Anistia ao 8 de Janeiro enfraquece instituições e cria 'precedente perigoso', avaliam especialistas

A redução das penas, avaliada pelo relator do PL na Câmara, pode ser uma medida mais viável

Por Felipe Ferreira |

O Projeto de Lei (PL) que concede anistia aos condenados no 8 de Janeiro, em tramitação na Câmara dos Deputados, divide o país. Mais de 40% dos brasileiros, segundo pesquisa Quaest, são contra o perdão aos crimes cometidos nos chamados “atos golpistas”, mas parte do Congresso insiste em travar o andamento de pautas caras à população até que o texto seja votado.

Especialistas ouvidos pelo portal 7Segundos alertam que o PL da Anistia pode criar um precedente perigoso, além de enfraquecer as instituições brasileiras. A medida, ainda, acaba minando a confiança do cidadão no sistema jurídico do país.

O advogado constitucionalista, João Costa, e o advogado eleitoral, Augusto Bonfim, apontam que a Constituição Federal não expressa o crime de golpe de Estado como impossibilitado de receber graça ou anistia, mas que a medida pode ferir as cláusulas pétreas da Carta Magna.

“Sob leitura estrita do texto [Constituição Federal], seria possível sustentar que o legislador ordinário pode aprovar lei de anistia que abranja condutas não listadas expressamente. Porém, o STF tem adotado interpretação de coerência interna da Constituição, ou seja, considerando que atos que atentem contra a própria ordem democrática vão contra o núcleo essencial da Magna Carta (cláusulas pétreas) e, por isso, seriam incompatíveis com a ideia de anistia”, disse João Costa.

Augusto Bonfim ressalta o momento político em que a atual Constituição foi escrita e afirma que anistiar crimes que atentem contra as instituições fragilizam o pacto constitucional.

“Embora não haja menção expressa aos crimes contra o Estado Democrático de Direito, a Constituição foi redigida como uma maneira de expressar a vontade e a supremacia do povo, possuindo um espírito de proteção máxima às instituições que foram representadas por ela. Anistiar atos dessa natureza fragiliza o pacto constitucional e a própria noção de responsabilização democrática”, disse o advogado eleitoral.

Congresso em conflito com o STF

A tentativa de parlamentares da direita de anistiar aliados políticos, sobretudo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), coloca diretamente o Legislativo e o Judiciário em pé de guerra. Apesar da competência do Legislativo sobre anistia, revogar condenações pode atentar contra a separação dos poderes.

“O Congresso possui competência formal para editar lei de anistia. Contudo, quando a anistia visa anular efeitos de decisões judiciais específicas — sobretudo decisões do STF relacionadas à proteção da ordem constitucional — surge conflito com o princípio da separação dos poderes e com a função protetiva do Judiciário. O Parlamento pode, em tese, editar leis penais e anistias; mas se a lei, ao operar retroativamente para “apagar” condenações por crimes que atingem a própria ordem democrática, legar efetivamente ao Legislativo a função de neutralizar o controle jurisdicional do Supremo, isso constitui ataque à independência e à competência do Judiciário e é suscetível de declaração de inconstitucionalidade pelo STF”, disse Costa.

João Costa é Advogado, Palestrante, Secretário-geral Adjunto da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/AL (foto: acervo pessoal)



O advogado Augusto Bonfim afirmou que os parlamentares podem suspender, apenas, processos em andamento, mas não condenações confirmadas pelo Supremo.

“O Congresso poderia, em tese, suspender os processos em andamento com a anistia, mas dificilmente teria legitimidade para revogar condenações já confirmadas pelo STF”, disse.

Advogado eleitoral, Augusto Bonfim (foto: acervo pessoal)


“Tentou resolver uma crise, mas criou outras”

O analista político, Ricardo Santa Ritta, aponta que esse “remédio” pensado por aliados de Bolsonaro como forma legal de legitimar a inocência do ex-presidente, invés de solucionar uma crise, criou outras.

“O PL da Anistia foi um remédio criado pelo Partido Liberal para tentar contrapor o STF nas duras decisões tomadas contra os contraventores do episódio de 8 de janeiro. De pano de fundo é defender os manifestantes, considerados pela dita direita, e ou os terroristas, chamados pela dita esquerda. Mas no pano de fundo seria uma forma legal de legitimar a inocência do ex-presidente Jair Bolsonaro, tornando-o apto para as eleições. É uma ferramenta de tentativa de resolver uma crise política, mas criou outras crises”, avalia Santa Ritta.

Segundo o analista, bolsoranistas têm usado o tema como moeda de troca para negociar o andamento de pautas do interesse coletivo no Congresso Nacional, como a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$5 mil, por exemplo.

“Se tornou a grande pauta da direita brasileira. Sobrestada outras matérias como o sistema nacional de educação, a estratégia nacional de saúde e nova faixa de isenção de imposto de renda. Os aliados do ex-presidente Bolsonaro impõem a Anistia como premissa principal para qualquer diálogo político. Tornou-se obsessão da narrativa deste espectro político. O erro deles foi não diversificar as possibilidades, concentraram força apenas e tão somente nesta pauta”, disse.

Ricardo Santa Ritta é analista político com experiência em gestão pública (foto: acervo pessoal)

Anistia ou Dosimetria?

  • O relator do projeto na Câmara dos Deputados, Paulinho da Força (Solidariedade), rechaça a ideia de anistia, indo contra a vontade de bolsonaristas, e estuda a redução das penas, apelidando o projeto de PL da Dosimetria.

    O constitucionalista João Costa lembra que dosimetria é ato jurisdicional do magistrado no momento de aplicar a sanção em cada caso concreto e que essa atividade não pode ser revista pelo Parlamento.

    “O que se discute atualmente, apesar do nome utilizado para se referir a essa prática, não é uma ‘revisão da dosimetria’ feita pelos magistrados, mas uma alteração legislativa das penas cominadas aos crimes imputados, com vistas a reduzir os patamares legais. Se aprovada, uma lei que reduza a pena mínima ou máxima de determinado crime poderá retroagir para beneficiar condenados”, esclarece Costa.

  • A medida é vista com bons olhos por Bonfim já que mantém o caráter punitivo para a proteção da democracia.

    “É uma alternativa que reconhece a gravidade dos atos, mas evita punições desproporcionais, preservando o caráter punitivo necessário para proteção da democracia. Ressaltando ainda que possui respaldo legal no artigo 5º, inciso XLVI da Constituição, que prevê a individualização da pena, sendo politicamente mais aceitável do que uma anistia ampla”, disse o advogado eleitoral.

    Para Santa Ritta, a alternativa ao PL da Anistia pode esfriar o debate acalorado sobre o tema no Congresso. “O PL da Dosimetria é justamente manter a decisão do judiciário, porém, com penas mais ajustadas. Não digo justas, mas ajustadas. É a busca do meio termo para esfriar um pouco esse debate”.

Aliados de Bolsonaro não querem revisão das penas

Em Maceió, um dos principais expoentes do bolsonarismo, o vereador Leonardo Dias (PL), rechaça a ideia de dosimetria, e diz que seu grupo vai lutar para anistiar pessoas que estão presas injustamente.

“O que foi aprovado em Plenário foi a urgência da anistia, não da dosimetria. Nós vamos lutar para dar anistia a todos aqueles que estão presos injustamente. Foi criada uma narrativa de golpe e muitas pessoas hoje estão pagando de forma desproporcional. É tão desproporcional e houve tanto erro que já se fala da dosimetria. Então isso é o reconhecimento de que o Supremo Tribunal Federal não agiu com a justiça que precisava”, disse o vereador ao 7Segundos.

Leonardo Dias é líder do PL, partido de Bolsonaro, na Câmara de Maceió (foto: Ascom)

Sem garantia de pacificação

A ideia de pacificação do país no pós-anistia é contestada por analistas políticos que levam em consideração os Estados Unidos. A invasão do Capitólio por apoiadores inflamados pelo discurso de Donald Trump foi alvo de perdão do republicano. O clima do país, no entanto, continua de polarização.

O assassinato do ativista político Charlie Kirk
, enquanto discursava em um evento, prova que o país note-americano continua dividido.

Para o analista Ricardo Santa Ritta, a divisão do país faz parte da democracia e reflete, ainda, a inserção dos algoritmos no cotidiano dos cidadãos.

“O país está dividido. É salutar. Faz parte da democracia. Mas o que enxergo é uma perda da força da polarização extrema. E percebo que isso vai perdendo espaço para uma sociedade que anseia por debates propositivos. (...) O mundo está dividido, as redes sociais e algoritmos mantém a sociedade assim. Tanto que arrisco que até o próximo ano, antes das eleições [no Brasil], a nova pauta incendiária será a regulação das mídias sociais. Mais um cenário de polarização política local visando o cenário polarizado mundialmente”, avalia.

Além da ideia de pacificação, conceder anistia aos condenados no 8 de Janeiro pode pode relativizar a eficácia da repressão a condutas antidemocráticas, como lembra João Costa.

“A aprovação de anistia para ataques graves às instituições enviaria um recado ambíguo: por um lado, poderia ser justificada como medida política de ‘pacificação’; por outro, criaria precedentes normativos que relativizam a eficácia da repressão penal a condutas antidemocráticas, potencialmente incentivando novas transgressões e empobrecendo a previsibilidade do ordenamento penal”, disse.

Inconformados com a possibilidade da anistia ampla não ser aprovada pelo Congresso, apoiadores do ex-presidente anunciaram, nessa sexta-feira (26), mais um ato em defesa do perdão aos envolvidos no 8 de Janeiro.

A manifestação está prevista para acontecer no próximo dia 7 de outubro em Brasília, com saída da Catedral.