Acidentes

Avião da Voepass que caiu há 1 ano teve falha omitida em diário de bordo horas antes de decolar

Falta de registro escrito sobre a possível pane teria sido usada como justificativa para empresa liberar ATR para voar

Por 7Segundos com G1/Globo 02/08/2025 11h11 - Atualizado em 02/08/2025 11h11
Avião da Voepass que caiu há 1 ano teve falha omitida em diário de bordo horas antes de decolar
Aeronave da Voepass - Foto: Reprodução/Voepass

Quase um ano após o desastre aéreo que matou 62 pessoas a bordo de um avião da Voepass, em Vinhedo (SP), o relato de um ex-funcionário que presenciou a última manutenção do ATR 72-500 acrescenta um fato novo às horas que antecederam a decolagem para Cascavel, em 9 de agosto de 2024.

Segundo a testemunha, que atuava no setor de manutenção da companhia, ouvido com exclusividade pelo g1, o piloto que utilizou a aeronave na noite anterior ao acidente relatou naquela data à equipe de manutenção que havia enfrentado problemas com o sistema de degelo do avião. A falha, que deveria impedir a aeronave de decolar para Cascavel na manhã seguinte, foi omitida do diário de bordo técnico (TLB) e, por isso, ignorada pela liderança do hangar naquela madrugada.

TLB é a sigla para technical log book, um livro que registra as principais ocorrências mecânicas a bordo de uma aeronave. Esse tipo de documento é obrigatório pelas normas da aviação comercial de passageiros no Brasil e no exterior.

"Essa aeronave nunca tinha apresentado esse tipo de falha, né? Só que no dia do acidente, quando essa aeronave chegou de Guarulhos para Ribeirão, ela foi reportada verbalmente pelo comandante que trouxe ela. Foi alegado que ela tinha apresentado o airframe [fault] (alerta emitido quando há problema no degelo) durante o voo. E ela estava desarmando sozinha. Ele acionava [o sistema] e ela desarmava. Coisa que não poderia acontecer." , afirmou a testemunha ao g1.

Segundo o Regulamento Brasileiro da Aviação Civil, o pleno funcionamento do sistema de degelo é condição obrigatória para voos com destino a regiões com previsão de formação de gelo como no trajeto do voo 2283 da Voepass no dia do desastre.

Esta reportagem integra um conteúdo especial do g1 após 1 ano da queda do voo 2283, a maior tragédia da aviação brasileira em quase duas décadas. Na próxima quarta-feira, 6 de agosto, será lançado no portal o web-documentário "81" segundos, que reconta o desastre. Veja o trailer abaixo

A cronologia

Pelo relato do ex-funcionário, o voo do comandante que teria enfrentado problemas no airframe era o 2293. Dados do site Flightradar, que monitora voos do mundo todo, confirmam que esse voo foi operado pela mesma aeronave que caiu em Vinhedo, a PS-VPB.

A cronologia da aeronave no dia do acidente, reunindo o relato do ex-funcionário com as informações oficiais dos voos, foi a seguinte:

00h12: avião sai de Guarulhos

1:00: avião pousa em Ribeirão Preto, onde o piloto relata verbalmente ter enfrentado falhas no sistema de degelo

Entre 1h e 5h30: avião parado no hangar para manutenção básica, sem investigar a pane relatada pelo piloto, sob a justificativa de que ela não foi formalizada por escrito

5h32: avião decola de Ribeirão

6h35: avião pousa em Guarulhos

8h20: avião sai de Guarulhos a caminho de Cascavel

11:56: avião decola de Cascavel rumo a Guarulhos

13h22: avião cai em Vinhedo

Falha não reportada

Segundo a testemunha ouvida pelo g1, a decisão do piloto de não reportar formalmente a falha identificada por ele ocorreu em um contexto em que funcionários eram pressionados pela diretoria da empresa a evitar que aeronaves ficassem paradas para manutenção. Ele também diz que quase sempre havia pouco tempo para avaliar as condições dos aviões. Sem o registro no TLB, os mecânicos não tinham autonomia para corrigir a falha.

"Ela [a aeronave] chegou por último, por volta de meia-noite e meia, quase uma hora, e 5h30 da manhã ela já tinha que estar lá em cima para poder assumir voo. É um período muito curto para ser feita manutenção na aeronave. Era a própria diretoria que exigia isso, queria o avião voando. Então assim, eles nem pesquisaram [o problema no sistema de degelo]", diz.

De acordo com o ex-funcionário, a equipe levou à liderança do turno o alerta verbal do piloto, mas, ao saber que não havia registro formal no TLB, a decisão foi de ignorar o problema e manter os voos previstos para a manhã.

"O próprio líder questionou: 'bom, se ele não reportou em livro, não tem pane na aeronave'. Esse era o legado da empresa: se o comandante reporta, tem ação de manutenção; se não reportou, eles não vão perder tempo com nada que ele falar", disse o ex-funcionário.

O gelo e a queda

Já se sabe, pelas informações da caixa-preta, que o botão de airframe de-icing (sistema de degelo) do ATR 72-500 foi acionado três vezes durante o voo de Cascavel até a queda em Vinhedo. E, provavelmente, ele não funcionou, de acordo com Carlos Eduardo Palhares Machado, diretor do Instituto Nacional de Criminalística (INC), uma das pessoas que atuaram diretamente na perícia.

"Eles estarem voando em uma altitude, uma altitude que tem gelo, em uma condição de gelo severo, e ter apertado por três vezes e, muito provavelmente, aquele dispositivo não ter funcionado, isso é muito relevante do ponto de vista do que causou, do que pode ter causado o acidente", diz Palhares.

O Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) indicou no relatório preliminar que a caixa-preta do avião captou uma conversa entre os pilotos em que mencionam uma falha no sistema de degelo.

Os sistemas de degelo e antigelo, que ocorrem para evitar e eliminar gelo, são essenciais na aviação. Segundo especialistas, o excesso de gelo nas asas não só aumenta o peso do avião como muda a aerodinâmica e afeta a velocidade e sustentação da aeronave no ar.

O doutor em engenharia aeronáutica da Universidade de São Paulo (USP) James Waterhouse explica que a inoperância do sistema de proteção contra gelo deveria inviabilizar o trajeto para locais com essa condição meteorológica.

"O avião tem que comprovar a capacidade de voar com segurança em condição de formação de gelo severo. Caso contrário, você não poderia despachar um voo para um local que teria formação de gelo", afirmou.

O g1 apurou que a informação de que o problema no degelo não foi reportado em diário de bordo e foi ignorada pela empresa já é de conhecimento da Polícia Federal, que investiga eventual prática de crime na tragédia. (leia mais abaixo)

Além do Cenipa e da PF, o acidente é investigado pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que cassou o certificado de operação de voos da companhia após apurar falhas de segurança.

Tragédia evitável?


Ao se recordar de tudo que aconteceu, o ex-funcionário acredita que, se esse problema tivesse sido reportado no diário de bordo, a tragédia teria sido evitada.

"Se o piloto reporta, essa aeronave tinha ficado aqui [em Ribeirão Preto] ou ela não teria ido para o destino final que ela foi. Então, assim, com certeza um acidente poderia ter sido evitado."

Na entrevista exclusiva, o ex-funcionário abordou os seguintes problemas:

-Falha no degelo, equipe reduzida: a madrugada anterior ao desastre.
-Manutenções adiadas e pressão para se evitar aviões parados;
-Problemas anteriores e a apreensão sobre as condições do ATR 72-500;