Política

Estudantes desmaiam de fome em escolas primárias da Venezuela

Êxodo maciço de venezuelanos esgota fileiras de alunos e professores

Por Folha de São Paulo com The New York Times 02/12/2019 11h11
Estudantes desmaiam de fome em escolas primárias da Venezuela
Estudantes desmaiam de fome em escolas primárias da Venezuela - Foto: Adriana Loureiro Fernandez/NYT

Centenas de crianças foram ao pátio da escola em filas para ouvir um bispo católico.

“Rezamos pelas crianças que estão nas ruas e não conseguem vir à escola”, disse o bispo Jorge Quintero, falando no liceu Augusto D’Aubeterre, na cidade litorânea de Boca de Uchire, numa manhã quente de outubro. “Elas são muitas.”

Ao final da cerimônia de 15 minutos de duração, cinco crianças haviam desmaiado e duas tinham sido levadas embora de ambulância.

Os desmaios nessa escola primária se tornaram comuns, isso porque muitos alunos chegam à sala de aula sem terem tomado o café da manhã ou mesmo jantado na noite anterior.

Em outras escolas as crianças perguntam se há comida antes de decidir se vão às aulas ou não.

“Não é possível educar pessoas esqueléticas e famintas”, disse a professora Maira Marín, líder sindical em Boca de Uchire.

A devastadora crise econômica que assola a Venezuela há seis anos esvaziou o sistema escolar, no passado o orgulho desse país petrolífero e durante décadas uma das razões de ele possuir a maior mobilidade social ascendente da região.

No passado, as escolas venezuelanas, mesmo as das áreas remotas do país, garantiam aos alunos uma chance sólida de chegar a uma das melhores universidades da Venezuela, que, por sua vez, abriam as portas para as grandes instituições de ensino superior dos EUA e um lugar entre a elite venezuelana.

A fome é apenas um dos muitos problemas que estão debilitando as escolas hoje. Milhões de venezuelanos deixaram o país nos últimos anos, esgotando as fileiras de alunos e de professores.

Muitos dos educadores que ainda restam abandonaram a profissão depois de ver seus salários se tornarem quase irrisórios devido a anos de hiperinflação implacável.

Em alguns lugares não mais que cem alunos comparecem para estudar em escolas que antes tinham milhares.

O colapso do sistema educacional venezuelano não apenas condena uma geração inteira à pobreza como corre o risco de fazer o desenvolvimento nacional retroceder décadas e atrofiar gravemente seu potencial de crescimento, dizem especialistas e professores.

“Uma geração inteira está sendo deixada para trás”, disse o pesquisador educacional Luis Bravo, da Universidade Central da Venezuela, em Caracas.

“O sistema educacional de hoje não permite que as crianças se tornem membros significativos da sociedade.”

O governo parou de publicar estatísticas educacionais em 2014. Mas visitas feitas a mais de uma dúzia de escolas em cinco estados venezuelanos e entrevistas realizadas com dezenas de professores e pais de alunos apontam para uma queda vertiginosa na frequência escolar este ano.

Muitas escolas nesse país antes rico vêm fechando as portas, na medida em que crianças desnutridas e professores que recebem quase nada abandonam as salas de aula para tentar subsistir nas ruas ou abandonar o país.

É um motivo de grande constrangimento para o autoproclamado governo socialista, que sempre pregou a inclusão social.

A situação na Venezuela forma um contraste marcante com países que os líderes venezuelanos apontam como sendo os exemplos que eles seguem —Cuba e Rússia—, ambos os quais conseguiram proteger o sistema de ensino primário contra os piores efeitos de uma retração econômica comparável na década de 1990.

Os alunos venezuelanos começaram a faltar às aulas pouco depois de Nicolás Maduro chegar à Presidência, em 2013.

A queda no preço do petróleo cru, o principal produto de exportação do país, somada ao esforço de Maduro para redobrar os controles monetários e de preços, feito em um momento inapropriado, mergulharam a economia numa recessão da qual ela ainda não emergiu.

Algumas crianças venezuelanas não estão indo à escola porque muitas escolas deixaram de servir a merenda ou porque os pais não têm mais como pagar por uniformes, materiais escolares ou condução.

Outras crianças acompanharam seus pais em uma das maiores crises mundiais de deslocamento populacional: cerca de 4 milhões de venezuelanos deixaram o país desde 2015, segundo as Nações Unidas.

Milhares dos 550 mil professores do país não compareceram para dar aulas quando as escolas foram reabertas, em setembro, segundo o sindicato nacional de professores, abrindo mão de um salário mensal equivalente a US$ 8 para tentarem a sorte no exterior ou no garimpo ilegal de ouro.

Em Zulia, o estado mais povoado do país, até 60% dos 65 mil professores escolares teriam abandonado o trabalho nos últimos anos, segundo estimativas do líder local do sindicato dos professores, Alexander Castro.

“As professoras nos dizem que preferem ganhar alguns dólares como manicures a receber o salário mínimo dando aula”, explicou.

Para manter as escolas funcionando, os professores remanescentes frequentemente ensinam todas as disciplinas ou reúnem alunos de diferentes anos em uma mesma sala de aula.

Quase todas as 12 escolas visitadas reduziram seus horários de funcionamento; algumas ficam abertas apenas um ou dois dias por semana.

Na pequena cidade de Parmana, na planície central do país, apenas quatro dos 150 alunos matriculados frequentaram as aulas em outubro.

Os quatro alunos, de idades diferentes, ficaram na mesma sala de aula dilapidada, sem luz elétrica, estudando tudo, desde o alfabeto até álgebra. A única professora remanescente tentava incentivá-los com um sorriso desanimado.

As outras crianças do povoado foram ajudar seus pais, trabalhando no campo ou nos barcos pesqueiros para ajudar a colocar comida na mesa.

Em Maracaibo, a segunda maior cidade do país, um cartaz visto recentemente diante de uma escola dilapidada e sem luz elétrica dizia “por favor, venham às aulas, mesmo sem uniforme escolar”.

Antes de decidir se vão entrar, as crianças perguntam aos professores na entrada se há merenda.

A maior escola de Maracaibo não tem mais banheiro em condição de funcionar. A escola tem capacidade para 3.000 alunos, mas apenas cem estão indo às aulas.

Metade dos professores de uma escola de Santa Barbara, perto de Caracas, não voltaram ao trabalho após as férias, levando a direção a pedir a ajuda de pais voluntários para manter as aulas funcionando.

Do outro lado da capital, na cidade de Rio Chico, a maioria das salas da escola local estão fechadas por falta de alunos e professores. Os professores disseram que, quando os poucos alunos remanescentes chegam, a primeira coisa que fazem é perguntar onde está a cozinheira.

Hugo Chávez, o mentor e predecessor de Maduro, fez da ampliação do ensino público um dos pilares de sua popular campanha pelo chamado socialismo do século 21.

Durante uma década, até 2013, o país promoveu melhorias constantes na parcela de crianças matriculadas no sistema de ensino, graças à merenda escolar generosa e à distribuição gratuita de alimentos, materiais escolares e dinheiro para pais e alunos. Chávez construiu centenas de escolas.

Mas suas políticas populistas foram concentradas mais em aumentar o número de alunos nas escolas do que na qualidade do ensino.

E quando os cofres do país começaram a secar, o avanço educacional conquistado por seu governo retrocedeu.

Enquanto o número de alunos nas escolas caía vertiginosamente, Maduro continuou a afirmar que seu governo estava enfocando os gastos com a educação a despeito da “guerra econômica brutal” travada por seus inimigos.

“Nem uma única escola ou sala de aula na Venezuela foi ou será fechada”, disse o presidente em discurso transmitido pela TV em abril deste ano. “Jamais negaremos o acesso à educação.”

Em agosto, para reforçar as fileiras dos professores, Maduro prometeu enviar milhares de membros da juventude do partido governista para dar aulas.

Especialistas em educação dizem que poucos desses ativistas sem formação vão acrescentar qualquer valor pedagógico às escolas ou sequer chegar até elas.

Ao mesmo tempo, o pool de professores reais do país está encolhendo. No principal centro de formação de professores da Venezuela, a Universidade Pedagógica Experimental Libertador, o número de diplomados caiu 70% entre 2014 e 2018.

Os professores venezuelanos estão entre os setores da população mais afetados pelo colapso econômico. Desde 2013 o PIB venezuelano encolheu em dois terços e o salário mínimo mensal caiu para US$ 8.

Com a dolarização “de facto” da economia promovida por Maduro neste ano, muitos funcionários públicos puderam começar a suplementar seus salários oficiais, pagos na moeda local quase sem valor, cobrando por seus serviços em dólar.

Mas a liberalização indireta da economia venezuelana controlada pouco beneficiou os professores de comunidades pobres, nas quais as famílias dos alunos têm pouco acesso à moeda estrangeira.

As nove crianças da família Caruto, em Boca de Uchire, deixaram de ir à escola nos dias em que o refeitório não abre.

“Não posso mandar meus filhos à escola com fome”, disse José Luis Caruto, 36, que está desempregado e tem dois filhos.

Sua irmã Yuxi Caruto, 17, foi a última da família a abandonar os estudos, sem condições de pagar a tarifa do ônibus.

Ela tentou voltar a estudar em um centro comunitário local, mas depois de duas semanas de aula os professores deixaram de ir ao centro.

Hoje Yuxi passa seu tempo cuidando de seu filho de 1 ano.

“Quero aprender matemática e a ler e escrever rápido. Tenho medo de que, quando meu filho crescer e começar a fazer perguntas, eu não saiba responder. Mas neste momento nem sequer temos o suficiente para comer."