'Ele colocou em risco outras pessoas', avalia infectologista após Bolsonaro testar positivo para covid-19
Infectologista Roberto Focaccia critica medidas de Bolsonaro
Nos últimos dias, o presidente Jair Bolsonaro participou de uma live com outras seis pessoas, foi a um encontro com empresários e esteve em um almoço em Brasília. Durante esses compromissos, que foram alguns dos diversos que teve recentemente, Bolsonaro estava sem máscara e não respeitou o distanciamento social, medidas recomendadas por autoridades médicas para evitar a propagação do novo coronavírus.
Após sucessivos eventos nos quais não seguiu as orientações para combater a pandemia, Bolsonaro testou positivo para a covid-19. Ele confirmou a informação na terça-feira (7). O presidente afirmou que teve os primeiros sintomas no domingo (5).
O infectologista Roberto Focaccia, professor livre docente pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que o presidente contraiu o novo coronavírus como consequência das atitudes que tem adotado desde o início da pandemia.
Desde os primeiros casos registrados no país, o presidente costuma minimizar a importância do vírus e chegou a classificá-lo como uma "gripezinha". Bolsonaro também se mostra contrário a medidas de isolamento social e ao uso de máscaras — recentemente, ele vetou a obrigatoriedade do acessório em locais como estabelecimentos comerciais e igrejas.
Focaccia considera que o próprio anúncio de Bolsonaro sobre a doença foi irresponsável. "Ele colocou em risco os repórteres que estavam ali perto, principalmente após retirar a máscara", diz à BBC News Brasil.
Bolsonaro disse que está com a covid-19 durante entrevista à imprensa. Enquanto conversava com os jornalistas, o presidente estava próximo a eles e não manteve o distanciamento social de, ao menos, 1,5 metro. Ao fim da entrevista, se afastou e retirou a máscara para, segundo ele, mostrar que está bem.
A conduta de Bolsonaro ao anunciar que está com o novo coronavírus foi duramente criticada por especialistas.
Apesar de não respeitar o isolamento social e usar máscaras em eventos pontuais — muitas vezes de modo inadequado —, Bolsonaro disse, ao revelar o diagnóstico da covid-19, que ficou preocupado, pois não queria infectar outras pessoas com o vírus.
Ao analisar eventos recentes em que o presidente participou, porém, é possível constatar que ele pode ter exposto outras pessoas ao vírus nos últimos dias.
Rotina de Bolsonaro nos últimos dias
Na noite da última quinta-feira (2), Bolsonaro fez uma live com outras seis pessoas, entre elas o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e o secretário da Pesca, Jorge Seif. Sem máscara e sem adotar o distanciamento adequado das outras pessoas, o presidente tossiu em alguns momentos durante a transmissão ao vivo.
É possível que Bolsonaro estivesse infectado quando fez a live. Ele disse que os primeiros sintomas surgiram no domingo, quando começou a se sentir indisposto. Depois, segundo ele, teve também dor muscular, cansaço e febre.
Estudos sobre a covid-19 indicam que os primeiros sintomas do novo coronavírus podem surgir de dois a 14 dias após a infecção; o mais comum é que a pessoa apresente os sinais a partir do quinto dia. Antes mesmo dos primeiros sintomas, segundo os estudos, a pessoa pode transmitir o vírus.
Desta forma, é muito provável que o presidente tenha colocado muitas pessoas em risco. Nos últimos dias, ele teve diversos encontros com ministros e outros compromissos. Uma reportagem da BBC News Brasil apontou que Bolsonaro se encontrou com, pelo menos, 36 pessoas desde a última sexta-feira (3).
Na sexta, ele se encontrou com o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, e um grupo de empresários. Fotos do evento mostram que o presidente não usou máscara e ficou perto dos convidados.
No sábado (4), sobrevoou áreas atingidas pelo "ciclone bomba", em Santa Catarina, que deixou 12 mortos. No mesmo dia, seguiu para um almoço na casa do embaixador dos Estados Unidos, Todd Chapman, em Brasília. O evento comemorou a independência americana. Imagens mostram que os convidados não respeitaram o distanciamento social e também não usaram máscaras. Em uma das imagens, Bolsonaro aparece abraçado ao ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.
Mesmo após apresentar sintomas, Bolsonaro continuou se encontrando com apoiadores. Na segunda-feira, por exemplo, ele cumpriu agenda com ministros, como Braga Netto, da Casa Civil, e Jorge Oliveira, da Secretaria-Geral da Presidência.
Os ministros que tiveram contato com Bolsonaro nos últimos dias fizeram exames, após a confirmação de que o presidente está com a covid-19.
Também na segunda-feira, Bolsonaro recebeu o líder do governo na Câmara dos Deputados, o Major Vítor Hugo (PSL-GO), para um almoço.
Os riscos
Para o infectologista Roberto Focaccia, não há dúvidas de que o presidente colocou outras pessoas em risco, principalmente em eventos recentes, por não seguir medidas como o uso de máscaras e o distanciamento social.
"No ponto de vista científico, a conduta do Bolsonaro, desde o princípio da pandemia, é um absurdo. O mundo inteiro ensina que é preciso seguir o distanciamento físico e as pessoas precisam usar máscaras. Isso é dito por todas as entidades de saúde, como a Organização Mundial de Saúde e o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos", destaca o médico.
Focaccia explica como a transmissão do novo coronavírus pode se dar em locais fechados com várias pessoas, como alguns dos que o presidente esteve dias atrás. "Os locais mais fechados, sem muita ventilação, têm um risco maior, porque qualquer pessoa que tenha o vírus pode transmiti-lo ao falar, não precisa nem tossir ou espirrar", diz.
"Quando a pessoa está falando, está soltando gotículas que podem ter o vírus. Esse vírus pode ficar no ar por até três horas e ser transmitido para aquelas pessoas que estão naquele local. Depois, essas gotículas e aerossóis caem em superfícies, onde se depositam. Se alguém tocar nessa superfície e depois tocar no rosto, vai contrair o vírus", detalha o médico.
Estudos apontam que o vírus pode ficar ativo por períodos distintos em diferentes superfícies. Em aço inoxidável e plástico, ele pode permanecer por até três dias. Em papelão, o Sars-Cov-2, nome oficial do novo coronavírus, sobrevive por até 24 horas.
Segundo estudos, o risco de transmissão do novo coronavírus também está presente em lugares abertos com aglomeração, principalmente quando falam, espirram ou tossem e liberam partículas que podem conter o Sars-Cov-2. Por diversas vezes, Bolsonaro participou de atos com aglomerações ao ar livre sem máscara, que é fundamental para reduzir as possibilidades de transmissão do vírus, e abraçou e cumprimentou apoiadores, desrespeitando também a medida de distanciamento social.
O anúncio da doença
Ao comunicar que está com a covid-19, Bolsonaro convocou três jornalistas — da CNN, Record e TV Brasil. Próximo a eles e usando uma máscara, confirmou que o exame deu positivo.
Focaccia comenta que, por ser um paciente sintomático, as chances de Bolsonaro transmitir o vírus durante a entrevista eram grandes, ainda que com máscara.
"Mesmo com máscara, ele não deveria ter dado uma entrevista presencialmente. A máscara reduz o risco, mas não é zero. Como ele é uma pessoa que está com o vírus, deveria permanecer isolado. Para piorar, ele estava muito perto dos repórteres", diz Focaccia.
"Na hora em que uma pessoa testa positivo para o coronavírus, tem que ficar completamente isolada por 14 dias, para evitar propagar o vírus. Foi um péssimo exemplo", diz o infectologista.
A atitude de tirar a máscara durante a entrevista piorou a situação, avalia Focaccia. O médico detalha que, ao falar, o presidente pode ter soltado partículas que podem conter o vírus. Ainda que ao ar livre, há a possibilidade de transmissão do vírus.
"Mesmo distante, ele não deveria ter feito aquilo. O Bolsonaro tentou mostrar que é uma gripezinha. Pareceu uma provocação", diz Focaccia.
O médico avalia como extremamente preocupante a conduta de Bolsonaro durante a entrevista. "É um péssimo exemplo para outras pessoas", diz. Ele acredita que muitos podem, influenciados pela postura do presidente, deixar de adotar medidas severas de isolamento por 14 dias, caso sejam infectados.
Outro ponto que incomodou Focaccia foi o fato de Bolsonaro ter revelado que usou composto de hidroxicloroquina com o antibiótico azitromicina. O presidente defendeu os medicamentos no tratamento contra a covid-19, mesmo sem nenhuma comprovação científica.
"Ele está tentando fazer o caso dele como uma propaganda da cloroquina. Está tentando mostrar que o coronavírus é só uma gripezinha para as pessoas que tomam essa medicação", declara o infectologista.
Para Focaccia, que perdeu diversos colegas de profissão que contraíram a covid-19 no trabalho, a conduta de Bolsonaro é uma afronta. "Toda a conduta adotada pelo presidente sobre o coronavírus é um absurdo. Muitas vidas foram perdidas e ele tenta adotar um tom de deboche para falar sobre o assunto. É um desrespeito, principalmente, aos profissionais que estão arriscando suas vidas nos hospitais", declara.