
Estar sozinho no conforto da sua casa tem se tornado o objeto de desejo de cada vez mais pessoas em todo o mundo. Depois de um longo dia de trabalho e de múltiplas interações sociais, aquele tempo usufruindo somente da própria companhia parece realmente ser a melhor das recompensas. O que, talvez, a maioria das pessoas não consiga perceber é que essa aversão à interação humana pode se tornar um fator de risco à manutenção não apenas da saúde mental, mas também da física.
Prova disso são os recentes casos de pessoas que morreram dentro de suas casas e só vieram a ser encontradas muitos dias após o falecimento. No último dia 27 de fevereiro, autoridades norte-americanas divulgaram terem encontrado os corpos do premiado ator de Hollywood Gene Hackman, de 95 anos, da esposa dele, Betsy Arakawa, de 63 anos, em Santa Fé, no Estado do Novo México. Segundo as investigações, Betsy teria falecido primeiro, em decorrência de uma infecção viral rara. Hackman, que estava em estado avançado de Alzheimer, teria morrido sete dias depois da esposa, devido à falta de cuidados e de uma doença cardiovascular.

Acredita-se que Betsy Arakawa tenha falecido no dia 11 de fevereiro. Já o ator, Gene Hackman, provavelmente morreu em 18 do mesmo mês. Os corpos dos dois foram encontrados por um trabalhador de manutenção da residência, quase dez dias após o falecimento de Gene, que viu os corpos pela janela e alertou as autoridades. Vale lembrar que o ator possuía três filhos.
Um caso muito parecido aconteceu aqui, em Maceió, em janeiro deste ano. Duas mulheres, também idosas, foram encontradas sem vida dentro de um apartamento no bairro Bom Parto. Uma era acamada, e a outra era sua cuidadora. A cuidadora veio a falecer de causas naturais e, dias depois, a outra mulher também acabou morrendo. A polícia foi acionada após o síndico do prédio ter sentido um forte odor vindo do apartamento.
O que chama a atenção em ambos os casos é o fato de ninguém ter sentido falta dessas pessoas a tempo de salvar, ao menos, o segundo indivíduo, que acabou perdendo a vida somente porque a sua única cuidadora morreu primeiro.
As causas
Para entendermos um pouco melhor sobre este assunto, entrevistamos a psicóloga clínica, e pós-hraduanda em Terapia Cognitivo-Comportamental pela PUC, Iara Dhenniffy. A especialista explica que, infelizmente, casos como estes não são totalmente isolados e refletem uma tendência preocupante na sociedade.

Embora pareça algo relativamente simples de entender, ou mesmo apenas um cansaço da sobrecarga que a vida corrida dos dias atuais exige de todos, a questão do isolamento voluntário abrange muitas camadas.
De acordo com a especialista, os fatores que contribuem para que essa situação ocorra são diversos, e é preciso analisar cada um deles para se ter uma noção da complexidade do problema. Para a psicóloga, o envelhecimento da população, a solidão, a falta de apoio, as mudanças nas estruturas familiares e, até mesmo, a escassez dos serviços sociais, são alguns dos principais pontos que acabam corroborando com essa diminuição das interações humanas na sociedade.
Fato curioso apontado pela especialista é que em outros países, como no Japão e EUA, esse tipo de situação é "comum", já que a cultura valoriza a independência e privacidade, o que pode levar o indivíduo ao isolamento. No Japão, esse fenômeno tem até um nome, e é chamado de "kodokushi" (morte solitária).
Iara explica que no Brasil esse problema está se tornando presente, mas que ainda não atingimos a cultura do isolamento absoluto, como no Japão. Entretanto, ela acende um alerta: “É importante que nós, enquanto sociedade brasileira, estejamos atentos a essa tendência, já que estamos vivendo as mudanças nas estruturas familiares cada vez mais”, previne a psicóloga.

Tecnologia: tudo em excesso é prejudicial
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Viver nos dias atuais exige de todos nós um estado quase permanente de conectividade e atualização de informações, que são transportadas de um canto a outro em tempo real, graças aos avanços da tecnologia. E, apesar de absolutamente útil e razão pela qual a sociedade atingiu altos níveis de avanços nos campos das ciências, saúde, agricultura, entre outros, a tecnologia, que avança mais a cada dia, já se tornou um vício para muitas pessoas.
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E o que isso tem a ver, afinal, com o isolamento social que é assunto principal desta reportagem? Tem tudo a ver. Jovens de todas as idades, crianças, e mesmo os adultos, têm se tornado verdadeiros dependentes tecnológicos. A comunicação digital, por exemplo, que predomina hoje em dia, já substituiu quase que por completo a necessidade de interação física, humana. E isso reflete negativamente na população idosa que, quando não domina essas ferramentas, acaba sendo excluída.
Veja, então, como apenas um único fator descrito – a tecnologia – já consegue provocar um impacto considerável na amplificação desse problema.
Isolamento social x depressão
A psicóloga, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental, revela que nem sempre a decisão de manter-se distante das interações interpessoais indica, necessariamente, que aquele indivíduo possui algum tipo de transtorno mental, como a depressão ou a fobia social. Obviamente, quadros clínicos, como esses, levam cada vez mais pessoas a evitarem o contato humano, mas a questão do isolamento social de maneira mais ampla acaba sendo um fenômeno multifacetado, segundo a especialista, impulsionado por uma gama de fatores que transcendem o espectro clínico.
“Na minha experiência clínica, o isolamento social se tornou um padrão preocupante, que é impulsionado por diferentes fatores, e que afeta tanto mulheres quanto homens, especialmente os jovens. Por exemplo: observo que muitas mulheres se isolam devido à insatisfação com a própria imagem corporal, alimentada pela comparação constante com padrões irreais nas redes sociais. E essa busca por autoaceitação condicionada, quando frustrada, desencadeia um ciclo de isolamento e, consequentemente, depressão. E vale lembrar que a pressão estética imposta pelas redes sociais tem um efeito devastador na autoestima feminina”, revela a psicóloga.

Já com relação aos homens, que não ficam de fora dessa tendência, Iara aponta o que os tem levado a realizar esse movimento: “Devido à baixa autoestima e à crença de que relacionamentos sinceros e satisfatórios só existem no mundo virtual, os homens têm preferido buscar interações online para evitar a frustração e a rejeição que temem encontrar no mundo real. E essa tendência reflete uma dificuldade crescente em lidar com as complexidades das relações interpessoais”, conta.
Afinal, quando a solidão pode se tornar um risco?
Iara revela que a linha entre a preferência pela solidão e o isolamento social é tênue e varia de pessoa para pessoa. De acordo com a especialista, a necessidade de momentos de introspecção é normal e saudável, mas o isolamento excessivo pode indicar problemas subjacentes. Veja quando é importante ficar em alerta, segundo a psicóloga:
Evitação social: quando a pessoa evita consistentemente interações sociais por medo, ansiedade ou baixa autoestima;
Perda de interesse: quando há uma perda significativa de interesse em atividades sociais que antes eram prazerosas;
Impacto negativo: quando o isolamento começa a afetar negativamente a saúde mental, o desempenho acadêmico ou profissional, ou os relacionamentos interpessoais;
Ideação suicida: quando a pessoa começa a ter pensamentos disfuncionais ao ponto de pensar ou tentar o suicídio.
Como podemos observar, o problema atinge todos os níveis da nossa sociedade, em todas as partes do mundo e tem múltiplas causas que precisam ser levadas em consideração.
Para que haja essa quebra de ciclo do isolamento social, Iara revela que é importante que haja um esforço conjunto, envolvendo ações tanto individuais, familiares e sem dúvidas, comunitárias e governamentais também.
A nível individual, a psicóloga orienta que o primeiro passo é reconhecer o problema e buscar ajuda psicológica. Uma dica importante dada pela especialista é também limitar o uso de redes sociais, e estabelecer metas realistas e que possam ser atingidas em curto prazo.
Cultivar hobbies e envolver-se em atividades prazerosas e atividades físicas, além de elevar a autoestima também pode ajudar a aumentar a conexão social entre as pessoas.

Vale reforçar ainda que apesar de ser uma ferramenta que facilita a comunicação de pessoas que estão, fisicamente, longe, a tecnologia não pode e não deve, de maneira nenhuma, substituir o hábito de estar presente, especialmente nas relações familiares. Deixar de estar com entes próximos por achar que uma ligação ou uma mensagem enviada pelo smatphone irá suprir esse contato pode se tornar um hábito que, sem perceber, levará familiares a não terem a chance de um último adeus.