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Na Venezuela, cidadãos lamentam a morte de entes queridos e da democracia

Após eleições conturbadas, o líder autoritário Nicolás Maduro se declarou vencedor e ordenou repressão aos dissidentes

Por R7, com The new York Times 21/08/2024 09h09
Na Venezuela, cidadãos lamentam a morte de entes queridos e da democracia
País está de luto pela morte de 24 pessoas mortas em meio à violência das manifestações - Foto: The New York Times

Jeison Gabriel España saiu de casa, em 28 de julho, para a primeira – e última – eleição de sua vida tão breve. Um dia depois de votar para presidente no pleito que uniu milhões de venezuelanos em um pedido de mudança, o rapaz de 18 anos foi morto a tiros na rua.

O líder autoritário do país, Nicolás Maduro, primeiro se declarou vencedor, apesar da montanha de provas da vitória do candidato da oposição; depois, ordenou às forças de segurança que reprimissem os dissidentes.

“Por que mataram meu menino?”, soluçava a tia de España, que o criou, durante o enterro.

No momento, a Venezuela está de luto não só pelas 24 pessoas mortas em meio à violência das manifestações, mas também pelos últimos fiapos de democracia há muito vilipendiada. Os pequenos espaços que ainda existiam para a resistência estão sumindo de um dia para o outro, se não de uma hora para a outra, com o presidente enfurecido massacrando o eleitorado que tentou desbancá-lo.

Durante muitos anos, as famílias venezuelanas separadas pela imigração acreditaram que um dia voltariam a se reunir em uma nação melhorada, mesmo que não integralmente democrática, mas depois da última eleição muitos enterraram esse ideal. “Jamais voltarei. A Venezuela virou meu pior pesadelo”, disse uma cientista de dados que mora no Chile, pedindo que seu nome não fosse publicado porque sua mãe e outros parentes continuam em sua terra natal.

Na capital, Caracas, a polícia montou postos de verificação para checar celulares, à procura de qualquer sinal de dissidência. As casas de supostos eleitores da oposição começaram a ser marcadas com um “x” em tinta preta. As forças de segurança têm ordens de deter qualquer um até pelo menor sinal de descontentamento.

Antes, eram apenas os ativistas que corriam risco de prisão, mas mais de 1.400 pessoas foram detidas nas últimas semanas, de acordo com o grupo de fiscalização Penal Forum. Destas, a maioria é gente comum, e mais de cem são menores de idade. As autoridades estão cancelando o passaporte de ativistas de direitos humanos e outros, impedindo-os de sair do país. Muitos jornalistas, depois de receber avisos de que estão sendo vigiados pela espionagem oficial, começaram a fugir.

Em 17 de agosto, no estado de Zulia, membros da Guarda Nacional saíram levando um padre na frente da congregação. “Cristo, príncipe da paz!”, cantavam os fiéis, ajoelhados, enquanto ele desaparecia de vista. Durante muito tempo, o governo evitou prender figuras religiosas.

Os líderes da oposição, Edmundo González e María Corina Machado, tentam manter um clima de otimismo. Embora as aparições públicas de ambos tenham sido raras desde as eleições, eles não foram detidos.

Nesse mesmo dia, como parte do movimento de apoio global, centenas de pessoas se reuniram em Caracas, apesar do destacamento de milhares de policiais pela cidade. “Não temos medo!”, gritavam os manifestantes, muitos exibindo cópias das atas de votação geradas pelos equipamentos oficiais.

Machado estava lá, discursando em cima de um caminhão; já González não apareceu. Quem participa desses eventos corre grande risco de ser preso – tanto líderes quanto apoiadores –, e não se sabe quanto tempo vão durar. No geral, o clima é de censura. “Liberdade!”, ousaram gritar duas pessoas na passagem da procissão do funeral de Olinger Montaño, barbeiro de 24 anos que morreu no mesmo dia que España.

Mais que depressa, as pessoas à volta pediram silêncio. No cemitério, com a mãe de Montaño soluçando sobre o caixão do filho, ninguém pediu justiça ou se aventurou a levantar a bandeira nacional. “Hoje foi ele; amanhã pode ser qualquer um de nós”, comentou um amigo.

Risco de prisão
O “The New York Times” compareceu ao enterro e analisou o atestado de óbito de cinco jovens mortos em protestos nos dias posteriores à eleição, além de entrevistar os familiares de vários outros. Para protegê-los, o jornal decidiu omitir o nome dos entrevistados para este artigo.

Maduro duvidou publicamente da veracidade dessas mortes. Tarek William Saab, procurador-geral e aliado político do presidente, afirmou que não eram vítimas, mas sim atores. “Os caras caem e jogam ketchup em cima”, comentou em uma coletiva recente, assegurando que o governo vai encontrar e prender aqueles que “fingiram” a própria morte.

España não conheceu outro governo a não ser o do movimento socialista que assumiu o poder em 1999. Seus pais morreram quando ainda era garoto, por isso foi criado pela tia. Embora os dois vivessem em dificuldades em uma área pobre da capital, ele não queria imigrar, como milhões de venezuelanos tinham feito; preferia votar.

Um dia depois da eleição, saiu com os vizinhos para protestar pela primeira vez na vida, como contou a tia. Maduro, porém, já tinha enviado as tropas e gangues aliadas, os chamados “colectivos”, para as ruas. Naquela noite, ela recebeu um telefonema de alguém que lhe disse que o sobrinho tinha sido morto com um único tiro no peito, como descreve o atestado de óbito. Não se sabe quem o matou.

Maduro, no poder desde 2013, disputou a eleição de 28 de julho contra González, ex-diplomata pouco conhecido que contava com o apoio de Machado, líder oposicionista muito popular. Há muito, o presidente promove o pleito para dar um ar de legitimidade ao seu governo autoritário, sempre manipulando o sistema a seu favor.

Conforme a data da eleição ia se aproximando, poucos acreditavam que ele viesse a ceder o poder, perdendo ou não. Os EUA ofereceram uma recompensa de US$ 15 milhões por informações que levassem à sua captura, e o Tribunal Internacional de Crimes de Guerra o investiga por crimes contra a humanidade, o que o torna vulnerável se deixar o cargo.

Apesar disso, o apoio maciço ao movimento liderado por González e Machado acendeu uma chama de esperança para muitos que contavam com um milagre. E se Maduro admitisse a derrota e fugisse para um país amigo? Com a votação encerrada, Jorge Rodríguez, presidente da Assembleia Legislativa e poderoso aliado do presidente, apareceu na TV. “Não podemos falar de resultados, mas podemos nos mostrar a vocês”, disse ele, com um sorriso largo.

Pessoas em luto no funeral de Olinger Montaño, um barbeiro de 24 anos também morto em um protesto
The New York Times - 02.08.2024
O governo afirma que Maduro conquistou 52 por cento dos votos válidos, mas não exibiu provas para embasar a alegação; a oposição, que reuniu as contagens impressas de mais de 80 por cento das urnas e postou tudo na internet, garante que González ganhou com 67 por cento dos votos. A atitude do presidente foi amplamente condenada, pois até os analistas políticos mais conservadores afirmam que houve roubo, puro e simples.

Os EUA reconhecem González como o vencedor; a União Europeia e os vizinhos Colômbia e Brasil não consideram Maduro como vencedor. Já o relatório da ONU, publicado em 13 de agosto, concluiu que o tribunal eleitoral do país “não obedece às medidas básicas de transparência e integridade essenciais para a promoção de eleições confiáveis”. Para piorar, é pouco provável que o Estado aponte os responsáveis pelas mortes cometidas durante as manifestações, já que crimes semelhantes perpetrados em circunstâncias parecidas não foram punidos.

Eleições violentas

Dorián Rondón, de 22 anos, saiu de casa, em Caracas, com o irmão mais novo e dois primos para os protestos de 29 de julho. Por volta das dez da noite, em meio à nuvem de gás lacrimogêneo e aos disparos, o grupo o perdeu de vista. O irmão passou praticamente a noite toda à sua procura até que, por volta de meio-dia do dia seguinte, uma foto do corpo do rapaz sobre uns arbustos, ainda de mochila, começou a circular entre as mensagens de texto de sua comunidade.

Segundo o atestado de óbito, ele foi vítima de uma bala que lhe perfurou o pulmão. No velório, sua mãe confessou estar com tanto ódio que mal conseguia chorar. “Minha esperança agora é conseguir fugir com o mais novo.”

O novo mandato só terá início em janeiro e, por isso, os representantes norte-americanos, colombianos e brasileiros estão tentando usar o intervalo atual para tentar negociar com Maduro. O objetivo é convencê-lo a deixar o cargo, selar um acordo de compartilhamento do poder com a oposição ou pelo menos concordar em proporcionar condições mais democráticas para as eleições municipais e legislativas do ano que vem. Entretanto, todos se mostram céticos em relação a qualquer tipo de mudança.

Longe de Caracas, em uma região do extremo ocidente do país, um grupo de alunos levava o corpo de Isaías Fuenmayor, disposto em um caixão diminuto.

O governo afirma que Maduro conquistou 52 por cento dos votos válidos, mas não exibiu provas para embasar a alegação.

Com 15 anos, ele é uma das vítimas mais jovens dos tumultos pós-eleição, a ponto de nem ter idade para votar. Sua mãe não parava de chorar no caminho para o cemitério. Ela disse que o garoto nem tinha participado da manifestação. “Ele cruzou com os manifestantes depois de ter saído do ensaio para uma festa de aniversário e então foi morto.” O atestado de óbito diz que ele levou um tiro no pescoço.

Os amigos e vizinhos fizeram três cartazes para acompanhar a cerimônia fúnebre. O primeiro dizia: “Roubaram os sonhos de Isaías”; o segundo, “Isaías, jamais o esqueceremos”; já o terceiro ousava fazer um pedido: “Justiça por Isaías.”