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Documentos contrariam versão do Exército para morte de militantes

Relatórios e depoimentos mostram que integrantes da organização não foram assassinados por outros membros do próprio grupo

Por Terra 03/08/2019 13h01
Documentos contrariam versão do Exército para morte de militantes
Relatório da Operação Cacau, que prendeu integrantes da Ação Popular em 1973 - Foto: Reprodução / Estadão Conteúdo

Documentos do Exército e depoimentos de militares desmentem a versão do Centro de Informações do Exército (CIE) para justificar a morte de dois integrantes da organização Ação Popular Marxista-Leninista (APML), em 28 de outubro de 1973, no Recife. A versão divulgada na época é semelhante à usada pelo presidente Jair Bolsonaro para explicar a morte de Fernando Santa Cruz, pai de Felipe Santa Cruz, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que pertencia à mesma organização. Ele foi preso e morto em fevereiro de 1974, ao término da mesma operação do CIE contra a APML — ou simplesmente a AP, como era conhecida — que atingira seus colegas em Pernambuco.

Em transmissão ao vivo enquanto cortava seu cabelo, Bolsonaro disse que Fernando foi morto por seus próprios companheiros. Os homens do CIE afirmaram o mesmo sobre dois outros integrantes do grupo mortos no Recife: João Carlos Novais da Mata Machado e o ex-vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) Gildo Macedo Lacerda. A ação do CIE começara em junho de 1973. Era a Operação Cacau. A AP era então uma organização dividida. Uma parte do grupo defendia a união com o PCdoB e outra queria seguir independente. Ela nascera como uma organização católica progressista. Era hegemônica no movimento estudantil e, durante os anos 1960, aderiu ao marxismo, aproximando-se do maoismo.

Em 1966, um de seus membros teria se envolvido no atentado a bomba no Aeroporto de Guararapes, em Recife, que deixou 2 mortos — só nos anos 1990 é que essa informação foi revelada. A organização, no entanto, nunca foi acusada pelos militares de se envolver em ações armadas, como mostra até mesmo o processo no Superior Tribunal Militar (STM) sobre o atentado em Guararapes. O CIE decidiu deflagrar a operação contra a AP em razão de sua aproximação com o PCdoB. Para tanto, conseguiram aliciar em fevereiro de 1993 um ex-integrante da AP: Gilberto Prata Soares.

Gilberto era irmão de Maria Madalena Prata Soares, mulher de Mata Machado, integrante da direção nacional da AP e membro de uma tradicional família mineira. Seu pai era o jurista e ex-deputado federal de Minas Gerais, Edgard de Godói da Mata Machado, que assinara o Manifesto dos Mineiros contra a ditadura Vargas e depois se elegera pela UDN. Nos anos 1960, aderiu ao MDB. Os papéis da Operação Cacaumostram que Gilberto se transferiu para Salvador em junho e estabeleceu contatos com o cunhado e com Lacerda. Os militares seguiram durante meses Gilberto e as pessoas com quem ele se encontrava até mapear a organização.

Em São Paulo, a primeira prisão

 

A primeira prisão aconteceu em São Paulo. Era 5 de outubro quando o ex-deputado estadual Paulo Stuart Wright (PSP-SC), outro dirigente do grupo, foi detido quando descia de um trem de subúrbio. Wright foi apanhado pela equipe do qual participava a tenente da PM Beatriz Martins, a agente Neuza, que trabalhava no Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2º Exército. Assim como no Nordeste, os agentes dos DOI de São Paulo auxiliavam os homens do CIE na operação.

Wright foi interrogado no DOI e seu nome constou entre a lista de presos do destacamento segundo o sargento do Exército Massayumi Gushiken, que trabalhou no DOI de 1971 a 1975. De lá, foi conduzido encapuzado para Brasília, onde fica a sede do CIE, de acordo com relato de Gushiken, em um avião. Três dias depois de sua prisão, foi detido no Rio outro dirigente da AP, Umberto Câmara Neto — hoje também desaparecido. Câmara Neto estava hospedado no Rio na casa de Marcelo Santa cruz, irmão de Fernando, pai do presidente da OAB. Foi apanhado pouco depois de se encontrar com Mata Machado, o cunhado do informante do Exército.

No dia 10, foi a vez do ex-presidente da UNE, Honestino Guimarães, ser preso no Rio e desaparecer. No dia 19, Mata Machado acabaria preso em São Paulo. Ele planejava sair do País e ia para Minas, onde se esconderia em um sítio. No dia 22, os militares detiveram Gildo Lacerdaem Salvador. A informação 930/E2 feita pelo 4.º Exército (atual Comando Militar do Nordeste) no dia 12 de novembro de 1973 diz que Lacerda foi interrogado. Estava condenado a seis anos de prisão e vivia com documento falso em Salvador, onde se casara e trabalhava na empresa de água e esgoto da cidade. Era o coordenador regional da AP na Bahia. O documento afirma que no dia 26 de outubro "o nominado foi entregue a uma equipe do CIE para prosseguimento de interrogatório".

Relatório raro mostra quem era o informante da Operação

 

Dois dias depois, o CIE informou que Lacerda e Mata Machado haviam sido mortos por um companheiro de organização com quem iam se encontrar em Recife. Esse companheiro seria conhecido como Antonio. O problema é que Antonio era Paulo Stuart Wright, que havia sido preso em São Paulo. Os presos, portanto, teriam se encontrado com alguém que, segundo os militares do DOI do 2.º Exército, já estava preso, o que desmontaria a história do CIE. O CIE nunca assumiu as prisões de Wright, de Câmara Neto e de Honestino.

Nos papéis da Operação Cacau, há fotos da vigilância feita pelos militares e um relatório raro que confirma que Gilberto era informante. O documento cita que uma das pessoas presas na operação dizia conhecer Gilberto. "Esta informação partiu do declarante sem nunca ter havido insinuação deste encarregado, que procurou não queimar o informante infiltrado (Gilberto)". O Exército documentava assim quem era o homem que o levou ao núcleo da direção da AP.

Quatro meses depois, a operação terminaria com as prisões de Eduardo Collier Filho e de Fernando Santo Cruz. Marcelo Santa Cruz, o irmão do pai do presidente da OAB não havia sido preso apesar de ter abrigado Câmera Neto — era comum o Exército deixar pessoas em liberdade para poder vigiá-las, disse a agente Neuza. Foi da casa de Marcelo que Fernando saiu no dia 23 de fevereiro de 1973 para se encontrar comCollier Filho, seu amigo e dirigente da AP. Ambos desapareceram. Não há documento do Exército que justifique a morte de Santa Cruz como no caso de Mata Machado e de Lacerda. De acordo com o ex-agente do CIE, Marival Chaves, eles — que estão desaparecidos — foram presos pelo CIE e mortos. Assim a operação terminava com cinco desaparecidos e dois mortos.