Polícia

Estado tenta conter colapso do sistema penal, mas gravidade só aumenta

Quantidade de vagas produzidas anualmente não acompanha a demanda de encarcerados e as facções demonstram organização e articulação

Por Carta Capital 15/08/2019 10h10
Estado tenta conter colapso do sistema penal, mas gravidade só aumenta
Estado tenta conter colapso do sistema penal, mas gravidade só aumenta - Foto: Reprodução

A segurança pública é um dos temas que mais preocupam a sociedade brasileira, especialmente devido ao aumento da criminalidade no país. Segundo dados de 2015 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), nos últimos 35 anos ocorreram cerca de 1,5 milhão de assassinatos no Brasil, o que levou o país à condição de campeão mundial em homicídios. Segundo a pesquisa, possivelmente haverá aumento da criminalidade no país até o ano de 2023, devido a alguns fatores, como população jovem, alta desigualdade social e alta prevalência de armas em circulação.

Ademais, há no Brasil um problema de superpopulação carcerária. Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), em 2016 o número de pessoas privadas de liberdade no Brasil ultrapassou a marca dos 700 mil. Assim, ocorreu um aumento de 707% das pessoas privadas de liberdade em relação aos registros da década de 90.

A construção de novos presídios não acompanha o aumento da população carcerária. O número de presos é muito superior às 368.049 mil vagas do sistema penitenciário, totalizando um déficit de 358.663 vagas e uma taxa de ocupação média dos estabelecimentos de 197,4%, ou seja, em um espaço que deveria custodiar 10 pessoas, existem por volta de 19 indivíduos encarcerados. Ressalte-se, ainda, que, do total de pessoas presas no país, aproximadamente quatro entre dez (40%) estavam presas sem ainda terem sido julgadas (Depen, 2016).

Pode-se afirmar que a superlotação carcerária é o principal fator de degradação do sistema prisional, já que todos os outros serviços primordiais, como saúde, educação, trabalho, segurança, dentre outros, acabam não sendo disponibilizados aos presos, devido à própria falta de capacidade estrutural do sistema por questões orçamentárias ou até mesmo devido à falta de reformulação de políticas públicas e da legislação penal.

Em 2015, foi ajuizada uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 347) pelo PSOL perante o Supremo Tribunal Federal.  Na petição inicial, defendeu-se que o sistema penitenciário brasileiro vive um “Estado de Coisas Inconstitucional”, em razão de violação dos direitos humanos de forma frequente e generalizada; omissão, inércia e incapacidade das autoridades públicas em modificar a conjuntura; numa situação que exige a atuação de uma pluralidade de autoridades para solucionar o problema.

No bojo de medida cautelar, em sessão de julgamento realizada em agosto de 2015, os ministros do STF determinaram aos juízes e tribunais que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizassem audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo de 24 horas. Na sessão de julgamento, o relator, ministro Marco Aurélio, destacou a superlotação e as condições degradantes do sistema prisional que configuram um cenário fático incompatível com a Constituição Federal, haja vista a ofensa a diversos preceitos fundamentais e ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Reafirmou a vedação à tortura e ao tratamento desumano, o direito de acesso à Justiça e os direitos sociais à saúde, educação, trabalho e segurança dos presos.  Sustentou que o quadro resulta de uma multiplicidade de atos comissivos e omissivos do Poder Público, incluídos os de natureza normativa, administrativa e judicial.

Também houve graves denúncias da Organização das Nações Unidas, conforme relatório publicado em janeiro de 2016. O advogado e especialista em Direitos Humanos, Juan Méndez, integrante do Conselho de Direitos Humanos da ONU, denunciou a prática de tortura e maus-tratos nos presídios brasileiros, o que foi identificado após sua visita aos estados de São Paulo, Sergipe, Alagoas e Maranhão em agosto de 2015, a convite do governo brasileiro.

No relatório apresentado, documentou o tratamento cruel, degradante e desumano ao qual os condenados são submetidos, prejudicando o usufruto de diversos direitos como assistência médica, assistência jurídica, oportunidades de trabalho e educação, acesso a água, comida, e até mesmo banho de sol e ar fresco.  No documento, consta a superlotação dos presídios e frequente desrespeito aos direitos humanos, além de dados importantes, como a informação de que o Brasil está entre os cinco países com a maior população carcerária per capita do mundo, contando com mais de 725 mil detentos, o equivalente a mais de 190 pessoas para cada 100 mil habitantes.

É válido ressaltar que os países com as maiores populações prisionais do mundo, notadamente os três primeiros, Estados Unidos, China, e Rússia, apresentaram reduções nas taxas de aprisionamento entre 2008 e 2014 e apenas o Brasil teve um aumento (33%).

Neste sentido, as ideias de Foucault a respeito da prisão ainda são bem atuais. Em sua obra, o autor afirma que a prisão é escuridão, violência, e a suspeita é de que a reclusão penal é incapaz de responder à especificidade dos crimes, alegando ser desproporcional quanto ao efeito sobre o público, inútil, nociva e cara para a sociedade, mantém os condenados na ociosidade, e multiplica-lhes os vícios. Aduz, ainda, que é difícil controlar o cumprimento de uma pena dessas e corre-se o risco de expor os detentos à arbitrariedade de seus guardiões.

Em 1992, 111 presos foram mortos após a Polícia Militar entrar na Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru.

Em 2002, 27 presos foram mortos no presídio Doutor José Mário Alves da Silva, conhecido como Urso Branco, em Porto Velho.

Em 2004, 30 presos e 1 agente penitenciário morrem na Casa de Custódia de Benfica no Rio de Janeiro.

Em 2010, 18 presos foram mortos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas em São Luis do Maranhão.

Em 2016, 26 presos foram mortos pela guerra entre as facções na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, em Natal.

Em 2017, 33 presos morreram na Penitenciária Agrícola do Monte Cristo, em Boa Vista, também em função da guerra entre facções, em um caso marcado por decapitações e olhos e corações arrancados.

Ainda em 2017, 56 presos foram mortos, após conflito entre as facções no Complexo Penitenciário Anísio Jobim em Manaus. Em 2019, na mesma penitenciária, 55 presos foram mortos.

No dia 29 de julho de 2019, 58 presos foram mortos no Centro de Recuperação Regional de Altamira (PA), sendo 16 decapitados. A guerra entre as facções continuou no dia seguinte, no transporte de 30 presos por caminhão cela, onde ocorreu a morte por estrangulamento com as próprias algemas plásticas de mais 4 presos. O resultado foram 62 mortos, o que representa 31% da capacidade do presídio se não houvesse excesso lotação.

O Estado mobiliza-se em um esforço para conter os resultados negativos do sistema penal, porém, não obtêm êxitos e a gravidade do problema aumenta. A quantidade de vagas produzidas anualmente não acompanha a demanda de encarcerados. As facções demonstram mais organização e articulação que o próprio Estado.

Agora, mais do que nunca é o momento de refletir sobre as leis e a aplicação das penas. A pena, como “impulso que reage com um mal ante o mal do delito”, nas palavras de Maggiore, sempre esteve presente na história, pois todas as civilizações deparavam-se com a problemática da infração à lei. A palavra pena provém do latim poena e do grego poiné, e tem o significado de inflição de dor física ou moral que se impõe ao transgressor de uma lei, porém, a lei tem como papel unir a sociedade para frear o contínuo estado de guerra, afim que a liberdade não seja inútil pela incerteza de conservá-la.