Alagoana vence preconceitos e é a primeira mulher da família a cursar doutorado
Desde muito nova, Maria Ranilze mostrava que era dedicada aos estudos
Sonhar e lutar para conquistar seus objetivos é uma missão quase impossível para meninos e meninas que estão na zona rural de seus municípios, onde a falta de incentivo e trabalho desde criança. Muitas vezes atrapalha os sonhos e o talento, que acabam ficando escondidos. Porém, foi a partir dessa realidade de poucas oportunidades que a jovem Maria Ranilze da Silva, de 26 anos, tirou seu combustível e sua fé para encarar a vida de frente. Ela apostou todas as suas cartas nos estudos e em sua religião assegurada por Deus e eles têm a levado a momentos de sucesso.
A estudante Maria Ranilze que está cursando Doutorado em Matemática pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), também já terminou sua graduação de Licenciatura em Matemática e ainda cursou Bacharelado em Matemática. A jovem, de 1,50m de altura, é motivo de orgulho dos dois irmãos, José Ranilton da Silva e José Ranilson da Silva, além dos seus pais José Maria da Silva Filho e Maria José Gomes da Silva.
Desde muito nova, Maria Ranilze continuamente mostrava que era dedicada aos estudos, sobretudo destacava-se seu interesse pelos números. A jovem, bastante tímida e de poucos amigos, sempre estudou em escola pública e todos os dias enfrentava uma caminhada de mais de dez minutos para esperar o ônibus e fazer o transporte para a escola do Assentamento Coqueiro Seco, na Maciape, zona rural de Porto Calvo, na Região Norte de Alagoas.
“Eu era bastante tímida, depois da faculdade meu comportamento e minha timidez quase não existem mais. Sou outra pessoa e, por isso, não tinha muitas amizades quando morava lá no interior, as pessoas também se afastavam de mim achando que não queria ser amiga delas, quase sempre estava só”, comenta.
A jovem disse que seu pai, nas horas vagas, a ensinava matemática. Afirma ainda que foi bastante ruim na 5ª série do ensino fundamental, mas descobriu o gosto pelos números quando um professor na 6ª série deixou várias questões para serem resolvidas e Ranilze conseguiu responder todo o exercício, deixando até de ir para o intervalo lanchar. Na volta, o professor a chamou para resolver as atividades deixadas, inocente, levou o caderno para frente da turma, porém, tinha que responder sem o caderno, foi quando a menina tímida descobriu que tinha talento com os números.
Preconceito
A estudante sempre teve o sonho de ser professora, entretanto, quando começou estudar na Escola Estadual Nossa Senhora da Apresentação (EENSA), em Porto Calvo, não admitia passar “filas, colas, pescas” para os outros companheiros de turma, por esse motivo sofreu com os preconceitos.
Relata que os alunos da sala não tiravam notas boas e ela sempre dedicada parava para estudar os conteúdos de matemática em casa. No momento das avaliações, as notas sempre eram boas, ao contrário dos demais. Por esse motivo, os outros companheiros ficavam com raiva.
“Estudava muito em casa, eu não achava justo passar fila para eles e minha religião não permitia. Sempre fui muito correta. Por essa situação, era motivo de piada na sala. Mas eu chamava eles para fazer a revisão antes das avaliações e ninguém queria. Sempre gostei de ajudar o próximo”, ressalta.
Por exemplo, houve situações em que Ranilze não participou da “Feira de Ciências” que a escola costumava realizar todos os anos por motivos financeiros, achou melhor seu irmão mais novo, Ranilson, participar do evento para não comprometer a renda da família. Quando a professora perguntou quem não tinha participado do evento, a jovem respondeu que não tinha. Os colegas de turma não queriam que a docente deixasse a estudante fazer a prova para que ela ficasse sem nota.
“Eles falavam que era bom que eu ficasse reprovada. Mas isso era algo estranho porque sempre minhas notas eram boas. Mesmo diante dessas situações, eu tentava ajudar. No 3º ano do ensino médio, quando era época de prova em dupla, sempre deixava meu colega passar os conteúdos para as outras pessoas, já para tentar amenizar a situação”, revela Ranilze.
A estudante comenta que, se naquela época já conhecesse a palavra ‘bullying,’ era o que sofria e fala que era muito rejeitada. Disse também que, até nas horas do intervalo, ficava sozinha sem ninguém para conversar, quando todos estavam com seus amigos.
Religião
Ranilze com irmãos, mãe, e as mulheres da igreja (Foto: Arquivo pessoal)
A jovem Maria Ranilze já nasceu em berço evangélico, faz parte da Igreja Adventista do Sétimo Dia, que aos sábados tem algumas restrições. A estudante passou na primeira fase das Olimpíadas de Matemática, mas não pôde fazer a segunda porque justamente caía em um sábado. “Um professor me falou que eu nunca iria vencer na vida, que estava jogando as oportunidades fora. Esse fato foi muito chato, mas também não sei se isso contribuiu para eu chegasse até aqui”, ressalta.
De acordo com a jovem, algumas pessoas, na igreja, não se alegravam muito quando ela aparecia nos cultos. Foram dias e momentos difíceis. Ranilze, ao contar essa passagem a nossa equipe se emocionou e não conteve as lágrimas. “Quando eu voltava para Porto Calvo, não fazia evangelização aos sábados, nem arrecadava alimentos nas ruas ou qualquer atividade da igreja e no domingo me dedicava à minha família. Muitas pessoas na igreja achavam que eu estava 'metida' por não ir aos cultos. Meu pai teve que preparar um discurso em minha defesa ”, explica.
Educação familiar
Ranilze e sua mãe, Maria José (Foto: Arquivo pessoal)
Os pais da estudante Ranilze trabalham na agricultura. No passado, a mãe Maria José Gomes foi professora e seu pai José Maria não concluiu os estudos. Eles moram em um sítio, na zona rural. A educação para o casal sempre foi uma coisa muito importante e, por esse, motivo nunca se preocupou com os três filhos.
“Meus pais sempre acharam eu e meus irmãos muitos maduros, acho que eles confiaram na forma que educaram e não perderam em confiar, nos ensinando o caminho que devemos andar e daí ele nunca nos pressionou pra nada, também não fez exigências, só disse que era pra gente estudar[sic]”, afirma a jovem.
De acordo com Ranilze, os pais nunca pegaram em seu pé para que fizesse “isso ou aquilo” de forma a obrigar. Sempre a deixaram muito livre para tomar suas decisões e seguir seu caminho.
Universidade
Ranilze com os colegas de faculdade (Foto: Arquivo pessoal)
Nos relatos de Ranilze, ela entrou na Universidade – UFAL, em 2009, e no primeiro período já ficou reprovada em uma disciplina, Fundamentos da Matemática, mas estudou e conseguiu até ser monitora. Conta também que diferente dos colegas de turma do ensino médio, de quem sofreu preconceitos, na Ufal não foi nada parecido.
“Parava e pensava: onde eu estou? Já vi que não conheço nada de matemática. Na educação básica, você não vê muita coisa, a deficiência é grande. Perdi uma disciplina que era como uma revisão do ensino médio, que até meus amigos brincam comigo. Entretanto, não tenho vergonha de falar que reprovei, isso serviu de incentivo para eu melhorar”, brinca.
A jovem fala que o relacionamento com os colegas de turma foi bastante diferente em comparação ao ensino médio. A recepção e o acolhimento dos amigos deixou Ranilze tranquila.
“Acho que perceberam que eu estava vindo do interior e me acolheram muito e tudo isso foi muito bom. Minha aula era à tarde, a gente ficava até 18h ou, às vezes, 19h aqui na Ufal. Eu sou muito feliz hoje”, relembra seu relacionamento com os colegas de turma.
Para o professor de matemática Feliciano Vitorio, orientador do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e dissertação do mestrado, e agora do doutorado de Ranilze, a estudante é muito esforçada e dedicada.
Na graduação, ela mostrou um resultado bastante proveitoso e no TCC o professor afirma que ficou contente com o trabalho desenvolvido pela jovem que conseguiu provar a não “Construtibilidade do héptadecágono com régua de compasso”.
“Fiquei muito contente com o trabalho dela, tanto que ficou com média 10. Ranilze é uma aluna muito aplicada e esforçada. Não aceitaria ela no doutorado se eu não tivesse certeza que não iria terminar, confio nela plenamente para que possa concluir o curso, também é muito correta no que faz. Sempre apostei nela e matemática é um ‘treco’ que mexe muito com a gente, se somos capazes ou não. Ela também era insegura, mas conseguiu vencer as barreiras”, relata o professor.
Ranilze apresentando o TCC (Arquivo pessoal)
Elogios
Modéstia no que faz, Maria Ranilze não sabe lidar com elogios, afirma que nunca gostou de ser elogiada, sobretudo em sua frente. Contudo, relata que, às vezes, gerava inveja nas outras pessoas. Disse também que seu ex-professor do ensino médio costumava sempre fazer os elogios na frente dos alunos.
A jovem relata que o professor fez um trabalho em equipe para apresentar na sala de aula, um grupo de acordo com a visão da estudante apresentou e desenvolveu o material e as pesquisas muito bem. No entanto, durante sua vez, o professor ressaltou que seu trabalho deveria ser apresentado em ensino superior de tão bom que ficou, os demais alunos ficaram revoltados.
Segundo o professor de biologia do ensino médio, Clebson Gama, é impossível esquecer a jovem. “Uma aluna sempre muito focada, não gostava de encerrar a aula com qualquer dúvida sobre o assunto abordado, sempre muito seleta em suas amizades e com um jeitinho tímido e um tanto introspectivo, gostava de ajudar aqueles que necessitavam e deste jeito conquistava a todos”, ressalta o professor.
“Não sabia que tinha esse prestígio aqui entre alunos, técnicos e os funcionários. Mas me levaram para uma sala e fizeram uma surpresa pra mim e foi daí que eu descobri que o pessoal me acolheu aqui na universidade. Mas é muita responsabilidade, não posso falhar, sobretudo com meu professor –orientador que é o meu maior incentivador, por causa dele estou aqui”, comenta Ranilze.
A jovem incentiva os demais jovens de interior que, assim como ela, é possível conquistar os desejos profissionais através do estudo.
Ranilze se arrincando a tocar violino (Foto: Arquivo pessoal)