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A rejeição e o preconceito contra pessoas em situação de pobreza têm nome: aporofobia. Apesar de ser um fenômeno histórico, esse termo só ganhou visibilidade nos últimos anos, principalmente a partir de ações como as do padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, de São Paulo. Ele se tornou um dos principais críticos das cidades que adotam medidas hostis contra a população em situação de rua, classificando tais atitudes como manifestações claras de aporofobia.
De origem grega, a palavra combina os termos á-poros (pobre) e fobos (medo), e foi criada pela filósofa espanhola Adela Cortina nos anos 1990. Ela argumenta que muitas situações de preconceito, frequentemente atribuídas a racismo ou xenofobia, são, na verdade, formas de rejeição à pobreza. “Não rejeitamos estrangeiros se forem turistas, cantores ou atletas famosos, rejeitamos se forem pobres”, afirmou a filósofa.
No Brasil, essa realidade é cada vez mais evidente. A construção de barreiras físicas, como grades, lanças e muros que impedem a aproximação de pessoas em situação de rua, é uma das formas mais visíveis de aporofobia. Para o padre Júlio Lancellotti, essas ações representam uma linguagem simbólica da hostilidade. “Nós precisamos decidir: vamos hostilizar ou acolher? Vamos afastar essas pessoas ou transformá-las por meio de oportunidades e proteção social?”, questiona.
Além da arquitetura hostil, outra prática aporofóbica que ganha espaço em diversas cidades brasileiras é a transferência forçada de moradores de rua para outros municípios. Em Monte Mor (SP), por exemplo, o prefeito Edivaldo Antônio Brischi foi investigado por despejar sem-teto em Boituva (SP), sob ameaças de uso de spray de pimenta. A situação gerou indignação e reacendeu o debate sobre o papel do poder público em tratar o problema da pobreza urbana.
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No entanto, as manifestações de aporofobia não se limitam às ações do Estado. A sociedade também alimenta esse preconceito por meio de atitudes cotidianas, como a recusa em oferecer esmolas ou doações, muitas vezes incentivada por campanhas que associam a caridade ao “incentivo ao vício” de viver nas ruas. Padre Júlio critica essa abordagem e ressalta que a verdadeira esmola vem do Estado, que destina orçamentos insuficientes para áreas como saúde, habitação e assistência social.
A realidade de Arapiraca, Capital do Agreste alagoano, reflete esse contexto. Na cidade, abrigos institucionais destinados ao acolhimento de pessoas em situação de rua estão enfrentando resistência dos moradores das regiões onde estão instalados. Segundo as informações recebidas pelo Portal 7Segundos, um grupo se mobilizou para evitar a renovação dos contratos de locação dos imóveis, alegando que a criminalidade aumentou nas redondezas com a presença dessa população.
O Portal 7Segundos entrou em contato com a assessoria de comunicação da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, responsável pela administração dessas instituições. O órgão não confirmou o movimento relatado, mas informou que os abrigos estão para serem transferidos de localidade.
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PREOCUPAÇÃO COM O AUMENTO DA CRIMINALIDADE
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É inegável que o aumento da criminalidade é um problema que afeta comunidades em todo o Brasil. No entanto, especialistas alertam para a importância de não relacionar automaticamente a presença de pessoas em situação de rua à violência urbana. A criminalidade tem causas estruturais, como desigualdade social, desemprego e falta de acesso a políticas públicas, que precisam ser enfrentadas de forma ampla e integrada.
O Centro Pop, instituição que presta assistência à população em situação de rua em Arapiraca, é um exemplo de esforço nesse sentido. Anualmente, a unidade realiza mais de 25 mil atendimentos, oferecendo acompanhamento especializado, intermediando serviços públicos e ajudando na construção de novos projetos de vida para essas pessoas. Segundo a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, o trabalho inclui abordagens noturnas para identificar indivíduos que utilizam as ruas como espaço de moradia e apresentá-los aos serviços ofertados.
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Apesar disso, a rejeição dos moradores locais aos abrigos noturnos e ao trabalho do Centro Pop revela o quanto o preconceito contra a pobreza ainda persiste. “A população de rua incomoda porque lembra a todos nós da falência de um sistema que não garante o básico: trabalho, moradia e dignidade”, afirma o padre Júlio Lancellotti. Ele classifica essas pessoas como “refugiados urbanos”, pressionados a viverem em espaços limitados, como os próprios abrigos ou campos improvisados.
O aumento da população de rua em cidades como Arapiraca é reflexo direto do agravamento da pobreza no Brasil. Segundo dados do IBGE, a insegurança alimentar atinge mais da metade da população brasileira, e muitos desses indivíduos acabam buscando as ruas como única forma de sobrevivência. No entanto, a resposta da sociedade, frequentemente, tem sido o afastamento, em vez do acolhimento.
Um estudo sobre aporofobia conduzido por Adela Cortina destaca que o preconceito contra os pobres está enraizado em uma lógica de mercado: valorizamos quem pode nos oferecer algo em troca, enquanto rejeitamos aqueles que não têm recursos ou influência. Essa mentalidade, quando reproduzida pelo poder público, agrava ainda mais a situação.
Em Arapiraca, o debate sobre a renovação dos contratos dos abrigos institucionais deveria considerar não apenas os dados sobre criminalidade, mas também o impacto positivo dessas iniciativas na vida da população em situação de rua. O abrigo noturno, por exemplo, oferece muito mais do que um teto: ele garante higiene, segurança e a oportunidade de reconstruir uma trajetória digna.
Regionalizar o debate sobre aporofobia é essencial para que as soluções sejam pensadas de forma contextualizada. Em cidades do porte de Arapiraca, é possível criar políticas públicas que unam assistência social, segurança e diálogo com a comunidade, evitando a perpetuação de preconceitos e o abandono das populações vulneráveis.
Como bem resume o padre Júlio, a saída para a aporofobia é substituir a hostilidade pela hospitalidade. Isso significa investir em políticas que promovam o acesso à água, moradia, trabalho e serviços de saúde. Afinal, como ele mesmo lembra: “Ninguém quer morar embaixo de um viaduto. Mas a solução não é afastar essas pessoas, e sim transformá-las por meio do acolhimento e da dignidade”.
O desafio é garantir que ações como as do Centro Pop e dos abrigos institucionais em Arapiraca sejam fortalecidas, e não sufocadas por preconceitos. Somente assim será possível enfrentar a aporofobia de frente e construir uma sociedade mais justa e inclusiva.