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Cemitério sumido há 200 anos abriga 100 mil corpos de escravizados na Bahia

Mais de 100 mil corpos estão enterrados no local, segundo divulgado pelo MP-BA

Por UOL 26/10/2025 18h06
Cemitério sumido há 200 anos abriga 100 mil corpos de escravizados na Bahia
Pedido à Santa Casa para buscar o corpo de um escravizado para sepultar no cemitério em 14 de maio de 1835 - Foto: Reprodução

Um antigo cemitério localizado abaixo de um estacionamento no centro de Salvador, que serviu para o enterro de pessoas escravizadas e marginalizadas entre os séculos 17 e 19, abriga mais de 100 mil corpos, segundo levantamento apresentado ao MP-BA (Ministério Público da Bahia) na última semana.

O que aconteceu

Cemitério foi descoberto em maio em estacionamento no Complexo Pupileira, pertencente à Santa Casa de Misericórdia, na capital baiana. Uma escavação iniciada naquele mês buscava por vestígios do local que serviu para enterro de africanos escravizados e pessoas marginalizadas, como prostitutas, excomungados e condenados à morte, entre o fim do século 17 até o ano de 1844, quando o cemitério foi desativado.

Mais de 100 mil corpos estão enterrados no local, segundo divulgado pelo MP-BA. Resultado de uma pesquisa arqueológica, o dado foi apresentado no último dia 21 durante reunião no Ministério Público baiano e divulgado posteriormente no site do órgão. O encontro reuniu promotores de Justiça, representantes da Santa Casa, pesquisadoras e representantes de órgãos federais e estaduais como Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e Ipac (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia).

Pessoas que tiveram seus corpos enterrados no local viviam "à margem da sociedade" nos séculos passados, indicam estudos. Entre elas, estavam grupos de "escravizados, pobres, indigentes, não-batizados, excomungados, suicidas, prostitutas, criminosos e insurgentes", conforme divulgado pelo MP.

Para pesquisadores, resgate de acervo arqueológico é "fundamental para construção da memória de legados populares e sua reparação histórica". "É um tema de relevância para a formação da memória social e coletiva da Bahia e do país, pois estamos falando de séculos em que pessoas foram retiradas de seu território de maneira forçada para serem escravizadas e que tiveram seus laços quebrados e memórias apagadas", ressaltou durante a reunião no MP a arqueóloga Jeanne Almeida, que liderou as pesquisas.

Local que abriga antigo cemitério ainda funciona como estacionamento. Como próximos passos, o MP-BA, com base em recomendação apresentada pelo Iphan durante a reunião da última semana, vai emitir uma indicação para que a Santa Casa suspenda o uso do local como estacionamento. Pesquisadores envolvidos na descoberta defendem que o local seja reconhecido como "Sítio Arqueológico Cemitério dos Africanos".

"Entendemos que o próximo passo é garantir a proteção do local enquanto sítio arqueológico de memória sensível e promover uma escuta social dos movimentos sociais, lideranças religiosas e espirituais a fim de iniciarmos um processo de reparação histórica, rompendo um ciclo de silenciamento e apagamento desses grupos, para irmos construindo caminhos possíveis para o local", disse o promotor de Justiça Alan Cedraz, coordenador do Nudephac (Núcleo de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural), durante evento no MP-BA

Achados são fruto de cooperação técnica entre Santa Casa, MP-BA e pesquisadores. Em dezembro de 2024, o MP-BA fez uma intermediação com o hospital, que também autorizou a realização da pesquisa na propriedade onde está o Complexo Pupileira, nas proximidades do Dique do Tororó, no centro de Salvador.

Sobre os achados

Pesquisadoras apresentaram nesta semana resultado de pesquisa arqueológica realizada em maio. Durante o evento no MP baiano, a arqueóloga Jeanne Almeida descreveu as etapas e os processos do levantamento que, ao longo de 10 dias de estudos de campo e escavações, identificou materiais e fragmentos ósseos humanos considerados potenciais vestígios do antigo cemitério.

Entre os que podem ter tido seus corpos enterrados no local, estão líderes da Revolta dos Búzios (1798), da Revolução Pernambucana (1817), da Revolta dos Malês (1835). Conforme apurado pela coluna de André Santana, corpos de membros de outros movimentos brasileiros de libertação negra também podem estar no local. A localização do antigo cemitério que funcionou por cerca de 150 anos resultou do trabalho da pesquisadora Silvana Olivieri em sua pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

Investigações a partir de documentos históricos apontaram localização do cemitério como sendo no Complexo Pupileira. Em abril de 2024, Olivieri passou dez dias em Belém fazendo pesquisa de campo para o doutorado e soube de um antigo cemitério de indígenas, escravizados e indigentes que se encontrava soterrado no bairro onde estava hospedada. "Voltei com uma questão: existiria um cemitério similar em Salvador? Um cemitério desaparecido? Logo, a partir das pesquisas, descobri que sim", disse à coluna de Carlos Madeiro em maio.