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Herói ou vilão: a polêmica 80 anos após a morte de Lampião

Por O povo 29/07/2018 10h10
Herói ou vilão: a polêmica 80 anos após a morte de Lampião
Lampião - Foto: Biblioteca Nacional

Virgolino Ferreira da Silva era vaidoso quanto à reputação e tentava induzir a imagem que tinham dele. Dizia que o assassinato do pai, um inocente morto pela polícia, teria sido a motivação de sua entrada no cangaço. Porém, as fontes mais confiáveis mostram que ele e os irmãos mais velhos já estavam envolvidos em crimes e que a morte do pai teria sido, inclusive, reação a um dos episódios nos quais os filhos se envolveram. Mesmo assim, o episódio ajudou a criar o mito de criminoso movido pela vingança.

Na construção da mitologia a seu respeito, concedeu entrevista em sua célebre visita a Juazeiro do Norte, em 1926. Questionado pelo jornalista se não o incomodava extorquir dinheiro de fazendeiros e destruir o patrimônio caso se negassem a colaborar, ele respondeu que jamais fez tal coisa. Conforme sua versão, tão somente pedia dinheiro a seus amigos. Virgolino lia matérias de jornais e revistas a seu respeito, quando os encontrava. Chegava a ficar muito zangado quando considerava algo injusto.

Em 28 de fevereiro de 1931, o New York Times chegou a divulgar que Lampião era espécie de Robin Hood - tirava dos ricos e dava aos pobres. Essa versão cresceu nas décadas após sua morte, difundida na literatura de cordel, na literatura, no cinema, até movimentos como o Manguebeat. Nessas narrativas, Lampião ganha ares de herói. Um herói-bandido, um justiceiro numa terra de injustiças.

Porém, os registros históricos não fornecem elementos para justificar essa versão. O contexto de surgimento do cangaço ajuda a entender o fenômeno. No sertão inóspito, as instituições quase não funcionavam. A Justiça quase nunca alcançava autores de crimes. A violência muitas vezes se tornava o recurso para vingar ofensas e fazer o que o Estado não foi capaz. Fosse motivo legítimo ou não, o fato é que, aos olhos dos sertanejos, tais motivações diferenciavam seus autores de criminosos comuns. Além disso, a criminalidade aumentava durante secas mais intensas. Não só ela, como o fanatismo religioso e o messianismo. Eram sintomas da crise na sociedade sertaneja, conforme classifica Billy Jaynes Chandler, historiador americano, autor de Lampião, o rei dos cangaceiros. Esse era o ambiente no qual proliferava o cangaço.

No caso de Lampião, todavia, não há elementos que fundamentem a vingança como razão para a entrada no cangaço. O início da vida de violência dele e dos irmãos foi muito mais decorrência de conflitos com vizinhos e acusações mútuas de invasão de propriedade e roubo de gado. A divergência logo degenerou em conflito armado. Em seguida, é fato que o assassinato do pai foi um marco para mergulhá-los em definitivo na vida de crime. Porém, a vingança nunca foi alcançada. Os que foram apontados como principais responsáveis pela morte de José Ferreira sobreviveram em décadas aos irmãos cangaceiros.

Os atos também não justificam a imagem de Lampião como alguém motivado pelas injustiças sociais. É verdade que promovia atos de generosidade. Em  Riacho Seco, município de Curaçá, na Bahia, houve um dos episódios no qual estabelecimentos comerciais foram saqueados, em 17 de setembro de 1929. Em um deles, as mercadorias foram distribuídas à população. Além disso, dava esmolas a pobres e retirantes com quem simpatizasse - e fazia isso com grande ostentação. Episódios como esse fortalecem a tese de "Robin Hood sertanejo". As boas ações também costumavam ser exageradas. Porém, não era a regra de sua atuação. Os episódios de violência cometidos por Lampião tinham como motivação conseguir dinheiro para o bando.

Houve, claro, vários episódios de vingança, sim. Nos primeiros anos, raramente deixava de escolher seus alvos entre alguém com que tivesse contas a acertar. Esse padrão começou a mudar. Em julho de 1925, quando seu primeiro irmão morreu no cangaço - Levino - passou a direcionar sua ira de forma indiscriminada. Entre agosto e setembro de 1925, seu bando atacou povoados na divisa entre Pernambuco e Alagoas. Pelo menos sete pessoas morreram. Conforme testemunhas, os alvos tinham sido gente pobree sem histórico de desavença com os cangaceiros. Entre as vítimas, pelo menos uma criança e um idoso, ambos desarmados.

Lampião também se irritava profundamente com construções de estradas. Grande parte de seu sucesso dependia do isolamento dos sertões, das dificuldades de deslocamento e comunicação. Por isso, incendiava estações de trem, cortavas fios telegráficos e ameaçava trabalhadores de obras de rodovias. Em outubro de 1929, atacou canteiro de estrada que saia de Juazeiro, na Bahia, e matou nove trabalhadores. Em dezembro do mesmo ano, o bando matou a sangue frio sete policiais que estavam rendidos. Em outubro de 1935, como vingança pela morte de cangaceiros por uma milícia civil, o bandoc atacou fazenda e matou um idoso e uma jovem.

Existe a imagem de Lampião respeitoso com mulheres, mas ela convive com testemunhos de estupros cometidos pelo bando, alguns dos quais o próprio chefe tomava parte. Um dos relatos apontam que 25 cangaceiros violentaram a jovem mulher de um delegado, na frente do marido. Virgolino teria sido o primeiro. Além disso, por volta dos anos 1930, há relatos de que o cangaceiro passou a impor um bizarro código de conduta. Mulheres que usavam cabelo cortado ou saias curtas eram surradas por ele. Um dos membros do bando, o terrível José Bahiano, instituiu como castigo a prática de marcar as mulheres com ferro em brasa.

Também estava longe de ser um crítico do poder. Como aponta Billy Jaynes Chandler, do ponto de vista das ideias e preconceitos, era um sertanejo convencional. Não se opunha a hierarquias e privilégios. Pelo contrário, frustrava-se de não estar entre eles. Ao ser entrevistado em Juazeiro do Norte, disse que gostaria de ser comerciante caso abandonasse o cangaço. Em outra ocasião, afirmou que gostaria de ser fazendeiro. A um jornalista, disse admirar a agricultura, a criação de gado e o comércio. "Eram as classes conservadoras que ele mais admirava". (CHANDLER, 1980. P. 239. Editora Paz e Terra).