O Declínio da Pesca Artesanal em Jequiá da Praia
Pesca predatória e invasões de peixes exóticos põem em risco atividade pesqueira e maior fonte de renda da cidade
“Cestos com muitos peixes” na língua indígena Tupi, Jequiá da Praia é o município ‘caçula’ de Alagoas. Tem cerca de 12.000 habitantes e fica localizada a 65 km de Maceió, na AL-101 Sul. A cidade litorânea carrega praias pouco exploradas pelo homem, falésias, manguezais, Mata Atlântica e rios que se encontram entre mares e lagoas. Uma destas é a segunda maior em água doce do país e a terceira em extensão de Alagoas, com 18 km. Chame-se Lagoa Jequiá. Este conjunto natural presenteia a terra dos Caetés e é responsável por manter a mais importante atividade tradicional e fonte de renda do município: a pesca.
Mas, para que permaneça assim, é preciso que as espécies continuem se reproduzindo e em uma quantidade que atenda a grande demanda de pescadores. Não é o que vem acontecendo.
Pescadores relatam que a atividade pesqueira vem sendo prejudicada à medida que espécies nativas estão reduzindo nos rios e nas lagoas. O que é um problema, porque, além da pesca, apenas a prefeitura, o turismo e a cana-de-açúcar são as opções lucrativas da região. Isso intensifica a importância da preservação dos rios e lagoas como forma de proteção aos peixes nativos.
O povo jequiaense é simples, tipicamente interiorano e se concentra, em maior quantidade, na região chamada de Lagunar, composta por 11 povoados,onde abrange toda a Lagoa Jequiá.
O cenário de pesca na região é bem característico. São diversos barracos chamados de girais- onde guardam os barcos e os instrumentos de pesca -, montados pelos próprios pescadores com madeira nos rios que escoam dentro da cidade. São nos girais que os moradores pescam ao mesmo tempo em que interagem entre si. Outra forma é sair lagoa adentro, pelo dia ou pela madrugada.
Manoel Sebastião dos Santos, morador da cidade há 73 anos - que corresponde a sua idade -, aposentado e pescador desde criança, conta como era viver da pesca desde o início da sua carreira e o que mudou no decorrer do tempo: “Há uns 25 a 30 anos, iam de quatro a cinco caminhões “pra” Maceió “pra” os pombeiros vender os peixes. A gente passava de seis a oito dias pegando peixe. Isso antigamente ‘’né’’, hoje não é mais assim”.
Pombeiro era o nome dado ao comprador do peixe que o revendia na feira em Maceió. Agora, Manoel expõe a situação escassa que rios e lagoas jequiaenses enfrentam: “Agora não tem nada. Tá zero, ruim”. Ele calcula que esse processo de escassez vem acontecendo há mais ou menos 10 anos. E salienta: “Hoje, pescador não pode criar filho dependendo da pescaria. Antigamente, muitos dos meus amigos construíram até suas casas com o dinheiro das vendas dos peixes, hoje mal dá para comer”.
Enquanto Manoel lamenta o momento precário da pescaria, sua esposa, Doralice, interrompe-o ao se lembrar, que em Jequiá da Praia a prática era tão intensa que existia um local específico, chamado “balança”, ponto de pesagem que facilitava o comércio de peixes na localidade– hoje às ruínas.
Maria Rosa Domingos dos Santos, 45 anos é pescadora desde os 12. Ela construiu sua casa com dinheiro adquirido por meio da pesca. Junto com o esposo, conseguiu mobiliá-la cimentá-la, colocar pisos de cerâmica e acrescentar uma área externa espaçosa, onde são penduradas tarrafas e outros instrumentos de trabalho.
“Hoje não aconselho ninguém fazer dívida confiando no dinheiro de venda de peixes, porque não vai conseguir pagar”, alerta Maria Rosa.
Os peixes mais pescados nos rios e lagoas de Jequiá são a Carapeba - típico da região, com alto valor comercial -, o Assú, a Tilápia, a Curimã, o Camurim, o Carapicu, o Robalo, além de Siri e Camarão. Atualmente, o peso de um desses peixes custa em média R$ 18,00.
Maria Rosa alerta: “O pescador está pedindo socorro”. Ela lembra que esses peixes, nos tempos de fartura, eram capturados em dois dias na semana. O suficiente para pagar as dívidas, colocar comida na mesa, e ainda comprar materiais que julgassem necessários.
Atualmente, o trabalho é redobrado porque a pesca se tornou diária e foi preciso buscar outros meios de sustentação.
“Antes eu pescava duas vezes por semana para a semana inteira. Agora saio todos os dias, às quatro da manhã e o que ganho mal dá para a comida. Ainda consigo viver bem porque meu marido faz uns bicos [trabalhos informais] e tenho uma filha que trabalha. Mas tenho uma família inteira que sobrevive somente da pesca”, explica.
A pescadora é uma dos 15 irmãos que compõem a família. E todos têm a pesca como principal fonte de renda. Um exemplo deles é Edenilson Domingos dos Santos, 33 anos. Na área externa da sua casa, ele emenda a rede artesanalmente e afirma ganhar R$ 300 com a pescaria, mas precisa complementar o lucro trabalhando em uma usina da região. Sua companheira ajuda-o tirando filé de siri. No momento da entrevista, aparece um cliente em busca de Carapeba para levar à família em Maceió, mas o pescador não tinha o peixe para vender.
Edenilson e o esposo de Maria Rosa representam centenas de famílias em Jequiá, que sentiram a necessidade de migrar para outros postos de trabalhos, como a prefeitura, o turismo, as próprias usinas de açúcar, agricultura ou trabalhos como pedreiro.
Causas da redução
Cientificamente, as causas para o desequilíbrio no ecossistema em Jequiá da Praia não foram descobertas. No entanto, a pesca predatória é unânime dentre as respostas dos pescadores, do Instituto Chico Mendes da Biodiversidade (ICMbio), da Colônia de Pescadores e de biólogos, como o mestre em ecologia, Everson Cardoso.
Outra possibilidade é a introdução de peixes exóticos na Lagoa Jequiá, como o Tucunaré, um predador voraz de espécies nativas como a Carapeba e outros peixes de relevante importância econômica e cultural da região.
A pesca predatória engloba diversas práticas realizadas ainda hoje pela própria população, tais como o uso da rede de malha fina e a pesca em época de defeso, durante as desovas das espécies. As redes de malha fina são compradas direto da fábrica As práticas são proibidas, entretanto, parte dos pescadores continua retirando filhotes de peixes, mesmo correndo o risco de serem flagrados pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Para Maria Rosa, a consciência dos próprios pescadores minimizaria o problema. Porém, os órgãos ambientais deveriam ser mais rígidos quanto à fiscalização. “Sempre usaram redes de malha fina. Até hoje continuam usando às escondidas. As pessoas aqui não têm consciência. Mas acho que o Ibama e o ICMbio deveriam fiscalizar as próprias fábricas que vendem as redes aos montes, não somente a gente [pescadores]”, sugere.
O segundo fator apontado como responsável pelo desequilíbrio foi a introdução do peixe Tucunaré, uma espécie caracteristicamente predatória e de fácil reprodução, nativa das bacias amazônicas. A presença dele é real, e segundo Everson Cardoso e o engenheiro de pesca, doutor em Oceanografia e professor da Universidade Federal de Alagoas, Igor da Mata Oliveira, uma vez introduzida nos rios e lagoas de Jequiá, sua retirada é impossível.
Everson explica as características predatórias do Tucunaré e por que sua introdução foi um erro grave: “O tucunaré é um predador ativo, que consome peixes e crustáceos através das perseguições persistentes e botes rápidos”. A pescadora Maria Rosa confirma já ter encontrado peixes nativos dentro do Tucunaré ao tratar o predador, após capturá-lo.
Além disso, Everson ressalta que o peixe Tucunaré, por ser uma espécie exótica, não possui predadores naturais na região de Jequiá, capazes de manter seu controle populacional, restando poucos como o jacaré, lontra e o próprio homem. O Tucunaré exibe cuidado parental quando desova. Ele cuida dos alevinos, ao contrário de muitas espécies nativas que contam basicamente com refúgios oferecidos pelas raízes dos mangues para evitar predação.
Questionados sobre os responsáveis pela introdução do Tucunaré nas águas jequieanses, os pescadores, a colônia dos pescadores, os próprios estudiosos e o ICMbio não souberam responder.
“Não há evidências de quem seja o responsável, e nem se houve negligência, mas a presença do tucunaré na lagoa é real e não há uma forma de retirar”, afirma o engenheiro de pesca.
“É relevante identificar as causas da invasão do Tucunaré para evitar a introdução de outras espécies no sistema. No entanto, é interessante do ponto de vista da conservação, reduzir os danos ambientais gerados, uma vez que essa bioinvasão é irreversível”, acrescenta Everson Cardoso.
Por isso, o Tucunaré é o único peixe que pode ser pescado ilimitadamente, sem nenhuma regulação dos institutos de Meio Ambiente. Entretanto, segundo os pescadores, não há como sobreviver da pesca deste peixe porque a carne não está entre as preferências dos compradores e é difícil capturá-lo, o que torna seu preço pouco rentável. Um quilo custa em média R$ 9,00.
Outros fatores que acrescentam aos já citados foram descritos tanto pelo ICMbio como pelo engenheiro de Pesca, Igor da Mata. São eles: falta de saneamento básico e esgoto in natura direto na lagoa, desmatamento de mata ciliar, assoreamento e o uso de uma rede no canal da lagoa. “O uso desta rede é um questão cultural, que muito provavelmente prejudicou a reprodução e o recrutamento de várias espécies nativas”, acrescenta o engenheiro.
Como solucionar?
Em setembro de 2001, foi criada em Jequiá da Praia a Reserva Extrativista Marinha da Lagoa do Jequiá (Resex), com uma área total de 10.203,90 hectares. Esta área corresponde a Laguna Jequiá, parte da marinha a três milhas náuticas, linha da costa entre os rios Taboado e Jequiá e parte do Rio Jequiá e manguezais, localizados entre a Lagoa Jequiá e o mar. Ela é administrada e fiscalizada pelo ICMbio, órgão ambiental pertencente ao governo federal. O objetivo da criação é o de conciliar o sustento das famílias com a preservação dos recursos naturais disponíveis no local.
Somente a população jequiaense está autorizada a extrair peixes da Unidade de Conservação e, para isso, a proibição do uso da rede de malha fina e da pesca durante o período de defeso foram algumas das medidas tomadas pelo Instituto. O Ibama também fiscaliza, visitando as áreas sem aviso prévio.
Na época de defeso, as famílias que sobrevivem da pesca recebem uma bolsa, denominada de “Bolsa Verde”, disponibilizada pelo governo federal, a fim de garantir o sustento familiar nos dias em que a população não puder extrair as espécies. A analista ambiental do ICMbio em Jequiá da Praia, Aline Simões, afirma que o Instituto trabalha com gestão participativa como forma de amenizar o impacto.
“Fazemos gestão participativa, incluindo a comunidade e pescadores na discussão sobre os problemas e soluções; trabalhamos com educação ambiental; fiscalização e fomentamos pesquisas junto com a Universidade Federal de Alagoas”, expõe a analista.
Segundo Igor da Mata, estudos mais efetivos precisam ser realizados para que o uso dos recursos naturais seja aplicado de maneira totalmente sustentável no município. A ausência da estatística pesqueira é considerada o “primeiro entrave para a estruturação do setor pesqueiro no país”, e consequentemente em Jequiá da Praia.
“Essa escassez, que significa mais precisamente sobreexplotação e diminuição da abundância de recursos pesqueiros, é observada em todo o mundo, com poucas exceções. O caminho para superar esse problema é obter dados de estatística pesqueira, informações científicas, e medidas de manejo específicas”, sintetiza o engenheiro, ressaltando que a falta dessas informações impedem que a redução de peixes tenha comprovação técnico-científica.
Mesmo que a população local obtenha outras atividades econômicas, a pesca, sendo uma atividade indígena, faz parte da história de Jequiá da Praia, que outrora, fora habitada por índios. Também faz parte da geração presente. Pescar, há tempos deixou de ser apenas uma atividade econômica, promovendo também a sustentação de um povo, em que a redução de uma atividade tão representativa significa também o empobrecimento da cultura e tradição jequiaenses.