Justiça

Depoimento Especial: a importância do acolhimento na escuta de menores vítimas ou testemunhas de violência

Lei de 2017 é defendida pelo Ministério Público do Estado como proteção psicológica e social para crianças e adolescentes

Por Marcos Filipe Sousa 29/01/2024 15h03 - Atualizado em 30/01/2024 15h03
Depoimento Especial: a importância do acolhimento na escuta de menores vítimas ou testemunhas de violência
Modelo de sala apresentado para o Depoimento Especial - Foto: CNJ

Um prédio estranho. Pessoas que não conheço. Do outro lado, a pessoa que me causou dor. Minutos depois, bombardeada de perguntas que me fazem chorar. A descrição poderia ser de um conto de terror, contudo é o que passa na mente de uma criança, vítima de abuso sexual ou violência, ao sentar em uma sala de um fórum com juiz, promotor, advogados e servidores do Judiciário durante uma audiência para falar e relembrar uma dor.

Pensando nessa situação, no ano de 2017 foi sancionada a Lei Federal 13.431 que regula o chamado “Depoimento Especial” para menores vítimas e testemunhas de violência. A norma ressalta que toda criança e adolescente gozam dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas a proteção integral e as oportunidades para viver sem violência e preservar sua saúde física e mental e seu desenvolvimento moral, intelectual e social. E com isso, gozam de direitos específicos à sua condição de vítima ou testemunha.

A promotora estadual Dalva Tenório, da 59º Promotoria de Justiça da Capital, trabalhou em casos envolvendo violência contra menores, e ao longo dos anos, observou a importância da acolhida de crianças e adolescentes nos fóruns judiciais. E no mês de novembro do ano passado, apresentou o resultado desse trabalho no XXV Congresso Nacional do Ministério Público.

“Mesmo tomando os devidos cuidados, em algum momento no fórum, havia o contato do menor com o agressor, e isso de alguma forma atrapalhava o depoimento. O suspeito, normalmente, é alguém próximo da vítima, como um parente ou amigo, acarretando gatilhos emocionais nesses encontros. Trazer o abusador para perto da criança ou adolescente, é fazê-lo reviver os traumas”, colocou a promotora.

Promotora Dalva Tenório é defensora do depoimento especial (Foto: Assessoria)

Dalva Tenório presenciou, antes da implantação da lei, cenas como vítimas chorando, outras em silêncio e até mesmo, tendo crise de risos. “Comecei a observar no meu trabalho diário essas ocorrência e me incomodava”.

No depoimento especial, profissionais especializados esclarecem a criança ou o adolescente sobre o processo, informando-lhe os seus direitos e os procedimentos a serem adotados e planejando sua participação, sendo vedada a leitura da denúncia ou de outras peças processuais que acarretem memórias passadas.

“Quando a criança reage negativamente, prejudica a narrativa, e deixamos de saber o que realmente aconteceu. Por isso, é muito importante que a vítima fale sem amarras e livremente em um espaço de acolhimento”, defendeu.

Durante o depoimento especial, um profissional especializado, denominado “entrevistador forense”, poderá adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da vítima. Tudo é gravado em áudio e vídeo.

“O menor precisa contar o que aconteceu, contar a sua história. Nesse momento é resguardado seu direito físico e psicológico”.

O vídeo tramitará em segredo de Justiça e as condições de preservação e de segurança da mídia relativa ao depoimento garantirão o direito à intimidade e à privacidade da vítima ou testemunha.

A figura do entrevistador é importante, ele serve como uma ponte entre o processo legal e a vítima, codificando de forma menos ofensiva as perguntas das partes interessadas, de modo que ela entenda. Wanessa Oliveira é assistente social e passou pelo curso de formação forense.

“No momento do depoimento, as perguntas são abertas, evitando respostas fechadas, como sim ou não. Desse modo, a narrativa é livre, e em qualquer momento, o menor pode desistir de falar. Outro ponto importante é que somente eu posso interagir com ele”, comentou a entrevistadora.

Ilustração apresenta como é realizada a audiência (Arte: CNJ)
Ilustração apresenta como é realizada a audiência (Arte: CNJ)

Também é sua função identificar uma pergunta ofensiva e informar ao juiz que esta não é adequada para o momento. “Solicitaram perguntar como era a vida sexual da vítima, por exemplo”.

Wanessa destacou que o menor, tradicionalmente, é ouvido, pelos menos três vezes: no Conselho Tutelar, na delegacia e quando vai fazer exame no Instituto Médico Legal (IML). “Ele revive o trauma, afeta a memória, e de forma indutiva, prejudica a qualidade do relato”.

A finalidade é que a vítima fale uma única vez como antecipação de provas, pedida pelo delegado, defesa ou Ministério Público do Estado; evitando revisitar o trauma. “Como é gravado, as partes interessadas podem assistir quantas vezes quiserem, preservando o relato”.

A vítima é o centro de todos os cuidados


O Juiz Ygor Figueiredo, coordenador da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL), reforçou que o ambiente em que ocorre o depoimento é preparado para a vítima, ela é o centro das atenções dos envolvidos no processo.

“ As perguntas devem ser compatíveis com a idade dela, evitando um linguajar que afronte a vítima, questionamentos inoportunos ou que exponham-na ao constrangimento. Tivemos um caso, por exemplo, que o advogado de defesa queria perguntar se a menor era virgem quando foi abusada”, relatou o magistrado.

Ygor Figueiredo trabalha diariamente com casos que envolvem depoimento especial (Foto: Ascom TJAL)
Ygor Figueiredo trabalha diariamente com casos que envolvem depoimento especial (Foto: Ascom TJAL)

Assim como a promotora e a entrevistadora forense, o juiz concorda que um ambiente acolhedor, evita a revitimização do menor e garante seus direitos, como determina a Constituição Federal. “A livre narrativa demanda um esforço cognitivo maior e traz credibilidade ao relato”.

Arte: 7Segundos


Ygor Figueiredo lembrou que o depoimento especial não precisa ser solicitado por se tratar de uma obrigação. “A lei proíbe o contato visual do agressor com a vítima, colocando-os em salas diferentes, mas infelizmente isso não ocorria. Ambos acabavam se encontrando no ponto de ônibus ou na porta do fórum, por exemplo. São situações que traziam constrangimento, afetavam o emocional, e com isso, a testemunha chorava e tinha dificuldade de se expressar”.

Arte: 7Segundos


Para realizar o rito solicitado pela lei, os técnicos da 14° Vara da Capital passaram por treinamentos e capacitação. “Com esta preparação conseguimos fazer o depoimento antecipado, em uma vara específica com todos esses cuidados. A denúncia sai da delegacia, e depois que o caso chega a nós, o menor não precisa ser escutado novamente, porque já foi realizado”, concluiu.

Um futuro com poucas ou nenhuma sequela


Quais as consequências que eventos traumáticos, como abuso sexual e agressão, podem afetar a mente de um menor? Como essas situações são capazes de distorcer a realidade na hora do depoimento? A psicóloga Tycianne Tenório, especialista em atendimento com crianças, explica que “cada pessoa é um mundo”, e por isso é difícil traçar um único comportamento.

“Algumas podem mostrar sinais de ansiedade, medo, regressão comportamental ou agressividade. Reações físicas também podem surgir como mudança no padrão do sono, pesadelos, dores de cabeça, problemas gastrointestinais, alterações no apetite, aumento da atividade nervosa, entre outros”, exemplificou eventos comportamentais.

Tycianne explica que é crucial procurar apoio profissional para ajudar o menor a processar essas experiências e desenvolver mecanismos saudáveis de enfrentamento.

Ela lembra que uma sala de audiência pode ser nociva para uma criança por ser um ambiente de confronto. “O testemunho diante de um juiz, promotor, advogados, pode gerar stress e ser traumático, expondo a criança a questões intensas e detalhadas, fazendo com que ela reviva toda a situação. Isso pode causar ansiedade, medo e impactos emocionais duradouros”.

Tycianne Tenório explica como uma criança reage em ambientes de pressão (Foto: Arquivo Pessoal)
Tycianne Tenório explica como uma criança reage em ambientes de pressão (Foto: Arquivo Pessoal)

O confronto visual com o abusador ou agressor é a pior coisa que pode acontecer a uma vítima, explica a profissional. “A sua presença pode reavivar lembranças dolorosas e aumentar o estresse da criança. Isso pode dificultar a capacidade da vítima se expressar de maneira completa e precisa”.

E completou: “O próprio abusador pode acusar a criança de ser mentirosa ou ameaçá-la. O que prejudica ainda mais a saúde mental da criança”.

A psicóloga recorda que todo o processo tem como objetivo tornar o ambiente acolhedor e confortável para a vítima. “ É projetado para ser mais seguro e menos desconfortável para a criança em comparação com métodos tradicionais de coleta de depoimento. Os especialistas envolvidos são treinados para lidar com os menores de maneira sensível e empática, criando um ambiente propício para que a vítima se sinta mais confortável ao relatar suas experiências”.