O ano era 1951 quando o produtor David Selznick, em plena era de ouro de Hollywood, comparou a indústria cinematográfica com o Egito — fazendo a previsão que um dia essa “pirâmide” iria desmoronar até o vento levar embora o último adereço dos estúdios. A hipótese, no entanto, não veio por acaso: afinal, o cenário da época era de uma televisão cada vez mais forte e de estúdios que buscavam, cada vez mais, o lucro em detrimento da arte.
O tempo passou, mas a discussão em torno de um possível fim dos cinemas continua tão onipresente quanto os fracassos nos últimos anos. A exemplo de Coringa: Loucura a Dois, que estava preparado para ser um sucesso de bilheteria, mas que arrecadou apenas US$ 165 milhões após duas semanas. Com um custo de US$ 300 milhões (produção e marketing), o filme deve gerar um prejuízo de até US$ 200 milhões, já que a arrecadação é dividida entre estúdios e redes de cinema.
Mas a produção excêntrica sobre o notório inimigo do Batman está longe de ser a única que se saiu mal e enfrentou salas quase vazias em 2024. Dois outros filmes programados para levar multidões aos cinemas foram Argylle e Furiosa. Enquanto o primeiro — apesar de contar com grandes astros, como Henry Cavill, John Cena e Dua Lipa — ficou no vermelho por mais de US$ 103 milhões, o segundo era mais um capítulo da franquia Mad Max e encerrou sua jornada com somente US$ 173 milhões.
E os sucessos de 'Divertida Mente 2' e 'Deadpool & Wolverine'
Essa questão é levantada, mas diz muito mais sobre como é o cenário dos cinemas na atualidade do que criar uma falsa expectativa de que tudo voltou a ser como era antes da pandemia. Por falar nela, o fechamento dos estabelecimentos durante a quarentena acelerou a mudança no modo como as pessoas se entretêm, em uma época onde jantar fora e assistir um filme viraram iFood e Netflix.
Com uma grande variedade de serviços de streaming, nunca foi tão fácil ter acesso a um catálogo imenso de produções cinematográficas. Nos últimos anos, as janelas — isto é, o tempo em que cada produção demorava para sair dos cinemas e chegar às casas das pessoas — diminuíram consideravelmente. Em décadas passadas, caso você tivesse interesse em assistir aos grandes lançamentos do ano no conforto do seu sofá, teria que esperar quase 12 meses, ou até mais que isso, para ver a mídia física daquela produção dar as caras em uma prateleira de locadora física ou digital.
O editor e criador de conteúdo, Anderson Gaveta, relembrou uma vez o quanto era demorado para se ter acesso aos filmes depois que eles deixavam as salas de exibição. “Antigamente, [a janela] era gigante. Então, se você não fosse ver um filme que estava no cinema, você iria esperar, pelo menos, muitos meses. Era muito tempo. ‘Caraca, não vi o filme que estava no cinema. Agora não sei quando eu vou ver’”, lembrou.
O modo de consumo mudou
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Voltando para os sucessos de Divertida Mente 2 e Deadpool & Wolverine, há, de cara, algo em comum: ambos tratam-se de continuações de franquias bem estabelecidas. Isso, é verdade, não basta para decretar o sucesso de alguma produção — vide o que aconteceu com a sequência de Coringa.
Mas o que tem acontecido é, cada vez mais, o público adotar critérios para definir o que irá assistir nos cinemas. O custo financeiro e o investimento de tempo de deslocamento são dois deles, mas um fator que sobrepõe e é decisivo para reunir a família e amigos nas poltronas de uma rede de cinema é o mesmo desde 1937: o hype de um filme evento.
Naquele ano, as primeiras pessoas que saíam das sessões de Branca de Neve e os Sete Anões estavam maravilhadas em ver o primeiro longa-metragem animado e recomendavam a experiência “imperdível” para outros. O boca-a-boca extremamente positivo e indicativo se repetiu com Mágico de Oz (1939), …E o Vento Levou (1939), e seguiu mesmo após décadas, como em Tubarão (1975), Jurassic Park (1993), Titanic (1997) e Vingadores: Ultimato (2019).
Perder algum desses filmes nas telonas significou ficar de fora de discussões ao longo de meses. Por isso, esses blockbusters (termo dado a produção de grande orçamento e massiva divulgação) acabam incentivando esse efeito manada das pessoas, que não querem estar à margem do evento.
“Isso é muito importante quando você leva em consideração o hype. Quando um filme está tendo, todo mundo quer ver para não ficar de fora da conversa, para não ficar de fora do evento. Titanic se beneficiou muito do efeito manada. Ele teve a bilheteria que teve porque ninguém queria ficar de fora. As pessoas iam ver e falavam: ‘Eu vou ver, está todo mundo vendo. Eu quero ver”, disse Gaveta, que aproveitou para traçar uma linha de comparação com o efeito trabalhado no marketing.
— Existe esse senso de urgência: ‘eu tenho que comprar logo’. ‘Eu tenho que ver logo’. É fundamental para o mercado de vendas. Quem trabalha com vendas sabe disso. Você trabalha esse senso de urgência das pessoas. [Algo como] ‘pegue logo antes que acabe. (Anderson Gaveta)
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No entanto, com janelas de lançamento cada vez mais curtas — a exemplo de Meu Malvado Favorito 4, terceira maior bilheteria de 2024, que foi lançado digitalmente no dia 6 de agosto, pouco mais de um mês depois de chegar às telonas (4 de julho) — as pessoas estão preferindo esperar os filmes para ver no conforto de casa, principalmente se tratando de famílias grandes, onde o custo é maior.
Aliado a essa rapidez, a qualidade e a imersão de assistir uma produção em casa aumentou consideravelmente após a pandemia. Graças a equipamentos cada vez melhores e mais baratos, não é incomum ver pessoas saindo das lojas com televisões cada vez maiores e com mais tecnologias favoráveis a sua experiência.
Segundo a revista Sound and Vision, a venda de televisões de 85 polegadas aumentou 1200% em 2023. No Brasil, de acordo com a GfK, empresa especializada em estudos de mercado, também houve um salto no faturamento de modelos de TV com telas maiores — de 54 polegadas cresceu 9,4%, e 64 polegadas ou mais que isso subiu 20,1%.
Entendendo essa movimentação do público, muitas empresas de streamings adotaram na época da pandemia estratégias voltadas a cativar ainda mais pessoas, apelando, até mesmo, para lançamentos simultâneos (cinema e VOD) em alguns casos. Esse fato irritou uma série de artistas, como Scarlett Johansson, que acionou a Disney na Justiça por se achar lesada financeiramente - já que iria receber um percentual da bilheteria de Viúva Negra (2021).
— Nesse ponto, você entende a Scarlett Johansson quando ela ficou revoltada porque Viúva Negra saiu simultaneamente no streaming. Pela mensagem que isso para para as pessoas: "Olha, isso aí saiu no streaming. Você não precisa ficar tão nervoso assim para ver no cinema". (Anderson Gaveta)
Streaming supre as bilheterias de cinema?
Poucos anos após o fim da pandemia, muitas empresas já tentam mudar de rota e “trocar o pneu com o carro andando”. Se antes havia a expectativa de que se ter um streaming próprio seria necessário para se manter gigante no mercado e buscar tirar a Netflix do primeiro lugar, hoje a realidade encarada mostra que as margens de lucro diminuíram consideravelmente.
Antes, para além da receita das bilheterias (que continua sendo a maior fonte de renda dos estúdios) também eram somados nas contas finais o arrecadado em mídia física (DVD e Blu-ray). Com a tecnologia do streaming, esse setor praticamente foi fechado — no Brasil, por exemplo, somente há a venda através da licença de terceiros.
Outra grana que foi sumindo aos poucos foi o da publicidade de canais fechados — também influenciada pela mudança de consumo das pessoas.
Hoje, a Netflix (praticamente, a única delas que tem o streaming como serviço principal) segue com folga na liderança no número de assinantes. E se ela, que popularizou o meio, busca opções para deixar rentável o funcionamento do serviço — como o aumento constante na assinatura —, imagine as demais.
A Walt Disney, por exemplo, teve um lucro de apenas US$ 47 milhões somados do Disney+, Hulu e ESPN+ em uma receita operacional de US$ 1,2 bilhão entre abril e junho (antes disso, foram anos no vermelho). Já a Warner, no primeiro trimestre do ano, registrou um lucro um pouco maior, de US$ 90 milhões.
Os valores ainda muito aquém dos recebidos através das bilheterias estão fazendo com que estúdios priorizem, cada vez mais, a produção de grandes filmes capazes de levar uma massa de fãs ao cinema — como aconteceu com Divertida Mente 2 e Deadpool & Wolverine. Nessa linha, a Marvel anunciou a volta de Robert Downey Jr (Homem de Ferro, 2008), a Pixar encomendou sequências de Toy Story e Os Incríveis, a Universal irá lançar mais um Jurassic World e a Warner aposta na volta do Superman às telonas.
“Assim, as redes de cinema também acabam torcendo para voltar a ver o grande fluxo de pessoas de volta às poltronas.“A pandemia foi um marco que acabou afetando não só o cinema, como o mundo. O streaming é o maior adversário do cinema atual. Acho que para as pessoas irem aos cinemas precisam, realmente, de um grande lançamento, como foi Barbie e Oppenheimer, que faça a massa e o público geral ir ao cinema”, disse Gilmaxson Rocha, funcionário de uma rede de cinema de Maceió.
Mas por que ir aos cinemas?
Portas fechadas, sala escura, uma tela gigante e um som arrebatador. A magia de ir para o cinema e conseguir se desligar dos problemas é um dos principais pontos que o mantém ainda tão grande e insubstituível.
E pode ser mais que assistir um filme, pode ser um programa coletivo. Rir ou se emocionar coletivamente com centenas de desconhecidos consegue suprir a seriedade de ver um filme em casa para se ver empolgado com outros entusiastas do filme, da arte.
— O cinema é a arte de todas as emoções. Então, quando você vai ao cinema, você consegue sentir a magia. Em casa, você não tem essa sensação, porque terá vários fatores que irão atrapalhar a sua concentração com o filme. É uma experiência única e até mesmo coletiva, como em Ultimato, quando o Capitão América toma a frente e todos [os outros herois] vêm atrás. (Neemias Nunes, criador de conteúdo e cinéfilo)
Chegou a hora de dar adeus ao cinema?
À exceção dos grandes filmes, as salas de cinema têm ficado, cada vez mais, vazias. Boa parte do público que acompanha filmes mais autorais e independentes acabam indo pelo luxo que é poder vislumbrar o filme na qualidade disponibilizada pelas redes.
De acordo com dados apresentados pela Agência Nacional do Cinema (ANCINE), o público de até a semana 37 de 2024 foi de 90 milhões - uma queda de 44 milhões se comparado aos 134 milhões coletados no mesmo período de 2019.
Anderson Gaveta criou um paralelo entre o atual estado do cinema com o filme À Procura da Felicidade (2006).
— Eu sou apaixonado por cinema. Eu adoro o evento “cinema”, é o meu programa favorito, sem dúvidas. Mas eu sinto que o cinema está começando a virar aquelas máquinas que o Will Smith vende em À Procura da Felicidade. Era, tipo, um scan, muito melhor do que as máquinas que os outros médicos tinham, só que ninguém queria pagar por elas. Eles falavam: ‘Cara, elas são muito caras pelo benefício que eu vou ter. Então, eu prefiro comprar uma máquina um pouco pior do que ela, mas que é muito mais barata’. E aí, o cara se ferrou e a máquina ficou entulhada. (Anderson Gaveta)
O editor continua e acredita que uma mudança possa estar próxima, assim como aconteceu com o mercado de música — que mudou drasticamente com a chegada do digital, dando praticamente fim às vendas de mídias físicas.
“Eu [também] não imaginava que poderia acontecer de ter o trabalho de forma remota o tempo inteiro, mas aconteceu. Eu não imaginava que um dia eu poderia deixar de comprar CDs de música, mas aconteceu. Hoje em dia, se sair um álbum novo da minha banda favorita, eu vou escutar no Spotify, no YouTube. Eu não imagino que o cinema que a gente conhece pode deixar de existir, mas pode deixar de existir”.
E, assim como aconteceu na música — com artistas precisando voltar a subir aos palcos para complementar a grana que antes era vinda das vendas de discos — também acontece em outras áreas, como no transporte (na mudança do táxi para o pedido por aplicativo] e pode alterar para sempre o cinema — não dando um exato fim, mas pondo um ponto final naquilo que a gente conhece como o programa da semana de ir sentar em uma poltrona para ver um bom filme.