Debate defende leis mais rígidas e mudança cultural para combater “cultura do estupro”
Assunto voltou ao centro das discussões com o caso da menina de 10 anos no ES
A abertura de mais canais de denúncias, investimentos em um atendimento especializado em todas as esferas e leis penais mais rígidas para os agressores foram alguns dos pontos citados pela promotora de Justiça Gabriela Mansur, do Ministério Público de São Paulo, como essenciais para o enfrentamento à violência sexual contra meninas e mulheres e a cultura do estupro.
Ela foi uma das convidadas do programa Conversa Aberta, transmitido no canal do YouTube da deputada estadual Jó Pereira, na noite dessa segunda-feira (31), com o tema “estupro e culpabilização da vítima”. O assunto voltou ao centro das discussões recentemente, com o caso da menina de dez anos que foi exposta e atacada ao fazer um aborto legal, após ser estuprada durante quatro anos pelo tio. O debate contou com a participação também da professora da Ufal, Elaine Pimentel.
“As vítimas que denunciam, que pedem ajuda, acabam muitas vezes prisioneiras da própria denúncia, como se elas fossem as agressoras. Quem tem que ter liberdade é a vítima, não o criminoso. Temos que investir em leis penais mais rígidas para esses agressores. Eles que têm que sair de circulação, serem presos preventivamente até que haja julgamento... Não se pode tirar uma menina da sua rotina por ser vítima de estupro. Quem tem que pagar é o agressor”, frisou Gabriela Mansur.
Sobre a necessidade de investimentos em um atendimento especializado, a promotora de Justiça destacou que é preciso poupar as meninas e mulheres do que ela chamou de “revitimização”: “É necessário que essas vítimas não precisem repetir a mesma história, bastando um depoimento para que todos os envolvidos na investigação se valham desse relato como prova especial, porque cada vez que a mulher, que a criança relata o abuso, o estupro, ela sofre de novo, é uma tortura mental que deve ser evitada”.
A promotora de Justiça chamou a atenção ainda para o fato de, embora tenha uma das melhores legislações em defesa dos direitos das mulheres (a Lei Maria da Penha é considerada a terceira mais importante do mundo), o Brasil é o quinto país com maior índice de mortes violentas de mulheres, sendo necessário diminuir o gargalo entre melhor lei e país mais violento.
Ela também relatou os tipos de violência sexual previstos na legislação brasileira, entre eles o estupro e a importunação sexual, e disse que o maior índice de estupros no país tem como vítimas menores de 14 anos, ocorrem dentro das residências e são praticados por pessoas do círculo familiar da menina. “Precisamos de leis rígidas, com caráter pedagógico e intimidatório, penas altas, prisão preventiva, ressocialização, rigor na progressão de regimes, pagamento de multas e todo o mais rigorismo penal”, reforçou a promotora, lembrando a necessidade de, paralelamente, combater o julgamento das vítimas: “Quem merece ser julgado é o abusador, com penas altas, porque essa violência causa traumas às vezes insuperáveis e rouba sonhos”.
Cultura do estupro
Traçando um panorama das mudanças no Código Penal desde 1940, quando crimes sexuais eram classificados de “crimes contra os costumes”, até os avanços atuais, a professora Elaine Pimentel disse que a trajetória foi longa até chegarmos ao reconhecimento da vítima como detentora de sua própria liberdade e dignidade sexual.
“Essa expressão ‘cultura do estupro’ não é nova, mas ganhou repercussão maior por volta de 2016, a partir de um caso absurdo de estupro coletivo em uma favela carioca, quando a vítima teve sua imagem veiculada pelos próprios agressores, mas a tendência de compor um julgamento moral da vítima, para encontrar nela as motivações da violência praticada, é recorrente”, analisou.
A professora citou a existência de estudos acadêmicos que analisam decisões judiciais sobre crimes contra a dignidade sexual, evidenciando movimentos de construção da ideia da “vítima colaboradora”, e movimentos investigativos para saber ‘até que ponto a vítima colaborou para o crime’, a depender de onde estava, em qual horário ou com que roupa, por exemplo.
“É muito difícil romper o silêncio e buscar ajuda. Não bastasse a violência em si, a vítima muitas vezes precisa buscar credibilidade de sua narrativa junto à própria família e a justiça. Precisamos preparar o sistema, com a intervenção de equipes multiprofissionais, criar uma relação de confiança para deixar as narrativas virem à tona, até que se chegue a dimensão policial do acolhimento, que precisa ter todo um preparo”, pontuou.
Reforçando as trincheiras
Contribuindo para o debate, Jó Pereira destacou que a culpabilização da vítima está diretamente ligada ao poder que o homem pretende exercer sobre a mulher, fruto de uma cultura extremamente machista. A parlamentar voltou a defender a necessidade de que cada vez mais mulheres ocupem espaços de liderança, sendo espelho para outras mulheres e reforçando as trincheiras em defesa dessas mulheres.
Destacando a urgência de que uma mudança cultural ocorra, Jó reforçou ainda a necessidade de unificar a oitiva das vítimas, para que elas não tenham que repetir o relato da violência em vários ambientes, e demonstrou preocupação com o fato de que 28% das crianças nascidas vivas em Alagoas serem filhas de mães menores de 19 anos (consideradas adolescentes pela OMS), das quais mais de 5% deste total são menores de 14 anos: “É muito alto esse índice e muitas dessas crianças podem ser fruto de violência dentro do ambiente doméstico”.
“É importante estarmos juntas nessa luta. Só assim conseguiremos vencer e ter resultados positivos. Nós, mulheres, podemos estar onde quisermos, usar o que quisermos. Os homens é que não podem nos importunar ou atentar contra nossa liberdade”, afirmou a deputada, agradecendo a participação das convidadas no programa. “Mulheres que nos inspiram, que estão à frente da luta contra a violência e em defesa de outras mulheres”, finalizou.
Sobre as convidadas
Gabriela Mansur é hoje uma das principais vozes no país em defesa dos direitos das mulheres. Mestranda em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie e especialista em Violência Doméstica pela Universitá di Roma, na Itália, a promotora é uma das idealizadoras e presidente do Instituto Justiça de Saia, dedicado à promoção e defesa dos direitos das mulheres, à prevenção e ao enfrentamento da violência contra as mulheres e ao empoderamento feminino.
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco, Elaine Pimentel é professora adjunta do curso de graduação e mestrado em Direito da Ufal. Tem experiência em pesquisas de extensão nas áreas Direito e Sociologia, com ênfase em Criminologia, atuando principalmente nos temas feminismo, gênero e segurança pública. É líder dos grupos de pesquisa Carmim Feminismo Jurídico e do Núcleo de Estudos e Políticas Penitenciárias (NEPP), além de outros. É também diretora da Faculdade de Direito da Ufal e voluntária na ONG Centro de Defesa dos Direitos da Mulher (CDDM).