
Um homem, já com seus 79 anos de idade, matou a irmã gêmea a pedradas no bairro Ponta Grosa, em Maceió, em setembro de 2024 (há quase um ano). O crime brutal foi associado ao quadro de saúde mental do homem, que era paciente psiquiátrico e possivelmente entrou em crise. Naquele período, a Política Antimanicomial, que prevê, entre outras medidas, o fechamento dos Centros Psiquiátricos Judiciários (CPJs) e a desinstitucionalização de pacientes em conflito com a lei, ainda estava em fase de implementação. Com isso, o idoso foi levado para o sistema prisional logo após ser detido pelo assassinato da irmã onde, após seis dias, foi encontrado morto.

Agora, a Política Antimanicomial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi concretizada em Alagoas, com o fechamento definitivo do Centro Psiquiátrico Judiciário Pedro Marinho Suruagy, ocorrido no último dia 18 de agosto. Isso significa que indivíduos com transtornos mentais que cometem crimes, inclusive crimes graves, como homicídios ou estupros, não ficarão mais custodiados nos chamados manicômios judiciários. Mas, para onde essas pessoas irão?
A partir de agora, pessoas com transtornos mentais que cometerem crimes serão encaminhadas para a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), formada principalmente pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Quem não tiver vínculos familiares poderá ser acolhido em residências terapêuticas e, em situações de crise, poderá passar por internação temporária em hospitais gerais com leitos psiquiátricos.
A proposta, defendida como um avanço histórico por juízes e gestores de saúde, prevê ainda que cada paciente tenha um plano terapêutico individual monitorado pelo Judiciário. Mas a pergunta que fica é se essa rede, marcada por uma conhecida prestação de serviço deficiente para a população em geral, terá condições reais de oferecer, na prática, o tratamento contínuo e seguro dessas pessoas.
Entrevistados pelo Portal 7Segundos, os juízes Márcio Roberto, supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Prisional (GMF), e Yulli Roter, coordenador do Grupo Interinstitucional de Atenção à Saúde Mental do TJAL, afirmam que a mudança foi planejada de forma cuidadosa e garantem a eficácia do novo sistema. Segundo eles, o fechamento do CPJ não significa ausência de controle, mas sim a transferência do acompanhamento para a Rede de Atenção Psicossocial, com mecanismos de fiscalização que envolvem tanto o Judiciário quanto as equipes de saúde.
Yulli Roter acrescenta que foram cerca de dois anos de preparação para aplicar a política nacional em Alagoas, período em que todos os pacientes do CPJ e seus familiares foram entrevistados para avaliar possibilidades de acolhimento, além de articulações com os CAPS para viabilizar os acompanhamentos e outras ações necessárias.

O desembargador Márcio Roberto explicou como deverá funcionar esses acompanhamentos. Ele disse que cada pessoa com transtorno mental em conflito com a lei passa agora a ser acompanhada por meio de um Projeto Terapêutico Singular (PTS), que deve ser elaborado em até 30 dias após a guia de execução de tratamento ambulatorial e atualizado a cada três meses.
O documento irá reunir todas as ações desenvolvidas pela Rede de Proteção Social e funcionará como instrumento de fiscalização das medidas de segurança, garantindo que o Judiciário continue monitorando o andamento dos casos, mesmo fora do ambiente prisional. “A desinstitucionalização é um processo que visa garantir direitos, rompendo a lógica da exclusão e promovendo autonomia e inserção social e comunitária de pessoas com transtorno mental”, destacou

O que é ser inimputável?
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Na Justiça, uma pessoa é considerada inimputável quando, por causa de um transtorno mental, não consegue entender que o que fez era um crime. Nesses casos, ela não recebe uma pena comum, como prisão, mas sim uma medida de segurança, que pode ser o acompanhamento em CAPS, o acolhimento em residências terapêuticas ou até uma internação temporária, se entrar em crise.
A menção sobre a inimputabilidade aparece muito nos tribunais do júri, em todo o mundo.
Em Alagoas, recentemente, em um dos julgamentos de Albino Santos de Lima, o serial killer de Maceió, a defesa buscou convencer jurados de que o réu não tinha plena capacidade de compreender seus atos, tentando enquadrá-lo como inimputável.
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A estratégia é bastante comum em crimes de grande repercussão, e mostra como é importante a avaliação séria da sanidade mental de um indivíduo e como o resultado disso pode mudar completamente o destino de uma pessoa que cometeu um crime: em vez de cumprir pena em presídio, ela pode ser submetida a medidas de segurança acompanhadas pela Rede de Atenção Psicossocial.
No caso de Albino, porém, esse argumento não se sustentou. Um laudo psiquiátrico elaborado por especialistas concluiu que ele é imputável, ou seja, tem plena capacidade mental para responder pelos crimes, e, por isso, continuará preso e sendo julgado criminalmente. Até agora, ele já passou por quatro julgamentos, acumulando penas que somam mais de cem anos de prisão.
De acordo com o juiz Yulli Roter, 120 pessoas em conflito com a lei foram desinstitucionalizadas com o fechamento do CPJ em Alagoas. O destino delas, a partir de agora, depende da estrutura oferecida pela Rede de Atenção Psicossocial. A Secretaria Estadual de Saúde (Sesau), em entrevista ao 7Segundos, afirmou que os CAPS instalados no estado têm condições de absorver a demanda, com o apoio de novas residências terapêuticas para quem não tem família e de rotinas de acompanhamento pensadas para que ninguém fique sem assistência.

Segundo a Secretaria, desde 2023 vem sendo feita uma expansão da rede para garantir esse atendimento. Foram criados 11 novos Serviços Residenciais Terapêuticos, quatro deles exclusivos para pessoas que saíram do CPJ e não têm mais família ou vínculos próximos. Além disso, cerca de 900 profissionais de saúde foram capacitados no ano passado para lidar com situações de crise em saúde mental, o que demonstra interesse por parte do estado em garantir assistência adequada para essas pessoas.
Como será feito o tratamento desses pacientes dentro dos CAPS em AL
De acordo com a Secretaria de Saúde, o tratamento oferecido nos CAPS será feito por equipes formadas por médicos, psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais. Além das consultas, os pacientes terão acesso a atividades terapêuticas individuais e em grupo, acompanhamento com uso de medicamentos quando necessário, visitas domiciliares e até apoio para se reintegrarem à comunidade.
Em algumas unidades, chamadas CAPS III, também existe a possibilidade de acolhimento noturno em situações de maior gravidade, funcionando como uma espécie de observação de curta duração. Já as internações em hospitais são consideradas o último recurso, usadas apenas quando há crises severas e por tempo limitado.
Embora o intuito da Política Antimanicomial do CNJ seja positivo, propondo um tratamento mais humano para pessoas consideradas inimputáveis mas que, por ventura, tiveram algum problema com a lei, é inegável que parte da população fique receosa diante do fato de que essas pessoas permanecerão em convívio social mesmo após o cometimento de crimes.
Especialista alagoana em Direito Criminal fala sobre o assunto
A advogada criminalista Rayanni Albuquerque conta que também vê a Política Antimanicomial como positiva, de modo geral. Para ela, o fechamento dos CPJs representa uma evolução no tratamento de pessoas inimputáveis, deixando de lado o caráter apenas punitivo e priorizando a reabilitação. Entretanto, ela ressalta que ainda é preciso cautela com relação a eficácia das redes de proteção social e também sobre a capacidade do sistema público de saúde em dar suporte adequado, principalmente quando se trata de crimes graves. “A preocupação está na gestão do risco e na garantia de acompanhamento contínuo, para que a liberdade assistida não represente vulnerabilidade para o próprio paciente ou para a sociedade”, destacou.

Rayanni, que atua no direito criminal há 10 anos, conta que já acompanhou casos em que pessoas consideradas inimputáveis cometeram crimes graves, como homicídios e estupros. A especialista traz um ponto de vista pouco abordado, quando se fala em política antimanicomial para pessoas inimputáveis que cometem crimes: o sentimento das famílias desses pacientes. Segundo ela, os familiares vivem, na verdade, um misto de sentimentos: de um lado, sentem alívio ao saber que o parente terá acompanhamento especializado; de outro, convivem com o medo e a insegurança diante da gravidade do ato. "Muitas famílias precisam de suporte psicológico não só para lidar com o trauma, mas também para compreender a situação legal e social do paciente", relatou.
O fechamento do CPJ em Alagoas marca, sem dúvidas, um avanço histórico dentro da política antimanicomial e coloca o estado como o segundo do país a implementar a resolução do Conselho Nacional de Justiça, segundo o Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL). Para magistrados e gestores de saúde, a nova forma de lidar com pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei garante dignidade, cidadania e mais chances de reinserção social.
No entanto, como lembra a advogada Rayanni Albuquerque, os desafios permanecem: a rede de atenção precisa assegurar acompanhamento contínuo e seguro, especialmente em casos de crimes graves, para que não haja riscos nem para os pacientes, nem para a sociedade, que deverá conviver com essas pessoas. Entre a promessa de um sistema mais humano e a conhecida fragilidade da saúde pública, o futuro dessa política em Alagoas ainda desperta dúvidas. Resta, agora, observar como a nova medida irá funcionar na prática daqui pra frente.