Rock in Rio abriu caminho para megaeventos no Brasil
Até o final de 2015, oito festivais de música internacional ainda acontecerão em São Paulo e no Rio, totalizando 25 grandes eventos durante todo o ano. A boa saúde de megaeventos (tanto em atrações de peso quanto em número de público) é incontestável hoje em dia, mas também relativamente recente: há 30 anos, quando o primeiro Rock in Rio aconteceu e abriu caminho para um filão no Brasil, as iniciativas eram limitadas, o mercado era precário e as estruturas, primitivas.
Como aquele cenário mudou? O que motivou essa profissionalização? "Não foi da noite para o dia", pondera o empresário Manoel Poladian, 72, um pioneiro do showbiz nacional. Filho de um fotógrafo e uma dona de casa armênios que imigraram para o Brasil em meio à Segunda Guerra Mundial, Poladian inaugurou os primeiros recordes de público no Brasil no início dos anos 1970, quando fez o musical Uma Noite em Buenos Aires, com Astor Piazzola, Mariano Mores, Jorge Sobral e os maiores nomes do tango. Foram 1,5 milhão de ingressos vendidos e 175 shows no Anhembi, em São Paulo.
Àquela altura, Poladian já era um veterano. Em 1961, com 19 anos, tateava no ramo dos festivais universitários quando criou o Festival da Balança, cujo elenco, já na primeira edição no Teatro Mackenzie, era invejável: Vinicius de Moraes, Baden Powell, Silvinha Telles, Luiz Bonfá, Tamba Trio, Dick Farney, Lúcio Alves. Três mil pessoas encheram um espaço onde só cabiam 1,5 mil, havia gente pendurada na sacada, nos corredores, em pé.
É possível dizer que Poladian nivelou o chão de terra batida no qual os empresários atuais colocaram asfalto. Tinha tanta gente querendo se apresentar no seu Festival da Balança que Poladian teve que dizer não para alguns postulantes. "Chico Buarque ficou na porta, não o deixei cantar porque já estava com quatro horas de show. E também nem sabia quem era, sabia apenas que vinha da USP (Universidade de São Paulo)", lembra o veterano.
Outro veterano produtor de shows e festivais, Cesar Castanho viu coisas inacreditáveis em sua carreira, que começou nos anos 1970. Presenciou um impassível Miles Davis tocando um show inteiro de costas para a plateia. Providenciou um médico para ficar de plantão 24 horas no quarto ao lado do baleado trompetista Chet Baker, para que ele reunisse condições de subir ao palco.
Nescafé Blues e Free Jazz
Castanho conta que trabalhou duro para realizar em São Paulo, em setembro de 1978, uma versão compacta do Montreux Jazz Festival suíço, com Dizzy Gillespie, Chick Corea, Stan Getz, Al Jarreau, Peter Tosh, Taj Mahal, entre outros. Mas, desgastado com o trabalho que fazia para outros produtores, deixou vazar sua paixão pelo blues e virou chefe de si mesmo. Realizou então um festival ainda sem nome, no Ginásio do Ibirapuera, em 1990, no qual reuniu 14 mil pessoas em uma noite.
"Foi aí que eu vi a chance", conta. Ele inventou o Nescafé Blues, em 1994, um festival hoje extinto, mas que foi referencial para os amantes do gênero blues. Eric Burdon, Coco Montoya, Otis Clay, Robben Ford, Robert Cray, Pinetop Perkins, Wilson Pickett, Jeff Healey: Castanho apresentou às plateias alguns dos nomes fundamentais da música, artistas que não chegavam até aqui naqueles dias. Também provou que havia na metrópole um público para aquele tipo de música.
Castanho trabalhou em quase todos os grandes eventos de música do país: Rock in Rio 2001, Free Jazz Festival, foi produtor no 150 Nightclub do Maksoud Plaza, no Club A do World Trade Center. Ele conta que foi o inventor do nome Free Jazz Festival. "Na época, todos os funcionários da companhia de cigarros Souza Cruz, que mantinha o festival, eram obrigados a andar com um maço de cigarros no bolso. Certo dia, quando a gente discutia detalhes da mostra na empresa, um cara tirou um maço do bolso e a marca era Free. Como é um dos gêneros do jazz, me veio o insight na hora. Não foi nada muito pensado".
Má reputação
Já a criação do Free Jazz Festival tem um único responsável: o amor. As irmãs Sylvia e Monique Gardenberg, donas da Dueto, a produtora que inventou a mostra, namoravam músicos na época: o pianista e arranjador Rique Pantoja (Sylvia) e o saxofonista Zé Nogueira (Monique). Por causa deles, as garotas, jovens produtoras, intensificaram o interesse pela música e rodaram o mundo produzindo shows de Djavan. Nesse tempo, conta Monique, ficaram fascinadas pelos novos talentos que despontavam no jazz dos anos 1980: Wynton Marsalis, Pat Metheny, Bobby McFerrin, David Sanborn, Stanley Jordan.
"Veio então o desejo de trazer essa gente toda para tocar aqui. De outra forma, esses músicos demorariam décadas para chegar ao nosso país", lembra Monique. Sylvia morreu em 1998, o festival transmutou-se, mudou de nome, mas festejou três décadas esse ano com uma edição especial batizada como Brasiljazzfest, que teve mais de 20 mil espectadores.
Havia uma fama ruim, de não pagamento, de não devolução de equipamento, falta de profissionalismo generalizado. Foi difícil refazer a imagem, resgatar a confiança no nosso mercado (Monique Gardenberg)
Ela conta que, para os que se aventuraram primeiro na realização de festivais, o primeiro problema a ser enfrentado era a má reputação. "Havia uma fama ruim, de não pagamento, de não devolução de equipamento, falta de profissionalismo generalizado. Foi difícil refazer a imagem, resgatar a confiança no nosso mercado", diz Monique.
O Free Jazz e o Rock In Rio, nascidos no mesmo ano de 1985, foram os responsáveis por esta virada, ela avalia. Uma amizade com o produtor americano Quincy Jones e outros contatos internacionais foi o ponto de partida. "Outra peça fundamental foi John Philips, braço direito de George Wein, produtor dos maiores festivais de jazz dos Estados Unidos. Ele nos deu o caminho das pedras. Não tínhamos ideia de como chegar nos artistas, não havia internet, ainda operávamos via telex em 1985. Pedimos os contatos dos artistas que queríamos convidar e ele respondeu: 'Informação é ouro'. Nós replicamos: 'Amizade é mais do que ouro'. Mantemos contato até hoje", lembra.
Monsters of Rock
O heavy metal demorou para achar o seu parque de diversões. Criado numa pista de corridas Donington Park, na cidade inglesa Leicestershire, em 1980, o festival Monsters of Rock só chegou ao Brasil em 1994. Era um sonho de todo headbanger do país, e o autor da façanha foi o produtor curitibano José Muniz Neto, da Mercury Concerts, um dos mais ativos do mundo da música, que trouxe ao Brasil AC/DC, Yes, Ozzy, Black Sabbath e um sem número de outros.
Muniz Neto diz que se sente realizado por ter sido pioneiro em criar um festival 100% segmentado, mas conta que foi uma tarefa espinhosa. "A parte chata era que não tínhamos muito suporte das gravadoras, que torciam o nariz para o segmento, até então totalmente ridicularizado pela Rede Globo. A emissora considerava o heavy metal um subgênero musical com artistas decadentes e público equivocadamente qualificado como violento. Mas o balanço mostra que estávamos certos e o heavy metal é, do rock, o gênero mais popular no país. O Monsters tem um público de 80 mil seguidores".
Um dos produtores que ajudou Muniz Neto naquela empreitada foi William Crunfli, ex-DJ paulistano que depois se tornaria um também ativo empresário de shows, com um gigantesco cartel de festivais no currículo: Live Music Rocks, Summer Soul Festival, Ultra Music Festival. Naquela época, Muniz Neto, associado ao empresário Phil Rodriguez (hoje presidente da Evenpro, empresa com sede em Miami que tem 30 anos de atuação no ramo de megaturnês), trouxe ao Brasil Kiss, Slayer, Black Sabbath e Suicidal Tendencies, mesclando com os brasileiros Viper, Raimundos, Angra e Dr. Sin. A edição mais recente, no Anhembi, este ano, teve Ozzy Osbourne, Judas Priest, Kiss, Primal Fear e Rival Sons, entre outros. Após 21 anos, continua sendo um dos mais sólidos e tradicionais eventos de rock do país.
William Crunfli, que chegou a realizar o Monsters of Rock em 2013, não seguiu com o festival, que se realiza ainda hoje. "O Monsters não vende muito patrocínio, ainda existe um preconceito, uma barreira muito grande em relação ao metal. Eu preferi construir uma plataforma anual (Live Music Rocks), que tem dado certo". Ele atualmente é o cabeça da Move Concerts Brasil, braço da empresa que opera em toda a América do Sul e Central.
Crises econômicas
Os festivais brasileiros criaram know-how de todo tipo, da fabricação de palcos ao som e à luz. Além de tudo, inventaram um tipo de vacina para o fator indeterminado, como crises econômicas. "O dólar alto, para mim, não é um problema. Aprendi desde 1991: quando eu faço um contrato, compro os dólares ao valor do dia e guardo", diz o empresário Roberto Medina, do Rock in Rio. "Nunca mais fiz nenhum projeto sem me precaver. O artista é parte importante do orçamento. É claro que o dólar alto hoje vai impactar a realização do festival no ano seguinte, mas a conseqüência é que vai custar mais caro para o consumidor".
A produtora e diretora Monique Gardenberg concorda com Medina. "Estou aproveitando essa onda pessimista para escrever. Acho que vamos sobreviver, já passamos por coisas muito piores. Congelamento, confisco, ORTN, lembra?", afirma.
Medina conta que enfrentou crises econômicas "violentíssimas" na Espanha e em Porutugal para fazer o Rock in Rio Madrid e Rock in Rio Lisboa, e acha que ainda não é hora de se alarmar. "Ainda temos uma certa gordura", analisa. William Crunfli, da Move Concerts, concorda, mas tem ressalvas. Ele acredita que o dólar beirando os R$ 4 pode "atrapalhar bem" o ramo do show business.
"Existem dois tipos de artistas internacionais: o que tem espaço na agenda e pode vir, e o que pode selecionar, fora de sua área, dois ou três destinos internacionais. Para esse último, temos que oferecer mais, senão ele não vem. Com o dólar tão alto, o que vai acontecer é que o Brasil vai acabar virando o último da fila dos países das megaturnês. Vão dizer: 'Vocês estão pagando muito pouco'".