Os passos finais para a retomada do caso Flávio Bolsonaro
Supremo decidiu que Receita Federal e UIF podem compartilhar dados com o Ministério Público sem autorização da Justiça
O Supremo Tribunal Federal decidiu na quinta-feira (28), por nove votos a dois, que órgãos como a Receita Federal e a UIF (Unidade de Inteligência Financeira) podem compartilhar dados sigilosos com órgãos de investigação, como o Ministério Público, sem autorização judicial.
Investigações que haviam utilizados esses dados sem aval da Justiça estavam suspensas desde julho por decisão liminar (temporária) do presidente do tribunal, Dias Toffoli.
Ele havia atendido a um pedido do senador Flávio Bolsonaro, investigado sob suspeita de praticar “rachadinha” (devolução de parte do salário) de servidores em seu gabinete quando era deputado estadual no Rio de Janeiro.
A liminar de Toffoli havia afetado 935 casos em todo o país, segundo um levantamento do Ministério Público. Ela foi revogada na quinta-feira (28), o que abriu caminho para a retomada das apurações contra o primogênito do presidente Jair Bolsonaro.
Votaram a favor do compartilhamento os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski. Toffoli havia colocado restrições ao repasse de dados, mas voltou atrás no final do julgamento e aderiu à maioria. Marco Aurélio Mello e Celso de Mello foram contra a legalidade do compartilhamento.
O julgamento, porém, ainda não foi encerrado. O tribunal ainda precisa discutir detalhes sobre a aplicação do compartilhamento, já que há divergências entre os votos. A discussão do tema deverá acontecer no início da sessão da quarta-feira (4).
O contexto da discussão no Supremo
A discussão chegou ao Supremo em 2017, por conta de um casal dono de um posto de combustíveis em Americana (SP), denunciado pelo Ministério Público por sonegação fiscal depois que auditores da Receita cruzaram seus dados de movimentações bancárias e declarações anuais de Imposto de Renda.
Após condenação em primeira instância, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região anulou a sentença devido ao “indevido compartilhamento de dados sigilosos”. O Ministério Público Federal recorreu, e o caso chegou no Supremo, para que se discutisse exclusivamente o compartilhamento de dados da Receita Federal.
Toffoli aproveitou para incluir o caso de Flávio Bolsonaro na mesma ação. O primogênito do presidente Jair Bolsonaro é investigado num processo que teve início no compartilhamento com o Ministério Público do Rio de Janeiro de dados da UIF, como passou a se chamar o antigo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras).
Mas a discussão sobre o uso de dados sigilosos também afetou os próprios ministros. Em fevereiro, informações da Receita Federal referentes ao ministro Gilmar Mendes e sua esposa, Guiomar Mendes, em caso que apurava “indícios de lavagem de dinheiro”, foram divulgados pela imprensa. A esposa de Toffoli, a advogada Roberta Maria Rangel, também foi citada no mesmo procedimento, alvo de investigação por indícios de irregularidades.
Mendes pediu, ainda em fevereiro, que Toffoli determinasse a investigação de eventuais “abusos de poder” de servidores da Receita. O órgão teve de esclarecer que o casal não era investigado, e o vazamento das informações passou a ser apurado.
O julgamento do caso no Supremo
Por ser o relator do caso, Toffoli foi o primeiro a se manifestar sobre o tema ainda na quarta-feira (20). Seu voto, que tomou quase toda a sessão naquele dia, foi considerado confuso pelos demais ministros. Ao ser questionado sobre a posição do colega, o ministro Luís Roberto Barroso afirmou que era preciso “chamar um professor de javanês” para explicar o que Toffoli quis dizer. Toffoli precisou depois esclarecer o que tinha dito em plenário, detalhando seus argumentos.
O presidente do tribunal votou pela possibilidade de a UIF repassar dados sem autorização judicial aos órgãos de investigação, mas impôs restrições no caso específico da Receita Federal. A princípio, ele tinha defendido que o órgão poderia compartilhar informações, com exceção de extratos bancários e declarações do imposto de renda. Mas, diante de um placar que iria lhe impor uma derrota, Toffoli alterou o voto nos minutos finais da sessão desta quinta-feira (28) e aderiu à corrente vencedora, que entende que não cabem limitações no compartilhamento.
Toffoli também defendeu que o Ministério Público só poderia pedir relatório de inteligência financeira ao UIF de cidadãos já investigados criminalmente ou alvos de alertadas da unidade. Para Fachin, a atuação da UIF já impede “devassas sob encomenda”.
O relator do caso, que teve o voto vencido pelos demais ministros, também votou pela abertura de procedimentos investigativos criminais pelo Ministério Público e comunicá-los à Justiça sempre que o órgão investigativo receber informações sigilosas.
Desde o início do julgamento, alguns ministros contestaram o fato de Toffoli ter incluído a UIF na mesma discussão de um caso que era exclusivo da Receita. Ricardo Lewandowski, Rosa Weber, Marco Aurélio e Celso de Mello disseram ter receio de entrar na discussão do antigo Coaf, mas tiveram seus votos vencidos. Edson Fachin também havia demonstrado preocupação, mas acabou mudando de ideia.
Como fica agora o caso Flávio
As investigações haviam sido suspensas por decisão de Dias Toffoli ainda em julho, mas a defesa do senador recorreu novamente ao Supremo em setembro alegando que a investigação do Ministério Público e o processo no Tribunal de Justiça do Rio continuaram mesmo após a determinação de Toffoli.
O pedido caiu para o ministro Gilmar Mendes que reforçou as suspensão de todas as investigações contra Flávio. Com a revogação da liminar de Toffoli, a tendência é que aconteça a mesma coisa com a decisão de Mendes. Há incerteza sobre se a revogação da liminar de Mendes é automática ou se depende de uma nova decisão do ministro.
Assim, a investigação do Ministério Público, num caso em que a primeira-dama é citada, poderia ser retomada. O Ministério Público do Rio suspeita que o senador tenha cometido os crimes de peculato (desvio de dinheiro público por servidor), lavagem de dinheiro e organização criminosa. Ao longo das apurações, a Justiça do Rio autorizou, além da quebra do sigilo de Flávio, a devassa em contas de outras 102 pessoas físicas e jurídicas.
O primeiro relatório do antigo Coaf trazia detalhes como data, horário e agência bancária onde foram realizados os saques e depósitos nas contas de Queiroz. Outros cinco relatórios foram elaborados, quatro deles a pedido do Ministério Público. Um dos documentos detalhava dia e hora de 48 depósitos de R$ 2.000 na conta de Flávio, realizados entre junho e julho de 2017. Ele diz que o dinheiro foi recebido pela venda de um apartamento.
As decisões do Supremo não interferiram no processo cível, no qual Flávio poderá responder a uma ação de improbidade administrativa.ESTAVA ERRADO: A versão original deste texto informava que o placar do julgamento havia sido de oito votos a três. Na verdade, ele foi de nove a dois. A informação foi corrigida às 9h25 de 29 de novembro de 2019.