
Por décadas, a palavra “maconha” foi sinônimo de marginalidade, repressão e tabu no Brasil. Mas, aos poucos, a ciência tem desfeito mitos e ampliado o debate sobre o uso terapêutico da planta. Em Alagoas, essa mudança de paradigma começa, finalmente, a se refletir nas políticas públicas. Famílias que lutavam na Justiça para garantir o direito ao tratamento com canabidiol (CBD), composto extraído da cannabis, agora contam com uma regulamentação oficial que garante o fornecimento gratuito do medicamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
No dia 1º de julho, o Governo de Alagoas publicou no Diário Oficial o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para o uso do CBD no tratamento de epilepsias refratárias — aquelas que não respondem a medicamentos convencionais — como a Síndrome de Dravet, a Síndrome de Lennox-Gastaut e o Complexo de Esclerose Tuberosa. A partir de agora, o tratamento poderá ser solicitado diretamente ao Estado, com base em critérios médicos claros, sem a necessidade de ações judiciais e sem o custo que, para muitos, era simplesmente inalcançável.
A decisão é resultado de pressão popular, embasamento científico e atuação judicial. Além de uma regulamentação administrativa, a iniciativa representa uma virada de chave em direção à democratização de um tratamento que, até aqui, era restrito às elites.

ENTRE A LEI E A VIDA REAL - REGLAMENTAÇÃO É CONQUISTA DE UMA LUTA COLETIVA
Pressão de associações, médicos e Defensoria garantiu implementação da lei de 2022
A conquista não veio do nada. A regulamentação em Alagoas só aconteceu após uma Ação Civil Pública ajuizada pela Defensoria Pública do Estado, em março de 2023, exigindo que o governo colocasse em prática a Lei Estadual nº 8.754, sancionada ainda em 2022. A norma previa a criação de um fluxo regulado para o acesso ao CBD pelo SUS, mas permaneceu inerte por quase dois anos.
Durante esse período, o acesso ao medicamento só era possível mediante ordem judicial. Segundo a Secretaria de Estado da Saúde (Sesau), 31 pacientes recebiam o CBD com recursos sequestrados diretamente da pasta e repassados a fornecedores, sem qualquer acompanhamento técnico.
Agora, com o protocolo aprovado, o Estado assume de fato sua responsabilidade no fornecimento e no monitoramento do tratamento. O documento técnico define critérios para prescrição, dosagem, acompanhamento e avaliação dos efeitos do medicamento, dando segurança tanto para pacientes quanto para os profissionais da rede pública.

ESPECIALISTAS
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“É O COMEÇO DE UMA NOVA ERA”, DIZ REGENERA
Para Rafael Mendes, advogado e diretor da Associação Regenera, organização sem fins lucrativos com sede em Arapiraca, a regulamentação representa um marco histórico para a saúde pública no estado:
“Desde 2015, quando a Anvisa autorizou a importação de produtos à base de cannabis, temos tentado transformar esse tratamento de luxo em um direito acessível. A Regenera nasceu com esse propósito: democratizar o acesso, oferecer apoio e mostrar que a cannabis medicinal é um instrumento legítimo de cuidado com a saúde”, afirma.A entidade presta apoio jurídico, médico e social às famílias interessadas no uso terapêutico da cannabis. “Se o paciente já tiver laudo e receita, pode se cadastrar pelo nosso site. Caso ainda não tenha, oferecemos acolhimento e encaminhamento profissional. Não estamos falando de ideologia, mas de vidas que podem ser transformadas por um tratamento eficiente e comprovado”, completa Rafael.
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MÉDICA DESTACA EFICÁCIA E SEGURANÇA DO TRATAMENTO
A médica neuropediatra Haina Medeiro também celebra a novidade e reforça que o uso do canabidiol tem respaldo científico sólido, sobretudo nos casos em que a medicina tradicional falha: “Estamos falando de crianças e adultos que convivem com dezenas de crises epilépticas por semana, mesmo usando vários medicamentos. Para síndromes como Dravet e Lennox-Gastaut, já há robusta evidência de que o CBD pode reduzir significativamente a frequência e a intensidade dessas crises”, explica.
A especialista ressalta ainda o ganho social representado pela medida. “Agora, esses pacientes não precisarão mais judicializar o acesso ao medicamento. Vão poder seguir o tratamento dentro da rede pública, com acompanhamento médico e controle de qualidade. Isso é dignidade, ciência e empatia reunidas em uma política pública”, avalia.
VOZES DA TRANSFORMAÇÃO
“Voltei a viver sem dor”: técnica de enfermagem relata melhora radical com uso da cannabis
A técnica de enfermagem Edilene Costa é um dos rostos por trás das estatísticas. Diagnosticada com múltiplas condições musculoesqueléticas, incluindo artrose, artrite, tendinite, bursite, esporão calcâneo e fascite plantar, ela chegou a enfrentar um quadro grave de síndrome do túnel do carpo nas duas mãos, que indicava necessidade cirúrgica. As dores intensas e a dormência constante também causavam noites de insônia e crises de ansiedade frequentes.
“A primeira prescrição veio da médica da Associação Regenera que indicou o óleo de THC. Senti alguma melhora, mas os efeitos não eram completos”, relembra. Foi quando, com apoio da minha filha, conheceu a Dra. Paula, ginecologista em Maceió, que orientou o uso combinado de THC e CBD. “Comecei esse tratamento em 24 de abril de 2024 e, desde então, tudo mudou.”
Durante cerca de um ano e meio, Edilene já vinha usando cannabis medicinal, mas foi com a combinação dos dois canabinoides que os avanços se consolidaram. “Antes, vivia à base de corticoides, Beta-30 e Citoneurin. Os efeitos eram passageiros. Hoje, durmo bem, não tenho mais crises de ansiedade, e minha qualidade de vida melhorou muito.”
Com tranquilidade, ela conta que não enfrentou preconceito em casa: “Minha família aceitou o tratamento com naturalidade. Eu sou muito grata. Voltei a viver sem dor, e posso exercer minha profissão com dignidade. A cannabis mudou a minha história.”

COMO TER ACESSO AO CANABIDIOL PELO SUS EM ALAGOAS
Novo protocolo determina documentação necessária e orienta pacientes
Para solicitar o tratamento com canabidiol pela rede pública de saúde, o paciente precisa apresentar laudo médico comprovando diagnóstico de uma das doenças previstas, além de receita, exames e histórico de tentativas terapêuticas convencionais. A documentação será analisada pela Secretaria de Estado da Saúde e, sendo aprovada, o fornecimento será regularizado.