Especialistas do Hospital da Mulher explicam relação da Covid-19 com os rins
Lesão renal aguda é uma das complicações que atinge pacientes do novo coronavírus
Conforme a pandemia do novo coronavírus foi avançando, novos sintomas entraram no radar das equipes de saúde. De início, os mais comuns eram febre, coriza, tosse e falta de ar, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). O tempo foi passando e a lista se estendendo, com relatos de pacientes que apresentavam diarreia, vômitos, perda do olfato e do paladar, dores de garganta e cabeça. Ao redor do mundo, estudos e relatos médicos apontavam complicações relacionadas à Covid-19, como Acidentes Vasculares Cerebrais (AVCs), doenças cardíacas, urinárias e, sobretudo, a lesão renal aguda, que é uma diminuição rápida da capacidade dos rins em filtrar os resíduos metabólicos do sangue.
De acordo com Luiz Guilherme de Almeida, nefrologista e coordenador do Centro de Terapia Intensiva (CTI) Covid-19 do Hospital da Mulher Dr.ª Nise da Silveira (HM), os rins são órgãos complexos, de enorme importância e diversas funções, sendo responsáveis pela eliminação de resíduos tóxicos produzidos pelo organismo humano, como a ureia e o ácido úrico, além de outras toxinas.
“Os rins têm a função de filtração, de limpeza ou de depuração. Eles controlam o volume dos líquidos, portanto, qualquer excesso de água no corpo é eliminado pela urina; é o chamado efeito diurético. Os rins também exercem controle sobre os sais de nosso corpo, eliminando os seus excessos ou poupando-os nas situações de carência. A partir do controle do volume (líquidos) e dos sais, eles exercem grande influência sobre a pressão arterial e venosa do nosso organismo. Eles produzem e secretam hormônios, como a eritropoetina (que ajuda na produção do sangue), a vitamina D (que atua na absorção do cálcio) e a renina (que controla a pressão arterial)”, explica.
O especialista do HM destaca que a lesão renal aguda pode desencadear em três causas: a pré-renal, a renal e a pós-renal. O paciente que dá entrada num leito de unidade semi-intensiva ou de unidade de terapia intensiva (UTI) acaba desidratando excessivamente, seja por febre, seja pelo procedimento de ventilação mecânica.
“O fluxo de sangue chega mais debilmente aos rins, lesando a estrutura renal. A ventilação mecânica aplicada na Covid-19, com altas pressões internas, diminuiu o retorno venoso. É como se o pulmão, de tão inflado, reduzisse sua eficácia da drenagem das veias e das artérias em irrigar e drenar o sangue para os rins. Esse aumento da pressão pulmonar diminui a pressão cardíaca. Portanto, o coração precisa estar bem e, com a força adequada para vencer mais essa agressão e bombear o sangue para os rins e outros órgãos. O tratamento da Covid-19 lesa o músculo cardíaco, o que acaba causando danos aos rins, por falta de eficácia dessa bomba, muitas vezes, irreversível”, esclarece.
Ele evidencia ainda que, na agressão pré-renal, o novo coronavírus pode levar a um acometimento direto no músculo cardíaco, a miocardite, que causa inflamação do tecido muscular do coração (miocárdio), trazendo a morte do tecido. “Com o coração não trabalhando direito, o fluxo sanguíneo não chega eficazmente aos rins e, por conseguinte, a filtração glomerular cai. Como se não bastasse, os fatores inflamatórios fazem paralisar as estruturas moleculares dos rins, como acontece em qualquer sepse. É como se eles entrassem em hibernação”, detalha o nefrologista do HM.
Segundo Luiz Guilherme Almeida, os pacientes com problemas renais crônicos têm menor gravidade, caso contraiama Covid-19. “Caiu por terra o que pensávamos logo no início da pandemia que eles seriam os mais acometidos pelo novo coronavírus. O que os especialistas suspeitam é que eles tenham menor gravidade em virtude de receberem anticoagulantes durante a diálise e a atenção médica trissemanal”, diz.
Em relação à fase pós-renal, o nefrologista explica que o paciente acamado pode ter uma obstrução no trato urinário, pois muitos deles precisam de sonda, o que pode ocasionar numa infecção urinária. É necessário um cuidado maior neste caso. O coordenador do CTI Covid-19 do HM afirma que, desde o início da pandemia, os nefrologistas consideraram os doentes renais crônicos como grupo de risco de contágio, visto que são pacientes que comparecem três vezes na semana num hospital ou numa clínica satélite para submeterem ao processo de diálise.“São pacientes que fazem a diálise em unidades hospitalares, que são ambientes com grande probabilidade decontaminação por exposição, devido às diversas bactérias e vírus presentes nesses locais. Muitas vezes, os impactos podem ser irreversíveis, por isso o cuidado deve ser redobrado. Então, apenas por isso, já basta considerá-los como grupo de risco de contágio do novo coronavírus, porque esses indivíduos são os mais expostos ao ambiente de um hospital quase que diariamente”, garante o médico do HM.
Luiz Guilherme Almeida acrescenta que a principal causa etiológica da doença renal crônica é a diabetes, seguida da hipertensão arterial. Já em países subdesenvolvidos, o índice é alto em pacientes acometidos pela glomerulonefrite, que é uma inflamação do glomérulo, unidade funcional do rim formada por um emaranhado de capilares, onde ocorre a filtragem do sangue e a formação da urina.No que diz respeito aos cuidados do paciente com doença renal crônica, que já está em diálise e contraiu o novo coronavírus, o nefrologista esclarece que eles devem seguir o protocolo estabelecido pela Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN). “A SBN foi bem pontual e eficaz logo no início da pandemia. Os hospitais e as clínicas estão separando os pacientes com Covid-19 em ambientes específicos para fazer a diálise. É interessante, pois, nesses locais, há anos já temos o isolamento de pacientes que contraíram a hepatite B, num setor chamado de ‘sala amarela’”, conta, ao frisar que, mesmo infectado pelo novo coronavírus, o paciente com doença renal crônica não precisa suspender o tratamento, já que a hemodiálise é o que mantém os pacientes com qualidade de vida.Tratamento nos leitos – Segundo Luiz Guilherme Almeida, os pacientes com lesão renal aguda - suspeitos ou testados positivos para o novo coronavírus -, assim que dão entrada num dos leitos do HM, são avaliados pela equipe de nefrologia do hospital, que é responsável pela avaliação da necessidade ou não da hemodiálise.
“Muitas vezes, graças à expertise do nefrologista que avalia o paciente, é possível evitar que a lesão aguda progrida para estágios terminais, com necessidade de diálise. Por isso, é importante o médico assistencial, assim que identificar algum sinal de lesão aguda, ele converse com o nefrologista, para que ele ajude a fazer uma filtragem na própria prescrição, a tirar drogas nefrotóxicas e avaliar a hidratação ou hiper-hidratação dos pacientes, fatores estes que podem lesionar os rins. Grande parte destes danos renais agudos evolui sem necessidade de diálise. No caso dos pacientes que evoluem com necessidade de diálise, eles são transferidos da unidade semi-intensiva para a UTI, onde ficam nossos pontos de hemodiálise, dedicados aqueles pacientes com quadros agudos”, conta.
Após alta hospitalar – Luiz Guilherme Almeida diz que, após a alta hospitalar do paciente com doença renal crônica, o nefrologista prepara um relatório detalhado sobre o tratamento que o doente recebeu durante os dias em que esteveinternado. “Eles são devolvidos às suas clínicas originas para dar continuidade ao tratamento. O relatório emitido pelo médico do HM facilita a equipe de nefrologia da clínica de diálise em manter ou adequar o tratamento. Já os pacientes com lesão renal aguda, que tiveram a necessidade de diálise e que não reverteram, também são encaminhados para as clínicas de diálise da nossa referência. No entanto, muita coisa do ponto de vista do tratamento crônico vai ser de responsabilidade da equipe de nefrologia que vai tratá-lo. Os pacientes que receberam alta hospitalar e não tiveram necessidade de diálise, estes também precisam de acompanhamento com o nefrologista. O tratamento pode ser realizado em um consultório, não necessariamente em uma clínica de diálise”, explica Luiz Guilherme de Almeida.
O olhar da infectologia – De acordo com infectologista e gerente médica do HM, Sarah Dominique Dellabianca, a lesão renal aguda prejudica o sistema imunológico, pois instabiliza o organismo como um todo. Na observação da profissional, a paralisia dos rins é algo muito temido na terapia intensiva e, do ponto de vista da infectologia, ela impacta numa maior mortalidade para qualquer infecção que o paciente possa vir a desenvolver.
“Além da Covid-19, o paciente com lesão renal aguda está sujeito a contrair uma infecção hospitalar associada ao cateter e a ventilação mecânica. O manejo clínico desse paciente é muito mais intensivo e rígido. Como os rins não estão funcionando direito, consequentemente a urina do paciente não está num nível adequado. Logo, as substâncias nocivas para o organismo estão sobrecarregadas no sangue, lesionando outros tecidos e órgãos, o que pode causar sangramentos. Caso o paciente desenvolva a uremia, que é o acúmulo de ureia, ele pode ter um sangramento no trato intestinal, que favorece a translocação de bactérias em seu organismo”, salienta.