Moeda social transforma a realidade de comunidade no interior de Alagoas
Com o auxílio de pesquisadores, agricultores de Igaci implantam tecnologia e promovem economia solidária na região Agreste
Imagine viver num local onde a moeda utilizada para comprar e vender mercadorias seja definida pela própria comunidade. E que, para isso, esse grupo de pessoas use como base a cooperação e a solidariedade entre os produtores, comerciantes, consumidores e atores sociais de um território, sob a coordenação de um banco comunitário. Parece improvável? Esse cenário – impensável para a maioria da população – existe e vem transformando a realidade de uma pequena comunidade em Alagoas.
Desde 2016, produtores rurais vinculados à Associação de Agricultores Alternativos (AAGRA), no município de Igaci, desenvolveram a moeda social Terra, em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Sete anos depois, a moeda é aceita em mais de 30 estabelecimentos comerciais, como postos de combustíveis, farmácias e supermercados, o que garante a circulação de riqueza e promove a economia solidária na região.
A moeda é equivalente ao Real, ou seja, um Terra tem o mesmo valor de um Real. Então, por que utilizar o Terra e não o Real? A resposta está na geração de riqueza local e no aumento da venda de produtos da comunidade. Para se tornarem mais atrativos, esses produtos são comercializados, na moeda Terra, com descontos de 3% a 10%, elevando as vendas e fazendo com que o dinheiro da cidade permaneça por lá.
Para gerir esse sistema financeiro, os integrantes da AAGRA implantaram o Banco Comunitário Olhos D’Água. Nele, é possível fazer o câmbio – troca entre as moedas –, além de obter financiamento para a expansão dos pequenos negócios. A iniciativa tem fortalecido a economia da região e melhorado a qualidade de vida da comunidade.
“Tínhamos uma experiência com moeda social, mas não dentro da estrutura de um banco comunitário. A partir da parceria com a Incubadora Tecnológica de Economia Solidária da Ufal, tivemos acesso a mais de um ano de formação para entender como funcionava um banco comunitário e uma moeda social. Então, a partir daí, passamos a fazer a gestão do banco”, explicou Gleice Silva, coordenadora programática da Associação.
Segundo ela, a implantação da moeda provocou uma mudança no perfil de consumo, fazendo com que os moradores da região revissem seus hábitos e priorizassem aquilo que é produzido localmente. O aumento das vendas, por sua vez, tem feito com que os produtores rurais invistam ainda mais em seus negócios, criando um círculo virtuoso.
“A função principal da Terra é fazer com que o dinheiro circule dentro da comunidade e que não saia desse território. As moedas sociais funcionam ou foram implantadas em municípios que estão em situação de pobreza, nas quais o dinheiro é levado para outras áreas. A ideia é impulsionar a circulação dessa moeda, estabelecendo a rede de economia solidária, valorizando empreendimentos e empreendedores”, afirmou Gleice Silva.
A coordenadora programática da AAGRA acrescenta: “Todo o processo de construção da moeda, como o nome e as ilustrações, foi feito de forma colaborativa. Acredito que esse tipo de iniciativa é importante, principalmente, por trazer esse debate da economia solidária e da valorização do trabalho das pessoas, e não focar apenas no consumismo. A moeda traz esse debate, da valorização do trabalho das pessoas.”
Mas o caminho até a consolidação da moeda social foi longo. Coube ao professor e pesquisador Leonardo Leal, um soteropolitano que desenvolveu sua trajetória acadêmica na área de gestão social, plantar a semente da moeda Terra e do Banco Comunitário Olhos D’Água junto aos agricultores da AAGRA. Em 2015, ele desembarcou na Ufal, no Campus Arapiraca, e conseguiu realizar um trabalho que foi além dos muros da instituição.
“Sempre estive entre a universidade e as comunidades. O meu trabalho se define em uma perspectiva de pesquisa e extensão de fronteira, entre a universidade e a comunidade. O meu trabalho faz sentido na medida em que há essa articulação entre universidade, comunidades, associações e movimentos sociais”, ressaltou Leal, que é graduado e mestre em Administração pela UFBA e concluinte do doutorado em Ciência Política pela UnB e ISCTE-IUL.
De acordo com o professor e pesquisador, essa interação entre a universidade e as comunidades se mostra benéfica para ambas as partes. Com ela, a Ufal cumpre com o seu papel social de formação dos estudantes e encontra campo para realizar seus estudos e aplicar seus conhecimentos. Já as comunidades têm a oportunidade de vivenciar novas experiências e se desenvolver, como é o caso da população de Igaci.
“Busco articular ações de ensino, pesquisa e extensão. O trabalho que eu faço não dissocia o ensino da extensão e da pesquisa, mas o mote para realizá-lo é a interação da universidade com a comunidade. E todo esse trabalho vai para a sala de aula, para o ensino, e se transforma em resultados de pesquisa”, declarou Leal.
Para viabilizar as pesquisas e suas aplicações nas comunidades, o professor fundou a Incubadora Tecnológica de Economia Solidária (Ites). A proposta desta incubadora é abrigar os diversos projetos que compõem o tema economia solidária. “Atualmente a Incubadora tem como professores integrantes eu, que sou o coordenador, e o professor Marconi Tabosa, mas, ao longo de sua história, nós contamos com outros professores fixos e em colaboração eventual. Já chegamos a ter sete docentes e quase vinte estudantes”, acrescentou Leonardo Leal.
Outra experiência exitosa desenvolvida pelos pesquisadores da Ufal aconteceu em parceria com o Instituto Mandaver, localizado no Vergel do Lago, em Maceió. O grupo criou o Banco Comunitário Laguna e lançou a moeda Sururote. A iniciativa é considerada pelos envolvidos no projeto um marco que conquistou reconhecimento nacional.
“Essa é uma experiência urbana, desenvolvida em um bairro extremamente pobre. Neste caso, o circuito não é do município, como aconteceu em Igaci, e, sim, do bairro, que, por meio do Instituto Mandaver, conseguiu criar o Banco Laguna e a moeda social Sururote, que tem grande impacto”, ponderou o professor e pesquisador.
Leonardo Leal segue afirmando: “Os bancos comunitários têm como característica a oferta de microcrédito para produção e consumo. Esse microcrédito é feito em moeda social e essa moeda é aceita apenas na comunidade. Portanto, nos comércios locais. O banco cria uma rede de adesão, onde esses empreendimentos comunitários vão aceitar a moeda social. Isso é muito importante para fazer a roda da economia solidária funcionar.”
Segundo o professor, a ideia do banco comunitário e da moeda social é fazer com que a renda e a riqueza passem a ficar na comunidade. “Um dos problemas que a gente identifica nessas comunidades é que grande parte do que se produz e se consome é produzido fora dela. E isso tem um efeito bastante problemático para aprofundamento da pobreza e da desigualdade”, ressaltou Leonardo Leal.
O pesquisador espera que iniciativas como as desenvolvidas pela Associação de Agricultores Alternativos, em Igaci, e pelo Instituto Mandaver, em Maceió, possam servir de inspiração para uma atuação mais efetiva por parte do poder público.
“Essa experiência é resultado de um projeto acadêmico de pesquisa e extensão universitária que eu conduzo na Ufal há oito anos, com a colaboração de professores e de estudantes. Isso gera um efeito acadêmico e político, porque ao mesmo tempo que produz conhecimento, pode gerar políticas públicas. A nossa ideia é replicar essa metodologia como um modelo em outras comunidades”, concluiu Leonardo Leal.
Matéria publicada na Revista Saber Ufal de 2023. Veja aqui essa e outras matérias.