Ser impedida de sair de casa, de estudar ou trabalhar, de ter amigos ou até mesmo de visitar a própria família. Não ter acesso a nenhuma, ou quase nenhuma quantia em dinheiro e depender do marido / companheiro até mesmo para comprar um absorvente íntimo no período menstrual. Levar gritos, ser silenciada, ameaçada. Ser empurrada, levar tapas, puxões de cabelo, socos, torções em braços, esganaduras. Até que, finalmente, após um ataque à faca, ou a tiros, ela morre.
O que acabou de ser descrito, e que mais se parece com o roteiro de um filme violento é, na verdade, a realidade de milhares de mulheres no Brasil. A violência doméstica que, muitas das vezes, culmina em uma tragédia, estampa as manchetes de jornais de todo o país, e também de Alagoas, todos os dias. O que a maioria desses casos tem em comum? O fato do assassino dessas mulheres ser o próprio companheiro da vítima, muitas vezes, pais dos filhos delas.
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Segundo o último Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam 2025), divulgado pelo Ministério das Mulheres, no ano de 2024 o Brasil contabilizou 1.450 casos de feminicídio e 2.485 homicídios dolosos e lesões corporais seguidas de morte. Em Alagoas, foram 21 mulheres mortas no mesmo ano, apenas pela condição de ser mulher, de acordo com o Boletim Estatístico de Crimes Violentos Letais Intencionais de 2024, emitido pela Secretaria de Estado de Segurança Pública de Alagoas (SSP/AL).
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O que talvez poucas pessoas levem em consideração, depois que o choque da morte da vítima passa — dando lugar à próxima manchete de feminicídio — é: e os filhos daquela mulher, que se foi? Em geral, o pai é o autor do crime; ou seja, possivelmente será preso (isso quando não comete suicídio após assassinar a companheira). De um jeito ou de outro, esses filhos se tornam completamente órfãos, sem a proteção e o acolhimento daquela mãe, nem da família que antes existia ali.
Diante disso, surge também uma pergunta que vai além dos dados e das manchetes: quem ampara essas crianças e adolescentes que, de uma hora para outra, perdem tudo? Sem a mãe, vítima direta do feminicídio, e sem o pai, que se torna agressor, fugitivo, preso ou morto, esses filhos ficam, muitas vezes, sob os cuidados de familiares já vulneráveis, que não possuem estrutura emocional, social ou financeira para assumir uma responsabilidade tão grande.
É justamente para tentar reduzir esse impacto e garantir um mínimo de proteção social que foi criada a Lei nº 14.717, de 31 de outubro de 2023, que institui uma pensão especial destinada aos filhos e dependentes menores de 18 anos que ficaram órfãos em decorrência do feminicídio. A legislação reconhece a brutalidade dessa ruptura familiar e busca assegurar a essas crianças um direito básico: a chance de recomeçar com dignidade.
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Entenda a diferença entre feminicídio x homicídio
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Embora ambos resultem na perda irreparável de uma vida, homicídio e feminicídio não são a mesma coisa. O homicídio é o ato de matar alguém, independentemente de gênero ou motivação. Já o feminicídio é o assassinato de uma mulher por motivação de gênero, quando ela é morta por ser mulher.
Essa qualificadora se aplica, principalmente, em situações de violência doméstica, relações marcadas por controle, ameaças, agressões e ciclos de abuso que se intensificam ao longo do tempo. -
Também abrange casos em que há menosprezo, discriminação ou ódio contra a condição feminina, reforçando que esse tipo de crime não é isolado, mas parte de um padrão estrutural de violência.
Reconhecer a diferença é fundamental. O feminicídio não é apenas mais um homicídio: é o desfecho extremo de uma violência anunciada, enraizada em desigualdades de gênero, e por isso recebe tratamento mais severo pela lei.
A reportagem do Portal 7Segundos conversou com o advogado especialista em Direito Previdenciário, Erick Cordeiro, para entender melhor como deverá funcionar a concessão desse benefício. Segundo ele, embora a lei represente um avanço importante na proteção social desses órfãos, o decreto que regulamenta a pensão estabelece critérios que podem, na prática, limitar o acesso de parte das famílias.
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Cordeiro explica que o primeiro grande obstáculo está no critério de renda. A exigência de que a família tenha renda mensal por pessoa de, no máximo, um quarto do salário mínimo (hoje, algo em torno de pouco mais de R$ 300) restringe o benefício apenas às situações de extrema vulnerabilidade. Para o advogado, isso cria um paradoxo: “Embora o objetivo seja focar nos mais necessitados, muitas famílias que, mesmo com uma renda um pouco superior, enfrentam sérias dificuldades financeiras após a perda da mãe, podem ficar desamparadas”. Em outras palavras, enquanto a lei tem caráter humanitário, seu alcance pode ser reduzido justamente no momento em que o núcleo familiar está mais fragilizado.

Por outro lado, a forma de comprovação do feminicídio foi flexibilizada para acelerar o acesso ao benefício. Não é necessário aguardar a sentença final, que pode levar anos, e a família pode apresentar documentos da fase inicial da investigação, como o auto de prisão em flagrante, o boletim de ocorrência ou a denúncia do Ministério Público. Essa medida permite que os filhos da vítima recebam ajuda financeira de forma mais rápida. Ainda assim, como alerta o advogado, essa é uma concessão inicial, sujeita a revisões ao longo do processo.
Outro ponto sensível envolve a impossibilidade de acumular a pensão especial com outros benefícios previdenciários ou assistenciais. Cordeiro destaca que a família será obrigada a escolher entre a pensão especial e qualquer outro benefício que a criança ou adolescente já receba, optando pelo mais vantajoso. Isso pode gerar dilemas difíceis, especialmente quando os valores são próximos ou quando o benefício anterior tem regras diferentes de duração. A pensão especial, por sua vez, é paga até os 18 anos e pode ser a única alternativa para famílias que não possuem outro tipo de proteção previdenciária, especialmente quando o agressor, muitas vezes pai da criança, não contribuía para o sistema.
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A legislação também prevê situações de risco para quem recebe a pensão de forma provisória. Caso o processo criminal ainda esteja em andamento, o benefício pode ser solicitado com base nos indícios e nas primeiras peças de investigação. Porém, a família deverá comprovar a cada dois anos o andamento do processo; caso contrário, o pagamento será suspenso. E se, ao final do julgamento, o crime não for tipificado como feminicídio, por exemplo, for desclassificado para homicídio simples, o benefício será cancelado.
Para o advogado, esse mecanismo cria uma “proteção imediata, mas não definitiva”, deixando as famílias em constante insegurança. Ainda assim, ele ressalta que a lei representa um passo significativo no reconhecimento do impacto profundo que o feminicídio causa na vida dos filhos que ficam. E reforça que, apesar das limitações, a pensão especial pode ser determinante para garantir a sobrevivência dessas crianças e adolescentes em um dos períodos mais traumáticos de suas vidas.
A criação da pensão especial para filhos e dependentes de vítimas de feminicídio é, portanto, mais do que uma medida financeira: é um reconhecimento do Estado sobre a profundidade das cicatrizes deixadas pela violência de gênero. Em meio ao luto, aos traumas e à ruptura familiar, esse amparo pode representar o primeiro passo para garantir que essas crianças e adolescentes tenham alguma segurança em um futuro repentinamente devastado.
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O governo federal estabeleceu que o benefício poderá ser requerido a partir do próximo dia 25 de novembro, data simbólica marcada pelo Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres. Já a lei entra oficialmente em vigor 60 dias após a publicação do decreto que a regulamenta, ou seja, em 29 de novembro de 2025. Até lá, Estados, municípios, famílias e profissionais do Direito se preparam para entender, na prática, como esse novo mecanismo de proteção poderá transformar a realidade dos órfãos do feminicídio no país.

