Cosme Rogério

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O 13 de maio na crônica graciliânica

13/05/2014 11h11

Os dois textos subtitulados abaixo são da lavra de Graciliano Ramos e compõem um opúsculo chamado “Pequena História da República”, escrito em 1940, mas que só veio a lume duas décadas depois. Voltado ao público infanto-juvenil, se trata de uma espécie de crônica histórica, onde o mestre da escrita concisa dista de qualquer narrativa causal e edificante e estabelece um diálogo às avessas com os historiadores, desafiando o sentido atribuído aos fatos históricos nacionais.

De acordo com Noé Freire Sandes, professor de história da UFMG, “A sua narrativa anula a ação subjetiva e propositiva dos homens. Graciliano evita explicações, pois as coisas simplesmente seguem um ritmo próprio ditado pelos interesses materiais”.

Já que o momento é propício, vale a pena unir o útil ao agradável: fazer uma reflexão sobre o(s) significado(s) da data em que se celebra a ilegalidade da escravidão no Brasil (apenas a ilegalidade, porque a escravidão ainda persiste) através da literatura produzida pelo nome maior de nosso realismo crítico.

OS ANTIGOS SENHORES

No fim do século passado a maior parte da riqueza estava nas mãos dos proprietários rurais. E a cultura da terra fora, durante séculos, feita por escravos. Os colonos europeus, que enriqueceram algumas regiões do país, eram ainda pouco numerosos.

Em 1888, depois de uma intensa campanha abolicionista, a libertação veio. Os proprietários se acharam pobres de repente – e a produção se desorganizou. Na verdade o preto representava força de trabalho e capital. Enquanto podia arrastar a enxada no eito, esfalfava-se, largava o couro na unha do feitor. Velho e estazado, acabava-se lentamente num canto de senzala, mas ainda assim tinha valor. Valor modesto, constituído pela recordação de serviços prestados, por conselhos que a velhice prudente oferece à mocidade imprudente, por histórias de Trancoso narradas às crianças. Enfim o negro valia, até morrer, umas centenas de mil-réis. Isso desaparecera em 1885, com a alforria dos escravos sexagenários. Prejuízo pequeno. Já em setembro de 1871 uma lei ferira de morte a instituição milenária, libertando os filhos de mulher escrava. Uma desgraça para os senhores, evidentemente, mas desgraça a prazo. Restava a esperança de cada um ir liquidando os seus negócios com vagar, adaptar-se a uma nova ordem econômica, procurar algum comprador ingênuo e transformar em mercadoria o capital humano que se depreciava.

Não houve tempo. A liberdade chegou de supetão. E várias pessoas despertaram ricas em 13 de maio de 1888 e adormeceram arruinadas. O mais provável é não terem adormecido. Muita aflição, muito choro e cabelos arrancados. O chicote do feitor ia descansar. Os engenhos do nordeste ficariam de fogo morto.

A família imperial perdeu neste dia amizades seguras. E se não as houvesse perdido, pouca utilidade elas teriam daí em diante: seriam amizades de pobre, amizades incômodas.

OS ANTIGOS ESCRAVOS

A abolição trouxe, é claro, um grande assanhamento nas senzalas. Os negros dançaram, cantaram, praticaram excessos, depois saíram sem destino, meio doidos. Não precisavam esconder-se: podiam andar pelos caminhos sem a ameaça do capitão-do-mato e castigo no tronco.

Muitos, porém, se deixaram ficar nas cozinhas das casas grandes. A negra velha, antiga mucama de iaiá e ama-de-leite dos filhos de Iaiá, não pôde afastar-se. Até então recebera ordens e obedecera, às vezes resmungando e estirando o beiço, mas obedecera, porque se tinha habituado a ouvir gritos, e Deus Nosso Senhor, com os seus poderes, dividira as criaturas em senhores e escravos.

Esse hábito se quebrara de chofre; evidentemente Nosso Senhor não fora consultado nisso. No fim de maio a preta velha aguentou mal a irritação dos patrões. Sinha-moça exigiu qualquer coisa, impaciente, batendo com o pé, e a negra teve um rompante.

– Cativeiro já se acabou, sinhá. Agora é tão como tão bom.

Arrumou a trouxa e ganhou o mundo. Depois voltou, arrependida, mas achou mudanças: os brancos arriados, murchos, bambos; as plantações murchas, bambas, arriadas; a fazenda quase deserta. A autoridade soberba do patriarca encolhera. Tudo encolhera – e nesse encolhimento, nessa conformação, os ombros caíam resignados, os braços moles se cruzavam, os olhos espiavam no fogo as panelas escassas. Pobreza, devastação, indícios de miséria. Desalento, rugas e cabelos grisalhos.

A negra velha se retirou definitivamente, o coração grosso e o estômago roído. Entre os numerosos filhos dela, tipos de várias cores, havia na verdade um alvacento que se casou com moça branca e gerou um sarará que se fez doutor e ganhou dinheiro. Mas isso foi muito mais tarde. Naquele momento a preta velha se achou pequena e sozinha, triste. Acoitou-se num mocambo e morreu de fome.

– Tão bom como tão bom.

A alegria tumultuosa dos negros foi substituída por uma vaga inquietação. Escravos, tinham a certeza de que não lhes faltaria um pedaço de bacalhau, uma esteira na senzala e a roupa de baeta com que se vestiam. Livres, necessitavam prover-se dessas coisas – e não se achavam aptos para obtê-las.

A gratidão dos negros a d. Isabel, a princesa que lhes deu a alforria, esfriou bastante, passadas as manifestações excessivas de maio de 88.
 

Sobre o blog

Licenciado em Filosofia (FACESTA), mestrando em Sociologia (PPGS-UFAL), foi coordenador administrativo de núcleo regional da Secretaria Executiva de Economia Solidária, Trabalho e Renda de Alagoas (SERT), secretário Municipal de Cultura, Turismo e Esporte de Palmeira dos Índios, diretor da Casa Museu Graciliano Ramos e conselheiro do Fórum Estadual de Turismo de Alagoas (FORETUR-AL). Lecionou na Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL - Campus III) e na Faculdade São Tomás de Aquino (FACESTA). Atualmente, é professor da rede pública de ensino do Estado de Alagoas, comunicador, ator e produtor cultural.

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