
A noite do dia 4 de junho de 2025 ficará marcada pela cena inusitada de uma jovem estudante de Educação Física em aparente surto psicótico sendo contida com spray de pimenta e derrubada no asfalto por policiais militares. O episódio, ocorrido no bairro do Farol, em frente a instituição de ensino e a uma multidão, mobilizou redes sociais e provocou indignação entre especialistas, familiares e ativistas da saúde mental.
Segundo testemunhas, o surto teve início ainda dentro das instalações da faculdade onde a jovem estuda. Em vídeos amplamente divulgados, ela aparece desorientada, gritando frases desconexas e subindo em bancos e carros. A situação saiu do controle e avançou para a via pública, onde a jovem interrompeu o trânsito, tentou entrar em veículos e chegou a ficar parcialmente despida. A polícia foi acionada por relatos de ameaça. Ao chegar, os militares optaram pelo uso de “equipamentos de baixa letalidade”, como o spray de pimenta, para contê-la.
A Polícia Militar de Alagoas justificou a ação afirmando que a mulher não obedeceu aos comandos e tentou invadir a viatura. Já os familiares relataram que a jovem passa por problemas psicológicos e vinha interrompendo o uso de medicamentos. Embora nenhum procedimento oficial tenha sido aberto até o momento, a corporação afirmou que a conduta da guarnição será analisada, à luz de seus protocolos internos para atendimento a pacientes psiquiátricos.

Apesar da nota da PM destacar o cumprimento de um “rígido protocolo” para casos psiquiátricos, o uso de spray de pimenta e a forma como a jovem foi imobilizada no chão geraram críticas. O debate se intensificou nas redes sociais, onde internautas questionaram a falta de preparo para lidar com situações de saúde mental e a naturalização da força policial como primeira resposta.
O que também chamou a atenção foi o comportamento coletivo. Enquanto a jovem expressava sofrimento, poucos se dispuseram a oferecer acolhimento. A maioria observava à distância, gravava vídeos ou gritava. Especialistas alertam que esse tipo de reação evidencia o estigma social em torno da saúde mental, agravado pelo falta de orientação e preparo da população para lidar com surtos psiquiátricos.
O Portal 7Segundos entrou em contato com o Conselho Regional de Psicologia de Alagoas (CRP-15), que enfatizou que pessoas em sofrimento mental devem ser acolhidas com base nos princípios da dignidade humana, do cuidado em liberdade e do respeito aos direitos humanos, como prevê a Lei 10.216/2001.
De acordo com o presidente do Conselho, o psicólogo Leonardo Tenório Pedrosa, as instituições de segurança pública devem estar permanentemente capacitadas para atender a essas circunstâncias de forma técnica, humanizada e não violenta. Ele ressalta ainda a importância da presença de profissionais da saúde mental, como psicólogos e assistentes sociais, junto às equipes policiais, em parceria com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), para garantir o cuidado adequado e evitar abordagens que agravem o sofrimento da pessoa envolvida.

Leonardo Tenório Pedrosa - Presidente do Conselho Regional de Psicologia de Alagoas
“É fundamental reafirmar que pessoas em sofrimento mental devem ser acolhidas com base nos princípios da dignidade humana, do cuidado em liberdade e do respeito aos direitos humanos", enfatizou o presidente Leonardo.
Por fim, o CRP-15 defende políticas públicas intersetoriais que fortaleçam a saúde mental no âmbito coletivo, de forma que episódios como o ocorrido no Farol sejam tratados com a sensibilidade, o preparo e a responsabilidade que exigem.
MORTE EM "CÂMARA DE GÁS" MODIFICOU PROTOCOLOS DA PRF
Outro caso importante que evidencia a urgência de protocolos específicos para a abordagem policial de pessoas em crise de saúde mental é o de Genivaldo de Jesus, morto em 25 de maio de 2022, asfixiado dentro de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na cidade de Umbaúba, em Sergipe.
De acordo com a perícia, ele morreu por asfixia mecânica com inflamação de vias aéreas, embora os agentes da PRF alegassem que ele estava em surto. Posteriormente, o laudo do Instituto Médico Legal (IML) mostrou que ele não se encontrava nessa condição, sendo portador de esquizofrenia e estando medicado com quetiapina.
Três ex-policiais envolvidos, Paulo Rodolpho Lima Nascimento, William de Barros Noia e Kleber Nascimento Freitas, foram condenados por tortura e homicídio triplamente qualificado. A família de Genivaldo também foi indenizada em R$1 milhão, depois que a justiça entendeu que o Estado é responsável pelos atos de seus agentes.

A morte de Genivaldo modificou alguns protocolos da PRF
Em resposta ao ocorrido, a PRF emitiu orientações internas determinando que a abordagem de pessoas em crise deve ser “serena” e que a contenção física deve ser o “último recurso”. “Os policiais rodoviários federais devem estar cientes de que a aplicação ou uso de restrições físicas pode agravar qualquer agressão que esteja sendo exibida pelo indivíduo em crise”, diz o comunicado, assinado pelo diretor de operações da instituição, Djairlon Henrique Moura.

LEGISLAÇÃO PREVÊ MUDANÇAS
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DEPUTADA PROPÕE REGULAMENTAÇÃO EM AL
Diante do caso, a deputada estadual Gabi Gonçalves fez uma indicação formal ao Governo de Alagoas para que seja regulamentada a abordagem policial a pessoas em crise de saúde mental. A proposta prevê a criação de um protocolo estadual claro, humanizado e alinhado com os princípios da Reforma Psiquiátrica.
A indicação sugere, entre outras medidas, a atuação conjunta entre forças de segurança e equipes de saúde, o uso da contenção física apenas como último recurso e a presença de um mediador treinado para comunicação em casos críticos. A ideia é que os agentes de segurança pública passem por capacitações contínuas e obrigatórias, com foco em técnicas de desescalada e acolhimento.
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NO CONGRESSO, PROJETO NACIONAL AVANÇA
A nível federal, tramita no Senado o Projeto de Lei 922/2024, que estabelece regras para a abordagem de pessoas em crise de saúde mental. O texto propõe a redução do uso de sinais luminosos e sonoros em abordagens, a contenção física apenas em último caso e a obrigatoriedade de mediação especializada.
O projeto também determina que, após a abordagem, a pessoa em crise seja encaminhada a serviços de saúde ou assistência social. A proposta vem recebendo apoio de parlamentares e especialistas em saúde mental, que denunciam a falta de preparo dos órgãos de segurança para lidar com esse tipo de situação sem causar ainda mais sofrimento.
Protocolo ou improviso? O limite da ação policial
Em nota enviada à imprensa, a Polícia Militar de Alagoas afirmou que segue “rígido protocolo” para atendimento a ocorrências envolvendo pessoas com transtornos mentais, com o objetivo de preservar a integridade física de todos os envolvidos. Apesar disso, a corporação reconheceu que as ações da guarnição serão analisadas para apurar possíveis excessos.
A falta de procedimentos padronizados e a ausência de profissionais de saúde mental durante a ocorrência levantam questionamentos sobre se tais protocolos, de fato, existem ou se a abordagem se deu de forma improvisada. A recorrência de casos similares pelo país aponta que a segurança pública ainda falha em tratar o sofrimento psíquico como uma urgência de saúde, não como uma ameaça à ordem.
O que esperar do poder público?
O caso da jovem do Farol, infelizmente, não é isolado. Ao contrário, é um retrato da necessidade de mais preparo estrutural para lidar com crises emocionais em espaços públicos. A ausência de suporte imediato, a resposta policial sem intermediação de profissionais da saúde e a indiferença de quem assiste mostram como a saúde mental ainda é tratada à margem das políticas públicas.
A proposta em tramitação no Congresso e a iniciativa da deputada alagoana são importantes e urgentes. Enquanto tramitam, a vida de quem sofre um surto continua correndo risco nas ruas, com mais chances de terminar em contenção violenta do que em acolhimento.