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'Vivo o luto de uma pessoa que não morreu’, diz mulher de jovem que perdeu memória após câncer no cérebro

Lívia Souza descobriu que o marido, José Carlos, tinha um linfoma não Hodgkin após um diagnóstico errado

Por TERRA 11/08/2025 10h10
'Vivo o luto de uma pessoa que não morreu’, diz mulher de jovem que perdeu memória após câncer no cérebro
Homem perde a memória após câncer no cérebro e esposa viraliza - Foto: Reprodução

O encontro entre Lívia Souza e José Carlos Pereira Lima é um daqueles que faz até o mais cético em destino pensar: era para ser. Depois de conhecer um garoto tímido com quem não trocou sequer uma palavra, a mineira sonhou que se casava com ele. Parecia loucura, mas se tornou realidade apenas dois anos depois. O triste é que a história bonita de amor foi esquecida pelo marido, que perdeu a memória e as habilidades cognitivas após ser diagnosticado com um tumor cerebral.

Hoje, José é dependente da esposa para tudo, e Lívia aproveita para mostrar a rotina nas redes sociais. Apenas no TikTok, a mineira acumula um número impressionante de visualizações e recebe uma enxurrada de comentários positivos de pessoas de todo o Brasil. “Ele teve um câncer no cérebro e mal lembra meu nome, mas é claro que eu sinto falta de cada parte da personalidade que ele tinha antes”, diz a publicação viral com 2,3 milhões de reproduções.

‘Sonhei que casava com ele antes de namorar’

Tem encontros que fluem de uma maneira tão mágica que nem a lógica dá conta de explicar. Foi assim com Lívia e José. Os dois eram apenas adolescentes quando foram apresentados por um amigo em comum em 2010, mas nada parecia estar a favor deles. Além de morar em cidades diferentes, o ‘oi’ tímido do rapaz não empolgou a jovem.

Dois dias depois, Lívia sonhou que caminhava ao altar vestida de noiva. Quem esperava por ela era José, aquele estranho que não tinha lhe dado ‘bola’ no primeiro contato. De lá para cá, foi uma questão de tempo para um pedido de namoro inusitado acontecer.

Após alguns encontros, José decidiu mandar uma mensagem por um site de bate-papo. “No dia 26 de fevereiro de 2012, ele me pediu em namoro, do nada, de madrugada. Eu estava no MSN conversando com ele e recebi um ‘menina, tu quer namorar comigo?’. Perguntei se ele estava ficando doido e disse: ‘me liga aqui para ver se essa conversa é verdadeira mesmo’. Até então eu achei que ele estava zoando com a minha cara”, relembrou.

Na verdade, José falava sério. Mesmo sem nunca ter beijado o rapaz, ela topou embarcar nessa. “Ele não me beijava, nem nada. Um dia eu quem decidi dar um beijo nele, foi quando engatamos de verdade. Com seis meses namorando, tive um problema na casa onde eu morava e fui morar com a família dele”, relata.

A relação sempre correu em velocidade alta. Três meses após irem morar juntos, os dois alugaram um lugar só para eles, motivados por uma briga de Lívia com a irmã de José. Na época com 18 anos, ele passou a servir ao exército. “Um dia ele ficou cinco dias detido porque roubaram o celular dele na guarda e não podia usar celular lá. Quando eu fui visitar, não deixaram porque não éramos casados”, explica ela.

O estado civil mudaria menos de um ano depois, com um casamento que pegou amigos e familiares de surpresa. “Todo mundo achando que eu estava grávida, porque eu tinha acabado de fazer 18 anos, né? Mas eu estava bem tranquila com relação a isso”, garante.

Casados, os dois voltaram a morar na casa da família de José e viviam um relacionamento tranquilo e cheio de sonhos. Até que, em 2019, ele começou a se comportar de maneira estranha.

O primeiro diagnóstico

O primeiro sinal veio disfarçado de dor no estômago. Depois, alguns comportamentos estranhos: um ciúme que nunca existiu antes, noites em claro observando Lívia dormir e a vontade incontrolável de tomar litros de leite. “Ele nunca foi assim. E, de repente, ia me buscar todo dia no serviço, acordava de madrugada orando, me olhando. Eu não entendia”, lembra.

Inicialmente, Lívia pensou que o marido estava com depressão e se impressionou durante um culto da igreja onde frequentavam. No final da celebração, um rapaz que pregava pediu para falar com José: “O que você está passando e ainda vai passar não é para morte, mas para a glória do Senhor”.

Meses depois, José passou a ter crises convulsivas, já não falava com facilidade e só conseguia se comunicar por gestos. Quando dizia algo, era sempre desconexo, segundo a esposa. Diversas vezes, ele falou que um carro o perseguia. Foi quando Lívia resolveu levá-lo ao hospital.

Após dias de idas e vindas, o médico foi direto: voltavam para casa com remédios prescritos ou ele fica internado na ala psiquiátrica para investigação. Ela achou melhor deixar o marido em observação. “Desculpa, Zé, mas eu tenho que fazer isso”, disse ao companheiro.

Após exames de imagem e uma biópsia, diagnosticaram José com um glioma grau 2, um tipo de tumor cerebral que afeta o sistema nervoso central.

“O médico me chamou para contar o diagnóstico e afirmou que, na melhor das hipóteses, ele teria uns três meses de vida. Nessa hora, eu só lembrava da revelação. Saí gritando dentro do hospital, chorando: ‘Deus, o Senhor falou que ele chegaria a lugares incríveis’. Entrei em desespero”, detalha.

“Nesse dia, uma das irmãs do José me pediu para não contar o diagnóstico para ele. Pois esperei irem embora, chamei o José na ‘pracinha’ do hospital e contei. Ele abaixou a cabeça, deu um sorriso e correu uma lágrima do rosto dele”, relata.

Na época, ele chegou a pedir a separação: “Ele me disse que estava com muito medo e que me amava muito, mas não queria que eu sofresse o que ele ia sofrer.”

Em um dos lapsos de lucidez, o marido de Lívia contou que chegou a se ver em um púlpito, contando sua história de superação. “O médico não é o autor da minha história”, repetia para a esposa.

Segundo Mariana Pivaro, onco-hematologista da Oncoclínicas, alguns sintomas apresentados por José são comuns em pacientes com tumores cerebrais.

“A crise convulsiva é a manifestação clínica mais comum dos tumores cerebrais, ocorrendo em 50 a 80% dos pacientes com lesões no cérebro. Náuseas e vômitos, quando associados à cefaleia, estão relacionados ao aumento da pressão intracraniana, causado pela obstrução do fluxo do líquor ou pelo efeito de massa do tumor”, explica.

O diagnóstico final

Meses após a descoberta, José deu entrada no tratamento no Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília, onde moram. Foi lá que eles descobriram que o diagnóstico, na verdade, era muito mais otimista do que pensavam. Ele não tinha um glioma, mas um linfoma não Hodgkin de grandes células tipo B.

O tratamento padrão para esse tipo de tumor inclui exames de imagem, análise do líquor, exame oftalmológico e PET-CT de corpo inteiro. “O objetivo é confirmar que o acometimento é exclusivo do sistema nervoso central, sem evidências de doença em outras partes do organismo”, explica a onco-hematologista. A partir disso, o paciente deve ser tratado em duas fases, incluindo quimioterapia.

Foi exatamente o que José fez. O marido de Lívia passou por oito ciclos de quimioterapia e foi submetido à radioterapia em seu tratamento. As idas frequentes ao hospital aconteceram justamente em 2020, período em que o mundo enfrentava o pavor da chegada da pandemia de Covid-19.

“Ficamos praticamente 5 meses morando no hospital, porque eu não conseguia ir para casa com ele, o José estava muito responsivo, aprontava muito! Saiu arrancando aparelho, cateter, a sonda de alimentação, ele chegou a fazer isso oito vezes. Nesse período em que ele ficou internado, a gente só foi em casa uma vez”, relembra Lívia.

Nesse processo, ela viu o marido perder capacidades cognitivas e a memória. A história de amor dos dois, cheia de sinais do universo e de sonhos, não existia mais na cabeça de José. “Mas quando alguém pergunta ‘quem ela é para você?’, ele já sabe e responde ‘é a minha esposa’”, conta.

A falta de memória e a perda cognitiva podem ter ligação com o tratamento radioterápico, conforme explica a médica. “Essa abordagem está associada a uma toxicidade neurológica importante a longo prazo, que pode causar alterações cognitivas como déficit de atenção, mudanças de comportamento e prejuízo da memória, além de alterações motoras”, detalha Mariana.

'Minha irmã é uma das poucas pessoas que ele se lembra’

Com um marido em tratamento oncológico, sem memória e dependente de ajuda, Lívia ainda tinha outra situação grave para digerir emocionalmente: a morte precoce da irmã Érica, aos 18 anos. “Não tem como eu contar a nossa história sem passar por essa parte, porque das poucas coisas que o José lembra, ele se lembra da minha irmã”, garante.

Pouco antes do marido iniciar o tratamento radioterápico, Lívia teve a ideia de convidar a família para passar o Natal com eles, já que seria difícil se deslocar com o José de Brasília para Minas Gerais, onde ela nasceu.

Na véspera da festividade, a irmã de Lívia fez um pedido para ela: “Quero que você me prometa que não vai abandonar o José por nada”. “Eu respondi que sim e ela falou: ‘ele está com muito medo de morrer e se sentindo muito sozinho’”, relembra.

Essa foi a última conversa séria que as irmãs tiveram. Na madrugada do dia 25 de dezembro, Érica desapareceu. “Acordei de madrugada para levar o José ao banheiro e vi que ela não estava na sala. Liguei para ela e um rapaz atendeu falando que tinha achado ela desorientada. Ele me deu o endereço e fui de pijama mesmo. Fiquei a madrugada toda procurando e nada”, diz. “No fim das contas, esse rapaz não estava com a minha irmã.”

O corpo de Érica foi identificado pela polícia no dia seguinte e Lívia encontrou uma carta deixada por ela aos familiares. “Quando olhar para o céu de noite, tem estrelas que sabem rir", dizia o bilhete. “No velório dela, foi a última vez que vi o José lúcido. Lá mesmo, ele teve uma convulsão, e eu fiquei entre o velório e o hospital”, conta.

‘Ele é 100% dependente de mim’

Atualmente, a rotina de Lívia é bem diferente de quando ela disse o ‘sim’ no altar para o José. “Ele é 100% dependente de mim”, diz. “Quando ele perdeu a memória, falei para a família, e eles se afastaram”, completa.

Sem rede de apoio e sem ajuda da família do marido, ela precisou abrir mão de um bom cargo na área de cobranças em um banco.

“Fiquei um ano presencial e esse período foi onde mais machucou meu psicológico. Às vezes, eu ouvia no trabalho: ‘você só está aqui por causa do José’. Aquilo foi jogando o meu valor profissional lá embaixo”, relembra. Para conseguir dar conta do período fora de casa, Lívia deixava uma babá eletrônica e tinha a ajuda de uma vizinha de 80 anos.

“Tinha dia que eu entrava para ver o José pela babá eletrônica, aí ele tinha colocado uma panela no micro-ondas e, de repente, a babá eletrônica ficava preta. Eu saía correndo de lá, não estava nem aí se eles fossem me dar advertência. Na maioria das vezes, eles me liberavam quando acontecia alguma coisa com o José, porque eles viam o meu desespero mesmo”, afirma.
Agora, ela trabalha no regime home office em uma empresa de tecnologia, o que flexibiliza a rotina com o marido. É Lívia quem coloca as refeições na boca de José, dá banho, escova os dentes e o leva para compromissos como hospital e academia. “Ele não consegue colocar comida no prato sozinho, porque não tem a noção da quantidade”, relata.

O dia a dia em casa é simples: José acorda, toma café e assiste TV enquanto ela trabalha. “De hora em hora, a Alexa toca para ele beber água (...) Eu brinco que ele é meu secretário.” Lívia também faz questão de sair da rotina para animar o marido. “Quando posso, levo ele para viajar, para ter momentos bons”, garante.

Mesmo sem lembranças e com dificuldades cognitivas, José tem memória musical impressionante, como conta a esposa. “Ele decora músicas com uma facilidade absurda!”, comemora.

Para ajudar na saúde mental durante todo esse processo, ela contou com a ajuda de uma psicóloga. “Quando eu expliquei para ela como eu me sinto em relação ao José, ela me disse: ‘é como se você vivesse um luto de uma pessoa que não morreu e tivesse tido um filho no meio dessa história toda’. Nossa! Isso foi muito importante para mim”, desabafa.

O TikTok também foi uma forma de aliviar a rotina pesada com o marido. Desde que criou um perfil na rede social, Lívia acumulou milhões de visualizações e seguidores que se preocupam com o bem-estar dela e o de José.

Se seguirá nessa rotina, Lívia, que hoje tem 28 anos, ainda não sabe. “Desde que minha irmã faleceu, aprendi a não programar o amanhã”, diz. No entanto, ela carrega a esperança do marido voltar a ser como era quando o conheceu.

Do José de antes, ela sente saudade do ombro amigo em momentos difíceis. “Ele era meu amigo, meu parceiro e, hoje, sinto muita falta disso. Mas também amo a alegria do Zé de hoje, o jeito dele”, elogia.