Ampliação do teste do pezinho no SUS ajudará no diagnóstico de doenças raras
Lei sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro na última semana vai aumentar de seis para 53 doenças detectadas
Os problemas de Gabriele Aparecida, de 12 anos, começaram logo após o parto. Apesar de ter desenvolvido diabetes durante a gestação, Lívia Cezar afirma que teve uma gravidez tranquila e que a filha nasceu de 37 semanas e quatro dias. Porém, logo depois, ela foi direto para a unidade semi-intensiva ao ter falta de ar e, na mesma noite, foi levada para a UTI, onde permaneceu por 10 dias. “Depois de 15 dias do parto ela veio para casa. Já no início percebemos que tinha algo de errado porque ela não dormia. Ela passava dias e noites acordada. Foram os piores três meses da minha vida, porque ela não pegava no sono um minuto sequer. Os primeiros sinais foram esses”, conta a mãe. Após quatro anos de médicos, internações, consultas e exames, os pais descobriram que Gabriele tinha uma doença crônica rara, degenerativa e progressiva chamada Mucopolissacaridose (MPS). Segundo a mãe, quando ela foi pegar o papel para saber o diagnóstico, achou que seria um câncer no fígado. O alívio ao descobrir que era Mucopolissacaridose, porém, durou pouco, já que a médica falou que a doença não tinha tratamento ou cura e que Gabriele viveria, no máximo, até os 10 anos. “E aí veio a parte horrível: quando os pais descobrem a data de validade dos filhos”, relata.
Uma lei sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro na última semana pode facilitar, no entanto, o diagnóstico dessa e de outras doenças. Isso porque o teste do pezinho, ao qual as crianças são submetidas entre o terceiro e quinto dia de vida, feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS), detectava apenas seis doenças até a nova determinação. Daqui a um ano, esse número será ampliado, progressivamente, até atingir 53 doenças — incluindo a que Gabriele tem. A Mucopolissacaridose tem onze variações e afeta 1,57 pessoas em cada 100 mil nascidos vivos. Números da Rede MPS, entidade que reúne centros de tratamento para pacientes com a Síndrome de Hunter, o tipo mais comum da doença, mostram que 493 casos foram registrados no Brasil entre 1982 e 2019 — uma média de 13 novos pacientes por ano. Na rede particular, o teste do pezinho ampliado já estava disponível. O custo, entretanto, é alto e inacessível para grande parte da população. A geneticista e professora da Unifesp, Ana Maria Martins, que também é membro da Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal e Erros Inatos do Metabolismo (SBTEIM), ressalta que esse tempo de um ano é necessário para adequar o sistema de saúde. “Durante o próximo ano será feita toda a regulamentação, porque não são todos os Estados que tem a tecnologia para fazer os testes novos que vão entrar daqui dois anos. Então é um tempo para organizar, adequar e capacitar médicos e nutricionistas para atender essas novas demandas. Porque ter o diagnóstico e não ter quem trata também seria uma tragédia”, pontua.
Nos últimos três anos, quase 2,5 milhões de bebês fizeram o teste do pezinho na rede pública de saúde. A ampliação, que passará a alcançar 14 grupos de doenças, será feita em etapas. Na primeira, haverá o acréscimo do teste para a detecção de doenças relacionadas ao excesso de fenilalanina e de patologias relacionadas à hemoglobina (hemoglobinopatias), além de incluir os diagnósticos para toxoplasmose congênita. Na segunda etapa, seriam acrescentadas as testagens para galactosemias; aminoacidopatias; distúrbios do ciclo da ureia; e distúrbios da beta oxidação dos ácidos graxos (deficiência para transformar certos tipos de gorduras em energia). Na terceira, os exames para doenças lisossômicas (que afetam o funcionamento celular), na quarta, aqueles para imunodeficiências primárias (problemas genéticos no sistema imunológico), e na quinta, os testes para atrofia muscular espinhal (degeneração e perda de neurônios da medula da espinha e do tronco cerebral, que resulta em fraqueza muscular progressiva e atrofia). A medida deverá entrar em vigor 365 dias após a publicação da lei originada pelo projeto.
Teste ajudará no diagnóstico precoce
Lívia conta que, apesar do diagnóstico tardio, a idade da Gabriele ainda era considerada precoce diante de outros pacientes. Muitas crianças e adolescentes com Mucopolissacaridose nascem e morrem sem ao menos saber a doença que as levou. Porém, para o transplante de medula óssea, uma alternativa em alguns casos, já era tarde. O procedimento só é feito em crianças de até dois anos. Depois disso, os pacientes são considerados de alto risco. A geneticista Ana Maria Martins explica que, apesar dos tipos diferentes, a Mucopolissacaridose tem três pontos comuns, que costumam ser a realidade de grande parte dos pacientes. “Primeiro, as crianças com a doença nascem normais. Então, se tratar, têm chances delas continuarem normais. Segundo, elas tem uma característica de desenvolverem os sinais e sintomas que levam a infecções de repetição, a partir dos dois meses, com muita secreção no nariz e infecção de ouvido. Isso aumenta a chance de mortalidade porque sobem as chances de pneumonia, internação e complicação. E terceiro, os tratamentos que nós fazemos em quem descobre de forma precoce têm uma evolução muito maior do que quem foi tratado tardiamente.” Por isso, a inclusão do teste do pezinho ampliado no SUS dará mais chances para essas famílias. Quanto mais cedo o diagnóstico, maior a chance de garantir uma melhor qualidade de vida para o paciente. Segundo Lívia, hoje Gabriele é uma menina saudável. “É uma criança feliz e muito amada.