Gordofobia: Um crime passível de punição que muitos ainda chamam de 'brincadeira'

Atualmente, a gordofobia ainda não é tipificada como crime no Código Penal brasileiro, mas existem alguns projetos de lei (PL) que tramitam com essa finalidade

Por Wanessa Santos, com Rede Antena 7 |

Segundo o Ministério da Saúde, a obesidade é classificada como uma doença. Cerca de 41,2 milhões de adultos no Brasil são obesos e precisam tratar doenças crônicas associadas a essa condição. Entretanto, para muitas pessoas, isso não é empecilho na hora de lançar um olhar de reprovação ou soltar uma “piada” relacionada condição física do outro. Mas será que zombar de alguém que está doente é razoável?

Obviamente que a resposta é não. Porém, desde a infância pessoas com sobrepeso sofrem com a chamada gordofobia. O termo surgiu no contexto de movimentos sociais que lutam contra a discriminação de pessoas gordas, apontando a hostilidade, estigmas e preconceitos enfrentados por elas durante toda a sua vida, na maioria dos casos. Atualmente, a gordofobia ainda não é tipificada como crime no Código Penal brasileiro, mas existem alguns projetos de lei (PL) que tramitam com essa finalidade.

Se não há crime, não há punição, certo?

Errado. Embora o termo ainda não tenha ganhado uma legislação específica, a discriminação de pessoas gordas, atualmente, é enquadrada nos chamados crimes contra a honra. Quem explica melhor sobre essa parte jurídica do assunto, é o advogado criminalista, Ronald Pinheiro.

Em entrevista à Rede Antena 7, concedida na última quinta-feira (19), o especialista explicou como as vítimas desse ato discriminatório podem acionar a justiça contra seus agressores, mesmo sem haver ainda uma lei que tipifique a gordofobia como um crime.

Ronald Pinheiro, advogado criminalista. Foto: Marcos Souza/Rede Antena 7

O advogado conta que crimes contra a honra são aqueles em que o indivíduo tem a sua honra, a sua imagem, reduzidas de alguma forma. No caso da gordofobia, essa espécie de humilhação ocorre justamente devido a questões físicas da vítima. Ronald esclarece ainda que quem comete esse tipo de ato não está livre de sofrer punições. “De forma objetiva, nós temos aí a possibilidade daquele indivíduo responder sim por uma injúria, por uma difamação, que são os crimes previstos no código penal”, explicou o criminalista.

De acordo com os dados da plataforma Data Lawyer, entre os anos de 2020 a 2022 foram abertos cerca de 756 processos judiciais relacionados a denúncias de "gordofobia" no Brasil. Em 2023, até meados de julho, foram contabilizadas mais 200 ações na justiça sobre esse tema. Os números demonstram um crescimento desses acionamentos jurídicos, que podem acarretar ao acusado o pagamento de uma indenização por danos morais.

E essa “brincadeira” de muito mal gosto pode sair bastante cara para quem a pratica. Ainda de acordo com dados da Data Lawyer, o valor médio de cada causa é R$ 240 mil.

Como formalizar a acusação


O especialista em direito criminal, Ronald Pinheiro, deixa claro como o indivíduo que foi vítima de gordofobia deve proceder para conseguir acionar a justiça contra o acusado pelo crime de difamação. Como na maioria dos casos onde crimes são praticados, é fundamental a pessoa que sofreu a agressão registre um boletim de ocorrência (BO).

Em seguida, essa pessoa deverá buscar um advogado de sua confiança ou um defensor público. “A partir daí irá iniciar um processo criminal em virtude do crime contra a honra que foi sofrido. Obviamente que também é possível iniciar uma ação indenizatória onde a vítima de crime contra a honra, nesse caso, vinculado à gordofobia, ela irá buscar uma reparação monetária. Porque se entende que houve sim um dano moral para a aquela pessoa que teve a sua honra ferida”, explica o advogado.

Pinheiro conta que, para que a ação judicial tenha potencial de levar, de fato, a devida punição ao acusado, é fundamental que a vítima consiga reunir provas que atestem a veracidade dos fatos. Outro ponto dito pelo especialista, que chama bastante atenção, é que há uma relação quantitativa no momento de definir o valor da indenização que será imputada ao agressor.

“Óbvio que quanto mais o dano se dimensionar, ou seja, se esse dano foi cometido e foi estabelecido por muitas pessoas, ou seja, se muitas pessoas viram aquela zombaria, aquela redução, aquela difamação, aquela injúria, maior vai ser a reparação”, revelou.

Sendo assim, fica claro que quando essa prática é cometida em uma rede social, na internet, e, obviamente, vista por inúmeras pessoas – que, muitas vezes chegam até mesmo a participar da ação discriminatória também – , ao contrário do que muitos pensam, a punição não é mais branda, muito pelo contrário, ela será ainda mais pesada para aquele que a fez.

Internet, terra sem lei?

  • Ainda hoje a maioria das pessoas acredita que consegue permanecer no total anonimato ao praticar crimes na internet. Sobre isso, o advogado Ronald Pinheiro diz que esse anonimato virtual já não existe mais para a justiça.

    No Brasil, os crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria) em ambiente digital são tratados de forma semelhante aos cometidos fora da internet, mas com algumas especificidades dadas pela legislação vigente, especialmente pelo avanço do uso da internet. Veja as principais leis aplicáveis:

    1. Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940)

    Os crimes contra a honra estão previstos nos artigos 138 a 140 do Código Penal:

    Calúnia (Art. 138): Imputar falsamente a alguém fato definido como crime.

    Pena: Detenção de 6 meses a 2 anos e multa.

    Difamação (Art. 139): Imputar fato ofensivo à reputação de alguém.

    Pena: Detenção de 3 meses a 1 ano e multa.

    Injúria (Art. 140): Ofender a dignidade ou o decoro de alguém.

    Pena: Detenção de 1 a 6 meses ou multa.

    2. Lei nº 12.737/2012 (Lei Carolina Dieckmann)

    Essa lei acrescentou dispositivos ao Código Penal, principalmente no combate a invasões de dispositivos informáticos. Embora não trate diretamente de crimes contra a honra, é relevante no contexto digital quando há invasão de privacidade, o que pode facilitar crimes contra a honra.

  • 3. Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014)


    Regulamenta o uso da internet no Brasil, garantindo direitos e impondo responsabilidades:

    Art. 19: Estabelece que provedores de internet só podem ser responsabilizados por danos causados por terceiros (como crimes contra a honra) caso não removam conteúdos ilícitos após ordem judicial.

    Direitos do usuário: Privacidade e proteção de dados, que podem ser violados em crimes contra a honra.

    4. Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD)

    Ainda que seu foco seja a proteção de dados pessoais, a LGPD também pode ser usada para coibir a exposição indevida de informações pessoais que levem a crimes contra a honra.

    5. Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime)

    Alterou o Código Penal e introduziu o conceito de "injúria racial como crime imprescritível e inafiançável", inclusive em ambiente digital, equiparando-a a crime de racismo.

    6. Jurisprudência e Práticas

    STJ e STF: Reconhecem que os crimes contra a honra cometidos pela internet têm maior gravidade devido ao potencial de disseminação e permanência das ofensas online.

    Agravante (Art. 141, III, do Código Penal): Os crimes cometidos por meio que facilite a divulgação (como redes sociais) têm a pena aumentada de 1/3.

Além da justiça, a importante reparação psicológica

Sofrer bullyng, discriminação por conta de sua aparência, gordofobia, é algo que pode trazer inúmeras consequências à saúde mental daquela pessoa. A rejeição, a sensação de que todos à sua volta estão sempre prontos para rir de você ou apontar defeitos, pode causar graves questões psicológicas que, por muitas vezes, acabam fazendo com que a vítima se isole do resto do mundo.

Nesse contexto, é comum vermos pessoas obesas em quadros depressivos, o que torna a já difícil missão de perder peso algo quase que impossível. Isso porque isolada do mundo, e sem forças para realizar as mais simples atividades do dia a dia, a única válvula de escape que muitas dessas pessoas acabam tendo é justamente a comida.

Quem explica melhor sobre essa questão é a neuropisicóloga Ericka Duarte. Em entrevista a reportagem do 7Segundos, Ericka fala sobre como a gordofobia pode afetar psicologicamente a vítima e quais as principais consequências que uma situação como essa pode causar na vida dessa pessoa.

Ericka Duarte, neuropisicóloga / Imagem: Cortesia

A especialista revela que pessoas que sofrem esse tipo de violência podem sofrer impactos psicológicos sérios, que geram a baixa autoestima, ansiedade social, depressão, transtornos alimentares, sentimentos de culpa e vergonha, perda de identidade e até dificuldades no campo profissionais.

A neuropisicóloga conta que em muitos desses casos a ansiedade e a depressão são umas das consequências mais comuns geradas pela situação da gordofobia, e, estando elas associadas, têm impacto muito negativo na saúde física e psicológica do paciente.

“A ansiedade e a depressão podem intensificar os comportamentos alimentares prejudiciais. Muitas pessoas com essas condições recorrem à alimentação como uma forma de lidar com suas emoções, seja pela compulsão alimentar, durante os episódios de ansiedade, ou pela alimentação excessiva ou falta de apetite durante a depressão”, revela.

Segundo Ericka Duarte, esse ciclo pode resultar em flutuações de peso e um agravamento da obesidade, além de um aumento nos sintomas psicológicos, criando um quadro de desespero e culpa e dificultando a capacidade de ação e a motivação do paciente.

Já com relação ao comportamento de isolamento que essa pessoas podem acabar adquirindo, a especialista conta que a vítima de gordofobia pode começar a evitar eventos sociais o que gera prejuízo na interação e socialização. Em ambiente de trabalho, ela começa a evitar reuniões por medo de ser ridicularizada por seu corpo. Dessa forma, o sentimento de rejeição pode maximizar e potencializar os sintomas depressivos, sentimento de inutilidade, tristeza profunda que é um fator de risco para os quadros depressivos.

É importante que familiares e amigos mais próximos identifiquem alguns desses padrões de comportamento dessas pessoas, e as ajude a procurar ajuda psicológica o quanto antes.

A arte imitando a vida

Em 2023, Hollywood trouxe para as telonas o drama de um homem obeso, com diversas doenças associadas à sua condição e uma saúde deteriorada. O longa ‘A Baleia’ mostrou como as pessoas acometidas por essa doença – a obesidade mórbida – ao não suportarem mais o sofrimento da discriminação e do preconceito, decidem se isolar e viver o resto de suas vidas reclusas.

Performance de Brandon Frases em 'A Baleia' / Imagem Reprodução/A24

A brilhante caracterização e performance profunda do ator Brandon Frases em ‘A Baleia’ marcou o retorno do ator à Hollywood e garantiu, a ele, o Oscar de melhor ator.

O filme, que foi um sucesso estrondoso nas bilheterias, levou milhões de espectadores à refletir sobre o assunto, e se emocionar com o enorme sofrimento vivido por Charlie, personagem principal da história. Mas, embora tantas pessoas ao redor do mundo todo tenha conseguido sentir tamanha empatia pela história fictícia, por que o mesmo não ocorre na vida real?

Deixo aqui essa reflexão aos leitores desta matéria.