torna o filé uma peça a ser consumida pelas grandes casas de decoração e pelas pessoas influentes no tema”, disse Alina.
De acordo com o Estudo da Arte do Artesanato Alagoano 2020, encomendado pelo Sebrae, a atividade “Rendas e Bordados” ocupa o primeiro lugar entre as ocorrências de manualidades encontradas no estado. A pesquisa aponta que nos últimos 15 anos, o setor foi alavancado a exemplo da marca Martha Medeiros, que teve uma grande contribuição nesse crescimento devido seu sucesso empresarial no mercado de luxo, reposicionando o uso do filé no vestuário.
Cada vez mais é possível ver o filé ganhar destaque nacional. O exemplo mais recente é o da participante do programa Big Brother Brasil, a alagoana Giovanna Pitel, que usou um vestido feito de filé na final de um dos programas de maiores audiências da TV brasileira da atualidade.
Há décadas o filé tem feito parte da vida de muitas pessoas que vivem no entorno das lagoas Mundaú e Manguaba. O impacto econômico, social e cultural, seja de quem depende direta ou indiretamente do bordado, é inegável. O desejo dos que subsistem através do artesanato é que o filé alagoano seja mantido, valorizado e passado para outras gerações a fim de perpetuar a técnica ancestral.
O filé precisa ser entendido como a essência criativa mais alagoana de todas. O filé precisa ser respeitado e a técnica multiplicada. Porque se o filé morrer, morre também uma parte do povo alagoano.
Ações do governo para fomentar o filé
Na contramão do que foi relatado por Rênia e Guilherme, a Prefeitura de Maceió informou à reportagem que a Secretaria Municipal de Turismo (Semtur) atua de forma permanente na promoção do bairro Pontal da Barra. O órgão disse ainda que firmou um termo de fomento para consolidar o Pontal da Barra como um dos principais roteiros culturais e criativos da capital alagoana.
Já o governo de Alagoas, lembrou que a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico e Turismo (Sedetur) criou o programa Alagoas Feita à Mão. O programa se dedica ao mapeamento, curadoria, apoio à comercialização, promoção e preservação de técnicas utilizadas na produção artesanal genuinamente alagoana.