Relatório aponta tortura, tuberculose e comida estragada em cadeias do RN
Segundo especialista, massacre de 2017 resultou na implementação de uma política disciplinar ainda mais "dura" dentro dos presídios do Estado, limitando a entrada de alimentos e de visitas íntimas
Comida com odor nauseante, surto de dermatites e tuberculose, relatos de tortura física e psicológica são questões consideradas graves identificadas por peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) nas unidades prisionais do Rio Grande do Norte.
Entre os dias 21 e 25 de novembro de 2022, eles vistoriaram a Cadeia Pública de Ceará-Mirim e o Complexo Prisional de Alcaçuz, ambos na Grande Natal, ouvindo presos e levantando informações que culminaram em um relatório que será apresentado às autoridades no início da próxima semana.
“As principais questões encontradas em ambas as unidades foram: problemas de alimentação, desassistência à saúde e tortura. Não é só uma alimentação precária, mas é uma alimentação inexistente muitas vezes. A partir do momento em que se entrega uma alimentação estragada e imprópria para o consumo, não se tem uma alimentação. Se percebe, nitidamente, o emagrecimento da pessoa encarcerada pela ausência da alimentação”, relata Bárbara Coloniese, perita do MNPCT.
Ela vistoriou as prisões potiguares em janeiro de 2017, ano da maior rebelião da história do sistema penitenciário potiguar que culminou com a decapitação e esquartejamento de 27 presos ligados ao Sindicato do Crime (SDC) no Complexo Prisional de Alcaçuz, e em novembro do ano passado.
As condições da custódia estão entre os motivos apontados em comunicados divulgados pelo Sindicato do Crime para a série de ataques a que o Estado assiste nesta semana. Os crimes coordenados, que incluem incêndio de veículos e disparos contra sedes da polícia e do Judiciário, chegaram a dezenas de cidades potiguares, causando medo à população e afetando a prestação de serviços públicos.
O assassinato de um comerciante na capital na quarta-feira (15) tem relação com os ataques, segundo a polícia local.
Segundo Coloniese, há uma sistemática violação de direitos nas carceragens do Estado, como a desassistência à saúde como um todo. “Nós fizemos a verificação in loco da chegada, o acompanhamento de todo o processo até a entrega [da alimentação ao preso] e, realmente muitas dessas alimentações já chegam impróprias para o consumo com cheiro de azedo. Mesmo com uma máscara muito potente em relação à prevenção contra a Covid-19 foi possível sentir o cheiro azedo, nauseante daquela alimentação completamente imprópria para o consumo. Eles [os presos] ficam com uma alimentação bem precária”, frisa a perita.
Para ela, esse é apenas um dos pontos graves em relação à desestrutura encontrada pelos peritos nas prisões visitadas.
Seis anos depois do que ficou conhecido como “massacre de Alcaçuz”, provocado pela disputa de poder entre duas facções criminosas, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Sindicato do Crime, Coloniese afirma que nada mudou. Ao contrário, piorou. Ela faz essa afirmação alegando que as imagens feitas pelos peritos comprovam o cenário.
“De 2017 para 2022 não existiram mudanças. O cenário é ainda mais recrudescido. O emprego da violência é muito forte. A forma de funcionamento desse sistema prisional se baseia na prática sistemática de tortura física e psicológica. Desde que fomos ao Rio Grande do Norte, estamos tentando reuniões institucionais com o Tribunal de Justiça, com o Ministério Público, com a governadora, mas ainda sem êxito. Nós ficamos alarmados com a situação do sistema prisional com muita tortura, violência e violação de direitos. Nós tentamos fazer alertas às autoridades, mas até o momento não conseguimos ter diálogo. Continuamos à disposição para expor as questões e mudar esse cenário com a garantia de direitos fundamentais conforme consta na Lei de Execuções Penais”, ressalta.
Assistência à saúde
Bárbara Coloniese define como chocante a ausência de profissionais de saúde próprios no quadro da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (Seap) e denuncia que, caso algum preso tenha uma indisposição com um policial penal ou vice-versa, seu atendimento médico é negligenciado, de acordo com os relatos colhidos. Nas celas de Ceará-Mirim e Alcaçuz, ela disse que há um número assustador de apenados com dermatites diversas, tuberculose, entre outras doenças infectocontagiosas.
“Nunca tínhamos visto tantas pessoas com tuberculose. Durante as entrevistas, vimos pessoas escarrando sangue. Foi uma cena bastante alarmante. Há uma falta de medicação. Há uma desassistência na área da saúde. As celas são superlotadas e insalubres. Os presos só acessam água, que não é potável, três vezes ao dia durante 30 minutos às 7h, 12h e 17h. Eles não conseguem suprir as necessidades em algo básico que é o acesso à água”, denuncia a perita.
Além disso, ela aponta que a triagem dos presos que necessitam de atendimento médico é feita de forma aleatória pelos próprios policiais penais. “Eles não têm capacidade técnica para fazer isso. Quem deve fazer isso são os profissionais de saúde entre as pessoas custodiadas para saber quais são seus problemas de saúde. São essas pessoas que têm o conhecimento técnico. Isso também gera uma enorme subjetividade nessa seleção, nessa triagem para atendimento. Se um policial penal tem um problema com determinada pessoa, ela nunca será atendida. Há, também, uma descontinuidade no atendimento”, diz.
Coloniese afirma que, hoje, os atendimentos são feitos por profissionais de saúde cedidos pela Secretaria de Estado da Saúde Pública (Sesap-RN) em um número aquém do necessário, o que gera descontinuidade do tratamento, na maioria dos casos.
Outra questão que envolve a saúde do preso que será descrita no documento do MNPCT diz respeito à ausência de kits de higiene pessoal entregues pelo Estado aos presos. “Isso viola a Lei de Execuções Penais. As famílias se tornam responsáveis por levar esses aportes de kits de higiene e limpeza, o que é um absurdo. As pessoas que têm famílias sem condições de realizar esses aportes, ficam completamente desassistidas.”
Tortura
O MNCPT aponta que há uma enorme fragilidade para investigar denúncias de tortura nas cadeias potiguares. Desde 2017, quando a Força-Tática de Intervenção Penitenciária (FTIP) foi enviada pelo Ministério da Justiça para controlar a rebelião em Alcaçuz, novos meios de contenção de presos, considerados violentos, foram implementados.
“Desde que a FTIP passou pelo Rio Grande do Norte, em 2017, foi implementado o ‘procedimento’. A partir do treinamento dos policiais penais para viverem uma rotina como se estivessem em um momento de crise, há uma rigidez enorme e injustificada. O tempo todo, as pessoas detidas estão em ‘procedimento’. A partir do comando de voz ‘procedimento’, as pessoas presas precisam correr, independente do que estejam fazendo, devem ir pro chão, se enfileirar e entrelaçar as mãos na cabeça sem fazer barulho, até que um novo comando de voz os manda sair daquela posição. Isso pode demorar muito e acontece nas quadras, durante o banho de sol. Elas ficam queimadas”, destaca Coloniese.
Ela ressalta que a posição na qual são obrigados a ficar por intervalos de tempo variados, causa estresse e dor. Imagens que ilustram o documento do MNCPT mostram presos queimados pelo sol, machucados e com limitações físicas supostamente provocadas pelas ações truculentas dos policiais penais.
“É um absurdo o emprego desse procedimento de uma forma sistemática e isso gera muita tortura psicológica, além de física. Nós conversamos com os presos, para colher os relatos, e explicamos que eles poderiam ficar em posição de relaxamento e quando eles escutavam alguns passos ou barulhos, corriam e se colocavam em posição de procedimento. Há um trauma muito grande em relação a isso e muitos tremiam. Se o preso sai da posição do procedimento, ele é atingido por spray de pimenta e balas de borracha. Nós temos fotos que comprovam isso. Eles têm essa narrativa e as marcas físicas para comprovar”, diz a perita.
Conforme a antropóloga da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Juliana Melo, que estuda sistemas carcerários na região há mais de dez anos, o massacre de 2017 resultou na implementação de uma política disciplinar ainda mais “dura” dentro dos presídios do Estado, limitando a entrada de alimentos e de visitas íntimas.
“Esse regime tem características de regime disciplinar para quem está preso em regimes federais, mas sem estar em uma prisão federal. Então, há celas superlotadas e torturas sistemáticas”, disse. Ela relata que as restrições adotadas após a pandemia dificultaram o acompanhamento dessas medidas por pesquisadores e outras entidades da sociedade civil.
A situação carcerária, segundo a pesquisadora, se tornou uma “bomba-relógio”, e seria um dos principais panos de fundo do caos que se vê hoje no Estado. “As autoridades do Rio Grande do Norte dizem que isso não é sistemático, que se usa a bala de borracha só em algumas situações, por exemplo, mas isso é sistemático, vem sendo denunciado ao longo dos anos. É sabido que isso acontece, está lá dentro, e os presos simplesmente não suportam mais.”
Governo diz tomar providências
Em entrevista coletiva, o titular da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (Seap), Helton Edi Xavier da Silva, informou que ainda não recebeu o relatório.
“No fim do ano passado, houve essa visita e houve uma reunião do Mecanismo com o Governo do Estado, assim como o CNJ, onde foram apresentadas algumas questões. Desde então, a gente vem conduzindo o fato, tomando as providências que a gente achou pertinente diante daquelas primeiras informações, bem como informando às instituições que têm parte nisso. O Ministério Público com as investigações, a Justiça, a Polícia Civil… Desde então, a gente vem adotando essas providências”, comenta o secretário.
No final do ano passado, após as vistorias, os peritos do MNCPT foram recebidos pelo então vice-governador, Antenor Roberto.