Como vive a família que há dez anos não gera lixo
Um pote de vidro de um litro comporta todo o lixo produzido pela francesa Bea Johnson, de 43 anos, o marido Scott, de 54 anos, e seus dois filhos adolescentes, Max e Leo, durante um ano.
Nele vai tudo o que não pôde ser reciclado ou compostado. O frasco sempre acompanha Bea nas viagens que ela faz para dar palestras pelo mundo. "As pessoas se desconectam do impacto que o lixo vai gerar. Acham que, ao jogar as coisas fora, elas desaparecem", disse à BBC Brasil.
Há dez anos, ganhou popularidade na internet sua mudança radical para um modo de vida sem desperdício. Morando em uma casa em San Francisco, nos Estados Unidos, depois de viver em Paris, Amsterdã e Londres, ela começou a escrever sobre a experiência da família para adotar um consumo consciente e viver cada vez mais com menos.
Ela se tornou uma espécie de "guru do green living (vida mais ecológica, em tradução livre)" e a precursora do movimento "zero lixo", ao escrever o livro Zero Waste Home (Desperdício Zero - Simplifique a sua vida reduzindo o desperdício em casa, na edição lançada em Portugal).
A publicação já foi traduzida em 20 línguas e, mesmo sem ter sido lançada no Brasil, já é conhecida no país - Bea já visitou o Brasil para falar sobre a redução do lixo doméstico.
Hoje, cada brasileiro gera em média 1 kg de lixo por dia. No país, em 2016, a geração de resíduos sólidos urbanos foi de 78 milhões de toneladas, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). São Paulo é o Estado que produz o maior volume.
A quantidade de lixo nacional supera os 770 gramas que vão diariamente para as lixeiras de cada japonês e se aproxima do 1,4 kg que os franceses jogam fora todos os dias. A produção de lixo por habitante é semelhante à de países desenvolvidos, mas o modo de descarte ainda é pouco sustentável.
Pouco mais da metade do lixo coletado (58%) no Brasil tem destino adequado: resíduos gerados por 35 milhões de pessoas são descartados sem nenhum tratamento, de acordo com a última edição do relatório Global Waste Management Outlook.
O país ainda não se livrou dos lixões a céu aberto, quase 10% dos brasileiros não têm acesso ao sistema de coleta e as taxas de reciclagem estão estagnadas nos últimos anos.
Viver com menos
No caso de Bea, a conversão ecológica começou em 2008, em plena recessão americana, provocada pela crise das hipotecas.
"Decidimos nos mudar para o centro de San Francisco, mas, antes de encontrar a casa ideal, alugamos um apartamento pequeno e fomos só com o necessário. Colocamos as outras coisas em um depósito e vimos que 80% dos bens que tínhamos guardados não fizeram falta. Então, nos desfizemos deles", relembra.
Antes disso, o meio ambiente não era uma preocupação no dia a dia. A família passou a pesquisar sobre sustentabilidade e resolveu alterar drasticamente a forma de consumir. Scott abandou o antigo emprego e abriu um negócio como consultor de sustentabilidade.
"Compramos muito menos. Se adquirimos algo, é para substituir algum item. Compramos (bens) usados e alimentos a granel. Quando a gente compra um produto embalado, 15% do seu preço corresponde à embalagem."
Ao contrário do que ela ouvia de conhecidos, o novo modo de vida ajudou a economizar. Segundo Bea, o gasto da família foi reduzido em 40%. A casa é equipada com painel solar e um sistema para coletar a água da máquina de lavar e do banho para irrigar o jardim.
"Substituímos tudo que é descartável por alternativas. Há uma opção reutilizável para tudo, até para camisinhas. Trocamos lenços de papel por panos, absorventes higiênicos por absorventes de tecido e coletor menstrual, guardanapo de papel por guardanapo de pano, não usamos mais cotonetes ou algodão. Eliminamos uma grande lista de produtos. Isso se traduz em uma enorme economia que se acumula a longo prazo", garante.
Bea é formada em artes plásticas e, hoje, dá consultoria para marcas que querem atender o crescente número de "consumidores conscientes". Ela defende que não é preciso fabricar vários produtos em casa ou viver fora do sistema para conseguir parar de produzir lixo.
Além da alternativa oferecida pelas tradicionais feiras de rua, supermercados estão se transformando para oferecer cada fez mais produtos a granel, banir sacolas plásticas e facilitar a vida de quem quer comprar sem embalagem. Marcas também apostam em recipientes retornáveis.
No entanto, segundo Bea, a mudança também passa por consumir menos alimentos processados e eliminar produtos de limpeza industrializados.
"Há muito preconceito ligado a esse modo de vida. As pessoas imaginam que é preciso ser hippie, peluda e descabelada para fazer isso", diz Bea, que só usa roupas de segunda mão e maquiagem caseira.
Ela afirma que qualquer um pode eliminar quase completamente o lixo doméstico seguindo cinco etapas, independentemente de onde mora ou do quanto ganha.
"A primeira coisa é aprender a dizer não. Nesta sociedade de consumo, somos alvo de diversos produtos gratuitos. Sacos plásticos, cartões de visita, amostras, produtos de beleza em hotéis. Cada vez que a gente aceita, é criada uma demanda para que mais seja fabricado. Quanto mais eu recuso, menos coisas eu tenho para reduzir, reutilizar, reciclar e compostar, que são os quatro passos seguintes."
Economia circular
"As pessoas pensam 'eu não vou fazer nada, porque não me cabe, é responsabilidade do fabricante, do governo, eles têm de resolver isso'. Acho que a mudança está nas mãos do consumidor", diz.
"Cada vez que você compra, tem o poder de apoiar uma prática sustentável ou não. Cada vez que você compra, reforça um tipo de prática de um fabricante. Comprar diferente é uma maneira de votar. O fabricante só produz o que é consumido. Se o consumidor faz diferente, ele cria outra demanda."
No modelo "zero lixo", a resposta não está na reciclagem, que ainda é o destino apenas de uma pequena parcela dos resíduos produzidos. O foco é a prevenção do lixo e a reutilização.
O mercado de usados, portanto, se torna vital, porque permite estender a vida útil dos produtos e poupa recursos naturais para a fabricação de novos. Objetos são consertados com frequência e, ao invés de irem para aterros, vão para quem precisa.
"É um pouco como dizer: 'erramos nos Estados Unidos e está hora de voltar atrás'. Viver sem gerar lixo é o modo de vida do futuro. É como se a gente estivesse aqui para dizer a todos os países em desenvolvimento que almejam ter os hábitos de consumo dos americanos que eles têm a escolha agora de não fazer a mesma besteira", argumenta.