Negros são alvo de metade dos registros de violência contra população LGBT no Brasil
De 2015 a 2017, ocorreram 22 notificações de violências contra a população LGBT por dia
Uma pesquisa inédita analisou as notificações de violência contra a população LGBT brasileira entre 2015 e 2017 e verificou que metade das agressões teve pessoas negras como alvo. Nos três anos analisados, foram registradas 24.564 notificações de violências contra a população LGBT, o que resulta em uma média de mais de 22 notificações de violências interpessoais e autoprovocadas por dia, ou seja, quase uma notificação a cada hora.
Os pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), das secretarias de Atenção Primária em Saúde e de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) coletaram as notificações feitas pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), que faz parte do SUS, e que, portanto, inclui diversos casos de violência que não foram denunciados.
A maior parte dos indivíduos alvo dessas agressões era jovem (69% tinham entre 20 e 59 anos de idade) e metade era negra (50%). Do total, 46% das vítimas eram transexuais ou travestis e 57% eram homossexuais, dos quais 32% lésbicas e 25% gays.
Em todas as faixas etárias, a natureza de violência mais frequente foi a física (75%) e, em 66% dos casos o provável autor é do sexo masculino. O principal vínculo das vítimas com o agressor é o de parceiro íntimo (27%), seguido do de desconhecido (16%).
Contexto de preconceitos
Para o coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a pesquisa mostra como a violência contra a população negra LGBTQI+ é agravada por questões de gênero, classe e raça. “Certamente considerar também indicadores sobre a renda e o tipo de habitação das vítimas de violência evidenciaria um quadro ainda mais dramático para a população negra LGBTQI+”, avalia Cleber Santos.
O professor Delton Aparecido Felipe, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), afirma que a pesquisa ilustra como ocorre o acúmulo de marcadores sociais geradores de preconceito.
“Historicamente tanto a população negra como a população LGBTQI+ foram marginalizados e vivem uma situação de insegurança social. Quando esses marcadores sociais de raça, gênero e sexualidade incidem sobre o mesmo corpo, ocorre o que a pesquisa demonstra”, explica Aparecido.
“Mulheres e homens trans negros e negras, mulheres lesbianas negras, homens negros gays, entre outros sujeitos da comunidade LGBTQI+, estão mais vulneráveis por terem menor proteção do Estado”, afirma o coordenador o Consórcio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros na Região Sul.
Para os dois estudiosos, reconhecer a intersecção entre esses diversos processos de violência e opressão é essencial para combatê-los.
“O movimento das bixas pretas, como denomina Linn da Quebrada, tem demostrado que a luta contra o racismo que não leva em consideração as violências a partir da sexualidade e identidade de gênero faz com que as pessoas negras que estão nesses grupos continuem marginalizadas”, afirma Delton Aparecido.
“É fundamental chamar atenção para uma aprendizagem que o movimento negro teve de que não se combate racismo sem lutar contra homofobia, machismo, sexismo e intolerância religiosa. Afinal, nós negros e negras não somos uma massa amórfica”, completa.
Entre 2015 e 2017 foram registradas 24.564 notificações de violências contra a população LGBT no país. — Foto: Wagner Magalhães/G1
Importância da notificação
Segundo os autores do estudo, o trabalho “reforça a importância da notificação compulsória e a necessidade de preenchimento adequado dos campos sobre orientação sexual e identidade de gênero” por parte de médicos e outros profissionais de saúde. Isto porque esses dados produzem evidências menos subnotificadas do que os dados de delegacias, que muitas vezes não são procuradas pelas vítimas de violência.
O estudo destaca que uma de suas limitações é contar apenas com os dados das violências atendidas e notificadas nos serviços de saúde. “Portanto, presume-se que há subnotificação dos casos e que os dados apresentados não revelam a prevalência de violência vivenciada pela população LGBT”, afirmam os autores. Apesar disso, o número é considerado mais abrangente do que os dados coletados em delegacias ou em denúncias por telefone.
De acordo com os dados do Disque 100, serviço que recebe, analisa e encaminha denúncias de violações de direitos humanos, entre 2011 e 2017 foram registradas 22.899 violações cometidas a população LGBT no Brasil. No entanto, esses dados referem-se apenas às violações reportadas por meio de denúncia telefônica.
Apesar de mais completos, os dados do SUS publicados no novo estudo mostraram elevados percentuais de não preenchimento nos campos orientação sexual e identidade de gênero das notificações. Para os autores, essa lacuna “pode ser consequência de preconceitos e dificuldades de abordagem dessas questões por profissionais de saúde”.
“É recorrente o relato de práticas discriminatórias nos estabelecimentos, o que impacta de forma negativa o acesso da população LGBT aos serviços de saúde, especialmente das pessoas travestis e transgêneras”, afirmam os pesquisadores.