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Governo Federal reduz em 85% repasses para a construção de novos presídios

sistema penitenciário do país acumula deficit de 250 mil vagas, segundo último balanço federal

Por Folha de São Paulo com Folha de São Paulo 04/01/2017 06h06
Governo Federal reduz em 85% repasses para a construção de novos presídios
Governo Federal reduz em 85% repasses para a construção de novos presídios - Foto: Agência Brasil

O governo federal reduziu em dois anos 85% dos repasses aos Estados para a construção de novas penitenciárias e diminuiu também os recursos para reestruturar e modernizar as já existentes.

O sistema penitenciário do país acumula um deficit de 250 mil vagas, pelo último balanço federal, e teve sua fragilidade exposta com a morte de 56 detentos num presídio superlotado em Manaus entre domingo (1º) e segunda (2). Atribuída a uma guerra entre facções criminosas, a matança foi a maior em presídios depois do Carandiru, em 1992.

O Funpen (Fundo Penitenciário Nacional), vinculado ao Ministério da Justiça, repassou R$ 111,5 milhões em 2014 ao programa "Apoio à Construção de Estabelecimentos Penais", utilizado para construção e ampliação de presídios estaduais, segundo dados do Orçamento federal.

No ano seguinte, a verba caiu para R$ 12,6 milhões e, em 2016, ao longo dos governos de Dilma Rousseff (PT) e de Michel Temer (PMDB), ficou em R$ 17 milhões. Só uma penitenciária para 847 detentos inaugurada há seis meses no interior paulista custou ao Estado R$ 36 milhões.

Pelos dados do Infopen, sistema que registra a quantidade de presos, havia 622 mil presos no Brasil no final de 2014, mas 372 mil vagas.

No Amazonas, a taxa de ocupação era de 259%, ou seja, uma vez e meia acima da capacidade. O complexo Anísio Jobim, alvo da matança nesta semana, tinha 1.224 homens, contra 454 vagas.

O Funpen recebe recursos de várias áreas, como custas judiciais e loterias. Além de construção e reforma de presídios, paga treinamento de pessoal nos Estados e custeia parte dos investimentos e despesas dos presídios federais.

Do dinheiro pago em 2016 para construção de presídios, só seis Estados receberam recursos: Ceará, Santa Catarina, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraíba e Paraná. O Ceará recebeu a maior quantidade: R$ 7 milhões. O Amazonas não recebeu repasses.

Nos anos de 2012 e 2013, a despesa total nessa rubrica foi de R$ 48 milhões, ainda assim 60% acima dos R$ 29,7 milhões de 2015 e 2016.

O Ministério da Justiça não se manifestou sobre a redução desde 2014. Afirmou, porém, que se comprometeu a usar em 2017 até R$ 156 milhões do Orçamento do ano passado com empenho da verba.

A pasta promete ainda destinar mais R$ 799 milhões para a construção de uma penitenciária por Estado.

Embora em menor dimensão, os repasses para "Reestruturação e Modernização" de presídios também caíram. Em 2014, foram R$ 40 milhões, valor que caiu para R$ 7,6 milhões em 2015 e alcançou R$ 33 milhões em 2016.

O dinheiro total distribuído pelo Funpen (que inclui verbas para treinamento e pesquisa) no ano passado cresceu em relação a 2014. Mas isso se deve a pagamento de atrasados enviados aos governos de SP, DF e MS para capacitação de servidores.

Nos últimos dias do ano, uma medida provisória editada pelo governo permitiu um repasse de R$ 1,2 bilhão do Funpen a governos estaduais. Esses valores só poderão fazer diferença em 2017.

PROVISÓRIOS

A política de encarceramento é questionada por boa parte dos especialistas –para quem é preciso pensar em penas alternativas e diferenciar a gravidade dos crimes.

Ao mesmo tempo, há uma avaliação majoritária de que a superlotação atual, aliada à falta de estrutura, facilita a ação de facções criminosas.

"Essas organizações vendem proteção, portanto, quem ingressa no presídio precisa se solidarizar com alguma facção para sobreviver", diz Arthur Trindade, ex-secretário da Segurança Pública do Distrito Federal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, declarou recentemente que tem como plano reduzir a quantidade de presos provisórios no país, que chega a 41% do total. Por outro lado, quer apoiar um endurecimento das penas para crimes hediondos.

A presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) e do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), ministra Cármen Lúcia, estuda um recenseamento da população carcerária.

Ela vai se reunir nesta quarta (4) com Moraes e, na quinta (5), viaja para Manaus, onde vai encontrar os presidentes dos Tribunais de Justiça de sete Estados. "A gravidade do quadro, embora não inesperada, porque devidamente avisada, convoca a responsabilidade máxima das instituições", disse à Folha.

FACÇÕES CRIMINOSAS DISPUTAM ROTAS DO TRÁFICO NA ÁREA DO TRAPÉZIO AMAZÔNICO

A tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia e as rotas de tráfico que escoam a produção de cocaína da região, conhecida como Trapézio Amazônico, são o principal motivo da disputa entre as facções criminosas Família do Norte e PCC, que vitimaram de forma bárbara 56 presos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus.

"O que está em jogo é o controle dessas rotas, economicamente muito valiosas. É uma disputa por dinheiro", explica Luiz Fábio Paiva, professor e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC), especialista na tríplice fronteira.

Os recordes de apreensão de drogas pela Secretaria de Segurança Pública do Amazonas nos últimos dois anos dão ideia dos recursos que podem ser gerados ali: em 2015, foram 11 toneladas de drogas; em 2016, dez toneladas. O secretário Sérgio Fortes estimou um valor para cada montante: R$ 200 milhões.

E, claro, a droga apreendida é apenas parte daquela que circula por lá. Estimativas da Polícia Federal apontam que o tráfico de cocaína deve movimentar cerca de R$ 1,5 bilhão por ano na região.

"A Família do Norte não admite a expansão do PCC no Amazonas nem nos presídios do Norte. Eles têm a perspectiva do monopólio do narcotráfico na região e da hegemonia no controle dos presídios, como a organização paulista tem em outros Estados do país", avalia Paiva.

A FDN é aliada do Comando Vermelho (CV), que mantinha uma espécie de parceria com o PCC. Com a cisão entre as duas facções do Sudeste, ocorrida em meados de 2016, a tensão entre FDN e PCC se acirrou.

ROTA DO TRÁFICO

É pelo Alto Solimões e seus afluentes que a pasta-base de cocaína ou a cocaína já refinada navegam, chegando a Manaus e seguindo para outros Estados até o Ceará, onde a Família do Norte tem forte atuação, segundo Paiva. De lá, a droga seguiria para a Europa, em geral via Portugal.

As atividades na chamada rota do Solimões teriam se intensificado nas mãos da FDN, depois de anos sendo exploradas por pequenos traficantes –após a desarticulação dos grandes cartéis colombianos, que puxavam a produção regional para aquele país, tendo como alvo o mercado norte-americano.

A pesquisa de Paiva apontou que as comunidades da tríplice fronteira e as populações ribeirinhas são muito assediadas para integrar essa passagem da droga como mulas ou aviões, pelo conhecimento que têm das rotas pluviais. Nelas, a droga é ocultada em peixes, artesanatos ou na própria estrutura de barcos que fazem o transporte.

"Desde o Alto Solimões até Manaus, verificamos um aumento no uso de drogas entre ribeirinhos e indígenas, bem como uma escalada de violência, com crescimento nos índices de suicídio e homicídio. Para essas comunidades, o problema não é a droga que passa, mas a droga que fica", diz.

Segundo o pesquisador, a Família do Norte (FDN) surgiu por volta de 2006, quando Gelson Lima Carnaúba e José Roberto Fernandes Barbosa, o Zé Roberto da Compensa, retornaram a Manaus, após deixarem presídios federais, e decidiram organizar o crime local nos moldes de facções como o PCC e o Comando Vermelho (CV).

"A FDN unificou coletivos criminais de Manaus e dividiu o comércio de entorpecentes por região da cidade, criando códigos de conduta para os criminosos", explica Ítalo Lima, pesquisador da Universidade Federal do AM.

Segundo Paiva, a facção atuou em rede e de forma silenciosa, sem "a ostentação que se vê entre facções do Rio de Janeiro". Talvez por isso tenha demorado para entrar no radar das autoridades.

Em abril de 2014, a Polícia Federal no Amazonas foi surpreendida ao apreender R$ 200 mil em espécie dentro do aparelho de ar condicionado de uma lancha que navegava no rio Solimões.

As investigações feitas a partir dali revelaram uma organização criminosa extremamente hierarquizada que já atuava dentro e fora dos presídios amazonenses.

Mais de um ano depois, em novembro de 2015, a operação La Muralla da PF cumpriu 86 mandados de prisão, muitos contra as principais lideranças da FDN, dentre eles, os fundadores da facção.