É a era da justiça, ou injustiça, com as próprias mãos. Ao menos é o que mostra o balanço da Ordem dos Advogados do Brasil em Alagoas (OAB/AL), que registrou, até outubro deste ano, 50 casos de justiçamento — isto é, a ação de “justiceiros” que procuram suspeitos de crimes para justiçar.
No meio dessa onda, muitos inocentes acabam nas mãos daqueles que diziam procurar por justiça. É o caso do padeiro Valmir Herculano. Em 2022, ele estava indo trabalhar quando foi espancado até a morte com golpes de pau, pedra e uma pá. O motivo: o padeiro foi confundido com um ladrão de celular.
Dois anos após o crime, a família e os amigos de Valmir voltaram a se revoltar. No júri popular do caso, que aconteceu na última terça-feira (05), os réus Leandro Marques e Anderson Santos foram absolvidos. Enquanto a defesa de Anderson disse que os golpes dados por ele não teriam sido suficientes para causar o traumatismo cranioencefálico (causa da morte do padeiro), o advogado de Leandro defendeu que ele sequer participou da ação. O Ministério Público já recorreu da decisão.
Como, na maioria dos casos de justiçamento, há um grupo de pessoas e poucos registros claros, nem sempre os verdadeiros responsáveis pela causa das mortes das vítimas dessas ações acabam sendo condenados. É o que alerta a advogada criminalista e membra da Comissão do Tribunal do Júri da OAB/AL, Rayanni Albuquerque.
— Crimes praticados em concurso de pessoas podem conter certas dificuldades em seu julgamento. Isso acontece, principalmente, em função da dificuldade de determinar a responsabilidade exata de cada participante. Em situações de linchamento, muitas pessoas podem estar envolvidas, e nem sempre é claro qual ato específico resultou na morte da vítima. A defesa pode argumentar que as ações de determinado réu foram menos determinantes, como no caso do advogado que alegou que os golpes dados pelo seu cliente não causaram o traumatismo. Essa divisão de responsabilidades e a tentativa de identificar uma “causa direta” tornam os julgamentos mais desafiadores e podem resultar em absolvições, especialmente se a relação entre a ação de um indivíduo e a morte não puder ser claramente comprovada. (Rayanni Albuquerque, advogada e membro da Comissão do Tribunal do Júri da OAB/AL)
A prática é criminosa no Brasil. Mas e a legítima defesa?
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Apesar de procurar fazer justiça possa parecer um ato heroico para algumas pessoas, a ação é crime no Brasil — tipificada como exercício arbitrário das próprias razões, mas sem prejuízo da violência que resulte em outros crimes. Ou seja, a pena base do artigo 345, do Código Penal, ainda que considerada branda (detenção, de quinze dias a um mês, ou multa), pode ser somada às penas correspondentes das outras infrações penais cometidas no ato.
Assim, o indivíduo que pratica o justiçamento pode responder por outros crimes, como:
👉 ameaça (Código Penal);
👉 constrangimento ilegal (Código Penal);
👉 porte ilegal de arma de fogo (Estatuto do Desarmamento);
👉 lesão corporal (Código Penal);
👉 sequestro e cárcere privado (Código Penal);
👉 homicídio ou tentativa de homicídio (Código Penal).A advogada ressalta que o crime de exercício arbitrário das próprias razões (justiçamento) não tem qualquer relação com legítima defesa (excludente de ilicitude).
— O exercício arbitrário das próprias razões é um crime que consiste em fazer justiça com as próprias mãos para satisfazer uma pretensão, mesmo que seja legítima, sem que a lei permita. Por outro lado, a legítima defesa é um instituto legal que permite que uma pessoa utilize meios necessários e moderados para proteger-se ou proteger terceiros contra uma agressão injusta, iminente e atual. A legítima defesa é uma excludente de ilicitude, ou seja, em situações específicas, a pessoa não é penalmente punida por agir para proteger-se de um perigo imediato e inevitável (Rayanni Albuquerque)
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Ser atacado ou ver alguém perder os pertences para bandidos é revoltante, mas punir violentamente os responsáveis pode encorajar outras pessoas a irem às ruas e bancar os “justiceiros”, como alerta a criminalista.
— A banalização dessa prática odienta e repugnante pode criar uma sensação de legitimidade dessa conduta, ainda mais em um ambiente de absoluto desprezo aos Direitos Humanos que se engendra no contexto de ascensão da extrema direita. Assim, o justiçamento pode gerar um “efeito manada” ou “efeito contágio”, onde, ao verem outras pessoas agindo como justiceiras, mais indivíduos podem ser incentivados a tomar medidas similares. Esse fenômeno é intensificado pelas redes sociais e pela cobertura midiática, que muitas vezes expõem casos de justiçamento de forma repetida e sensacionalista. Isso pode normalizar a ideia de que o justiçamento é uma resposta legítima à ineficácia percebida do sistema de justiça, criando uma escalada de violência. (Rayanni Albuquerque)
Um ponto que desperta a ideia de buscar ir atrás da justiça com as próprias mãos, segundo Rayanni, é a carência de confiança no sistema de justiça e na segurança pública.
— A falta de confiança no sistema de justiça e nas instituições de segurança pública é uma das principais razões que motivam o justiçamento. Quando a população percebe que o Estado não é capaz de garantir justiça e segurança, há uma tendência de buscar respostas imediatas e individuais para resolver conflitos e punir supostos infratores. Esse sentimento de descrédito pode ser agravado pela morosidade do sistema judicial, pela impunidade em casos graves e pela sensação de insegurança nas comunidades. (Rayanni Albuquerque)
A justiça injusta
A criminalista também consegue enxergar um ódio destinado a alguns setores da sociedade, em um pensamento parecido com o do sociólogo José de Souza Martins — que defende que, por conta da raça, os atos passam a ser mais violentos no decorrer das agressões.
"A cor da pele não é a primeira motivação para linchar alguém. Nos primeiros dez minutos o padrão se repete e não há nenhuma diferença. Independentemente de a vítima ser branca ou negra, você vê pedradas, pauladas, pontapés. A diferença se manifesta no decorrer do ato, de forma muito mais sutil do modo como o racismo é concebido no Brasil. Ele se torna mais violento. Se o linchado for negro, a probabilidade de aparecerem outros componentes mais violentos como mutilação, furar olhos ou queimar viva a vítima, aumenta”, disse José Martins.
OAB acompanha números
A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em Alagoas acompanha os casos de justiçamento. Segundo o balanço, os atos criminosos acabaram com 12 mortos somente em 2024.
De acordo com a OAB, o número de denúncias também aumentou se comparado em comparação com 2023
A instituição divulgou, ao longo da última semana, uma fala de Daniela Lucena, presidente da comissão. Para ela, o trabalho desenvolvido é de extrema importância para garantir os direitos humanos.
“Atuamos com educação em Direitos Humanos, realizamos pesquisas, seminários, capacitações e publicações que contribuem para o debate acadêmico e político sobre direitos humanos, influenciando políticas públicas. O trabalho realizado pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos é fundamental para fortalecer a democracia, garantir a dignidade humana e construir uma sociedade mais justa e igualitária”, pontuou.
*Estagiário sob supervisão