Claudemir Calixto

Claudemir Calixto

Claudemir Calixto

O novo normal imposto pela anormalidade

"Assim a vida abre as portas e as janelas todos os dias. Coloca a máscara da desconfiança e tenta seguir: olhos esbugalhados, voz abafada, sorriso estrangulado, com a expressão de quem perdeu a expressividade, a alegria".

29/05/2020 00h12
O novo normal imposto pela anormalidade

Um caminhão pipa corta as ruas da cidade, bem devagar. Em pé no para-choque do veículo, um profissional segura uma mangueira, e determina a pressão necessária para lavar a rua sem que atinja os transeuntes. Nas calçadas dos dois lados, pedestres se esquivam do jato d’água sem qualquer reclamação. Quase todos usam máscaras.

O acessório traz informações sobre essas pessoas que dizem não apenas do momento pelo qual passa o mundo. Ele fala, através de características quase subjetivas, expostas no tecido que as compõem, do cuidado que elas têm com a sua saúde; publicitam o time para qual o torcem – há muito, sem comemorar gol –; divulgam a empresa para qual trabalham ou prestam serviços; expressam a posição política, num país polarizado em função da politização de um medicamento.

E esses são apenas alguns dos dados, expostos através de uma máscara, entre tantos outros tópicos político-ideológicos que engrossam os debates nas redes sociais; que produzem, de modo infinito, notícias nas televisões e rádios, nos sites e revistas, e nos canais do youtube. Até mesmo a ausência da máscara diz muito sobre quem trafega nas ruas. Esse é o novo normal vivenciado em Teotônio Vilela, no estado de Alagoas. É o novo normal do Brasil, é o novo normal do mundo.

 

A cena nos remete à filmes hollywoodianos. Ninguém imaginou que depois de 2019, ano considerado difícil por muitas pessoas Brasil afora – e também aqui dentro, na nossa província – viveríamos um ano que, ao que parece, deve ficar para a história como o ano que não aconteceu do ponto de vista da normalidade da vida humana, como a conhecíamos até agora.

Na fila da lotérica, mantenho a distância o máximo que posso. A moça atrás, mais próxima do que estou do moço da frente, me provoca: “a distância não é pra travar a fila! Volto os olhos para ela, e silencio. A moça que organiza o fluxo, educadamente, solicita que eu entre. Reluto, justificando que, quanto menos gente dentro, melhor para todos. Ela, aloca outro cliente na minha frente. Espero a minha vez e entro. Mantendo o máximo de distância que posso. Mas, lá dentro, não se percebe muita preocupação, senão, pelo uso da máscara. Ainda há um calor notório. Seja pela aproximação mantida pelas pessoas, seja pela temperatura do ambiente.

Na rua, um carro de som informa sobre a importância de se distanciar. Fala também da imprescindibilidade do uso da máscara, da necessidade de permanecer em casa, dos esforços do poder público para conseguir salvar vidas o tanto quanto possível. Num tom institucional sério, mas, acima de tudo educado, quase complacente, o comunicado suplica: “se poder, permaneça em casa”.

 

Sou atendido. Saio me esquivando o máximo que posso. Lamentando essa nova prática de não tocar nas pessoas. Já na calçada, encontro uma amiga de longa data – acomprimento. Em recaída, toco seu braço. Sigo pela avenida principal. Ela está movimentada. Mas, para toda pessoa que se olha, um acessório é a coisa mais notória. As lojas, em sua maioria, estão “fechadas”. A rua está molhada como se tivesse chovido há pouco. Mais à frente encontro novamente o caminhão pipa em sua empreitada. Enquanto ele molha a avenida, o homem pulveriza as calçadas.

Assim a vida abre as portas e as janelas todos os dias. Coloca a máscara da desconfiança e tenta seguir: olhos esbugalhados, voz abafada, sorriso estrangulado, com a expressão de quem perdeu a expressividade, a alegria. Os acenos são quase que castrados; os abraços se transformaram em emotions nas telas de smartphones. Assim, o novo normal se impõe.