Saúde

Seminário sobre judicialização da saúde reúne judiciário de AL e gera revolta entre mães atípicas

Evento tem foco em ações movidas por famílias de pessoas autistas; mães organizam protesto para o dia

Por Wanessa Santos 30/07/2024 12h12 - Atualizado em 30/07/2024 12h12
Seminário sobre judicialização da saúde reúne judiciário de AL e gera revolta entre mães atípicas
Usuários dos planos de saúde enfrentam constantes investidas das operadoras para diminuir custos de seus serviços - Foto: mreco99/Depositphotos

Um seminário, promovido por uma operadora de plano de saúde em Maceió, está chamando a atenção de usuários e de advogados que atuam no direito da saúde. Marcado para acontecer no próximo dia 2 de agosto no Hotel Ritz Lagoa da Anta, o evento irá tratar sobre a judicialização da saúde suplementar e tem como público alvo membros do judiciário alagoano. Diante disso, um grupo de mães de crianças e jovens autistas está se mobilizando para realizar um protesto em frente ao hotel no dia do evento.

Na programação do 1º Seminário Alagoano da Judicialização da Saúde, difundida por meio de um arquivo em PDF, é possível ver que o autismo aparece em destaque em alguns dos tópicos que serão abordados, evidenciando o provável foco do evento: as ações movidas por usuários dos planos de saúde em busca pelo tratamento de crianças autistas.

Na “Mesa 4”, agendada para ter início às 15 horas, os temas tratados são: “Diagnóstico, características e tratamentos para o transtorno do Espectro Autista”, que será abordado por Mauro Couri, médico da Unimed Fesp; “Qual o papel da ANS na regulação das coberturas relacionadas ao TEA?”, palestra de Paulo Rebello, diretor da ANS e, ainda, “Os limites legais e contratuais da cobertura assistencial das terapias e métodos para o atendimento do portador de TEA na visão do STJ”, que será apresentado por Clênio Jair Schulze, juiz federal TRF 4. Nenhum outro transtorno ou patologia é citada especificamente, além do autismo.

Para as mães de crianças autistas, em Alagoas, que entraram em contato com a reportagem do 7Segundos, é evidente a motivação do plano de saúde com o seminário: a intenção deles é poder oferecer um tratamento não eficaz na rede credenciada deles, onde sabemos que a ciência ABA, na rede credenciada deles, não existe”, desabafa Miquelane Almeida, mãe do Joaquim de 10 anos, autista.

Miquelane conta que um grupo composto por cerca de 70 mães, familiares e apoiadores da causa autista, está se organizando para comparecer em frente ao hotel onde deverá acontecer o evento, para promover um protesto pacífico. Ela explica o temor que essas famílias estão tendo, diante do Seminário elaborado para diversas autoridades da justiça de Alagoas: “Tememos que o judiciário se volte a favor dos planos de saúde e tire o que é de direito nosso, um tratamento digno pro nossos filhos”, conta.

O documento que circula pelos grupos de mães de pessoas com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), é intitulado como programação provisória, mas traz como presença no evento nomes de peso como o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Alagoas, Vagner Paes, o presidente da Associação Alagoana de Magistrados (ALMAGIS), Hélio Pinheiro, o procurador-geral de Justiça de Alagoas, Lean Araújo e, ainda, do Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Ricardo Villas Boas Cuevas.

O Ministro também irá palestrar, e falará sobre “O STJ e os Desafios da Judicialização na Saúde Suplementar”, segundo a programação do evento.

Nas redes sociais o perfil do Instituto Luiz Mário Moutinho, uma das organizadoras do Seminário inédito, defende a ação como sendo um debate com especialistas sobre o tema da judicialização da saúde suplementar, direcionado para profissionais da área jurídica e da saúde. Não há menção à necessidade da presença das famílias desses pacientes no ciclo de palestras.

Na postagem de divulgação do evento, o perfil do instituto menciona que o seminário tem o apoio de diversos órgãos oficiais ligados à justiça, como OAB-AL, TJAL, ESMAL, ESMPAL e ALMAGIS. Entretanto, nossa equipe de reportagem entrou em contato com a assessoria do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ-AL), para confirmar se haverá a presença de membros do TJAL no evento, porém a resposta foi de que nem estavam sabendo do convite.


A assessoria do TJAL informou, ainda, que no dia marcado para acontecer o seminário, os presidentes do TJAL estão confirmados em outro evento, que se trata de um worshop sobre tecnologia e inovação com datas para 1º, 2 e 3 de agosto.

A redação do 7Segundos procurou, também, o Ministério Público de Alagoas (MPAL), para entender a motivação da presença de Lean Araújo, procurador-geral de Justiça. O MP explicou que é função do Ministério Público participar de todos os debates relacionados à saúde, sejam eles públicos ou privados. Disse, ainda que a participação do MP nesse seminário, caso o procurador-geral de Justiça tenha poder de fala, vai ser focado em dizer aquilo que lhe compete, de que forma ele acompanha o cumprimento da lei com relação às obrigatoriedades, às exigências que devem ser feitas e que devem ser cumpridas pelos planos de saúde.

O plano de saúde que está promovendo o seminário também foi contatado pela reportagem do 7Segundos, mas, se limitou a dizer que a operadora é uma das patrocinadoras do 1° Seminário Alagoano da Judicialização da Saúde, que está sendo promovido pelo Instituto Luiz Mario Moutinho, e forneceu o contato de uma equipe de marketing do Instituto para falar com a reportagem sobre o evento.

O Portal 7Segundos perguntou ao Instituto qual seria, especificamente, o público alvo do seminário. A resposta foi de que o público alvo são profissionais da saúde, advogados, acadêmicos, gestores e demais interessados no tema da judicialização da saúde suplementar. A organização informou, ainda, que o evento é voltado para convidados, porém, há um número de vagas disponível para participantes externos (50 vagas), e outras 50 para estudantes.

Com relação a intenção de um ciclo de palestras feito por um plano de saúde, para membros da justiça, o Instituto Luiz Mario Moutinho afirmou que o objetivo é proporcionar um espaço de reflexão e troca de experiências entre os participantes, apresentando diversos pontos de vista sobre a judicialização da saúde suplementar, segurança jurídica e sustentabilidade econômica e financeira do sistema.

Ainda de acordo com o Instituto que organiza, junto com o plano de saúde, o Seminário sobre Judicialização da Saúde Suplementar, todos os nomes convidados para participar do evento confirmaram presença, inclusive o TJAL.

Planos de saúde x autistas


Para contextualizar o imbróglio existente entre as operadoras de planos de saúde e as pessoas com TEA no Brasil, o 7Segundos entrevistou o advogado especialista em saúde, Márcio Morais.

7Segundos:


Dr., em primeiro lugar, por que as famílias de crianças autistas buscam a justiça contra os planos de saúde?

Márcio Morais, advogado especialista em direito da saúde

Márcio Morais:

Há vários motivos: por não responder o requerimento no prazo, por negar o tratamento por questões contratuais, negar por estar em período de carência, porque não está no rol da ANS. Então, fica a cargo do Poder Judiciário decidir esses conflitos.

7Segundos:


Como pode ser avaliado, do ponto de vista ético, este seminário proposto pelo plano de saúde e voltado para membros da justiça?

Márcio Morais:


Em uma análise bem superficial, a realização desse seminário pelo plano de saúde está mais associada a questões morais. Antes disso, deixa-se registrado que não há nada de ilegal. Então, acredito que a reflexão que a sociedade e os beneficiários do plano fazem é: por que motivo operadora de saúde, que é ré em mais de 2.000 processos na Justiça de Alagoas, patrocina um evento desse porte? Você já viu algum evento jurídico com nomes nacionais do direito promovido pela comunidade autista ou pessoas com câncer, por exemplo?

7Segundos:


As famílias de crianças / pessoas autistas, que estão em tratamento através dos planos de saúde, estão temerosas com a constante insistência das operadoras em modificar o fornecimento desses tratamentos no Brasil. Temos uma lei forte o bastante para assegurar que a saúde dessas pessoas esteja garantida?

Márcio Morais:


Esse medo, infelizmente, virou uma constante. As pessoas com autismo têm medo, as pessoas com câncer têm medo, as pessoas com doenças raras, entre tantas outras vivem com medo. Isso porque enquanto o médico assistente – aquele que está acompanhando há meses ou anos e que sabe a real necessidade do paciente –, prescreve determinada terapêutica, medicamento ou cirurgia, muitas vezes a operadora de plano de saúde tenta intervir para fornecer aquilo que ela entende melhor. Isso é invalidar a prescrição médica, coisa que a Justiça tem entendimento consolidado: quem define o tratamento é o médico, não o plano de saúde.

7Segundos:


Essa queixa dos planos de saúde quanto a sustentabilidade financeira diante da obrigatoriedade em custear o tratamento de autistas, tem procedência? Atualmente, qual o lucro anual dessas empresas no país?

Márcio Morais:


Existem pilares acerca da sustentabilidade, mas o interesse dos planos ou suas manifestações, pelo menos nos processos judiciais, se resumem na questão econômica, de que os gastos vão inviabilizar o sistema, que existe um iminente colapso, que isso pode prejudicar outros usuários como se o autista fosse quebrar o plano de saúde quando na verdade não é. Prova disso é que a ANS divulgou recentemente o lucro líquido das operadoras de planos de saúde em 2023, R$ 3.33 bilhões, isso mesmo, bilhões, o maior desde 2019, ou seja, não existe quebradeira, o autista não vai quebrar o plano.

Recentemente o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), se reuniu com representantes das operadoras dos planos de saúde para discutir uma situação que vinha ocorrendo de forma desenfreada, e causando muitos transtornos para a população que depende dos planos de saúde: a ruptura unilateral dos contratos.

Até o momento, existe um acordo firmado entre Lira e os planos de saúde, para não haver mais os cancelamentos de contratos, e restabelecer planos de quem faz tratamento contínuo. Há uma proposta na Câmara para reformar a legislação que regula os planos de saúde.

Diante de tudo disso, os usuários que dependem desses planos para seguir em tratamento médico esperam que a justiça siga reconhecendo o dever das operadoras em manter a saúde de seus beneficiários.