Dia dos pais: Mais de 800 mil brasileiros foram registrados apenas com o nome da mãe
Segundo especialistas, a ausência do nome do pai no registro pode resultar no sentimento de exclusão social

"Qual é o nome da sua mãe e do seu pai?". A paulistana Natasha Renault, de 31 anos, nunca teve a resposta completa desta pergunta. A psicanalista cresceu sem a presença paterna, com Dona Carla sempre se desdobrando para suprir essa ausência de diferentes formas. Porém, quando chega a época da escola, fica difícil preencher o espaço vazio na certidão de nascimento.
“Em festas do Dia dos Pais, me sentia constrangida em participar das ações. Por mais que minha mãe fizesse esse papel, ela é mãe, não é pai. Me incomodava bastante, tinha pavor quando chegava o Dia dos Pais porque, na minha cabeça, todo mundo ia saber que eu não tinha pai”, relembra.
O constrangimento nas celebrações escolares também faz parte da memória de Gustavo Araújo, mas o maior trauma veio durante o alistamento militar -- obrigatório para todos os homens aos 18 anos no Brasil.
Segundo o paulistano de 29 anos, preencher ‘pai não-declarado’ soava quase como um ataque. Ele não entendia a razão de ser obrigado a declarar algo que não tinha e ignorar não era opção.
“Mãe, todos temos, mas o pai realmente é uma figura que é relativa, pode ser simbólico, e ter que sempre preencher um documento e sempre ter que colocar ‘não-declarado’, eu via como um ataque, me sentia um pouco reprimido, quase um sentimento de não pertencer" -- Gustavo Araújo
Entre janeiro de 2020 e janeiro de 2025, 13 milhões de crianças foram registradas em cartórios espalhados pelo Brasil. Dentre elas, 802 mil apresentaram apenas o nome da mãe na certidão de nascimento, mesmo caso de Gustavo Araújo e Natasha Renault. Com isso, o número do Painel da Transparência, da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), indica que, nos últimos cinco anos, cerca de 6,1% de crianças não foram contempladas com o nome do genitor no registro.
"Como será o rosto do pai?", "Por que o meu pai não quis me assumir?" e "Será que eu sou parecido com o meu pai?". Mesmo com mágoa e sofrimento pela ausência, é impossível não sentir curiosidade de conhecer a figura paterna e foi justamente algum desses questionamentos que levaram Natasha e Gustavo ao embate com suas respectivas mães.
“Eu lembro que sempre [que eu perguntava algo] tinha uma primeira reação reativa [da minha mãe] com o tema, e aí ela dava algumas informações”, comentou Natasha.
O caso de Gustavo era diferente porque a família sabia a identidade do seu pai, mas preferia manter em segredo. Ele conta que já cobrou a mãe: "'Por que você não foi atrás disso? Você não pensou em mim?'. Isso causou, certamente, algum tipo de frustração e penso que poderia ter sido diferente.”
Quando Natasha descobriu a ausência do pai no documento, ela tentou buscar informações do pai e da família paterna em pesquisas do Orkut --rede social já extinta, em sites de buscas na internet e, posteriormente, no Facebook.
“Curiosidade é um bichinho nervoso, né? Meu irmão mais velho, que é filho do mesmo pai, por acaso tem o registro, posteriormente ele foi adotado pela parceira da minha mãe, mas, na época, isso me ajudou a saber o nome do meu pai. Mas o sobrenome dele é Silva, um nome supercomum. Mesmo assim, lembro de ser adolescente e pesquisar nas redes. Ficava vendo as fotos das pessoas e pensando: ‘Será que é ele? Será que parece comigo?’. Fui aprendendo a ressignificar esse impulso durante meu processo terapêutico”, explica.
“Eu queria entender se eu tinha, além do meu pai, que não me quis, alguém da família. Cadê essa avó? Não tem um tio, uma tia? Alguém que eu minimamente poderia conversar? E assim, pra mim, essa conversa era importante porque faz parte da minha identidade. Então, hoje eu sei que sou filha de uma gaúcha com um homem baiano, eu não sabia disso. Eu tive que procurar porque isso não foi me dado, ninguém me explicou o que compõe a minha identidade, parece que o simples fato de eu não ter registro, inviabilizou a questão de alguém me falar o que faz da Natasha ser a Natasha, de onde ela veio”, completa.
Burocracia ainda gera constrangimento
Após anos de terapia, Gustavo e Natasha dizem ter ressignificado a ausência paterna. Em contrapartida, eles confessam que a questão ainda gera constrangimento por processos burocráticos.
“Incomoda porque sempre que preciso fazer um cadastro, sou obrigado a declarar, obrigado a colocar pai, nem que seja somente ‘pai não-declarado’ ou ‘xxx’. Eu vejo que as tecnologias podem gerar uma atualização de colocar esse espaço como opcional, porque, pelo que vejo, muitas famílias brasileiras não têm pai na configuração”, analisou Gustavo.
Natasha, por sua vez, endossa o coro por uma possível atualização em sistemas eletrônicos, mas alerta que é necessário que a sociedade também se conscientize sobre o assunto. Ela já passou por “apertos” por falta de instrução de pessoas que lidam com o público. Algo que, conforme a própria, com um pouco de empatia poderia ter sido evitado.
“Já teve momentos que estava no médico, pegaram meu RG e falaram: ‘Tá, mas aqui não tem o nome do pai’. E aí a pessoa te expõe novamente, então você tem que explicar para ela que seu pai não te registrou. É complicado porque ele [meu pai], em algum lugar que ele está, não precisa falar que não tem filha, mas eu preciso falar sempre que não tenho pai” -- Natasha Renault
O que dizem os profissionais sobre o assunto?
Para o psicólogo Gabriel Hirata, do Grupo Reinserir Psicologia, a ausência do nome do pai no registro, de fato, pode resultar no sentimento de exclusão social, em alguma medida, experienciado pelos entrevistados. “Nesse sentido, a frustração e a vergonha são comumente interpretadas como expressões de um fracasso pessoal ou familiar. E, claro, esse sentimento existe, é legítimo e decorre em sofrimento”, comentou o especialista.
Endossando o discurso de Hirata, Cintia Castro, autora e psicanalista comportamental, elabora que a ‘exclusão social’, a depender da pessoa, pode gerar uma lacuna psíquica.
“Essa pode [dificultar] a formação de um ideal do eu e prejudicando a internalização de valores e normas sociais. Pode dificultar a construção de uma imagem positiva de si mesmo, afetando a autoestima e a autoconfiança. Sentimento de vazio, o que pode gerar insegurança e instabilidade emocional. Dificuldades em estabelecer vínculos saudáveis. Ansiedade, depressão, frustração e vergonha”, reflete a também especialista no assunto.
Cintia ainda acrescenta que a ausência paterna, dada sua complexidade emocional, pode gerar uma mistura de sentimentos como tristeza, raiva e confusão, e processar todas essas emoções pode ser um desafio significativo para qualquer pessoa que passe por algo similar. “É importante reconhecer e aceitar que o que você sente é normal e que é compreensível não conseguir lidar com questões tão profundas. E claro, em caso de necessidade busque ajuda profissional como terapia, tenha autocompaixão, é essencial, trate-se com gentileza”.
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