Comportamento

Especial

Por Marcos Filipe Sousa 29/10/2022 07h07 - Atualizado em 29/10/2022 11h11
Especial
Arte - Foto: 7Segundos

Tio, o senhor quer ser meu pai? Quando volto para casa? Eu posso ficar aqui? Essas são frases ouvidas quase diariamente pela equipe que trabalha na Casa de Acolhimento Institucional Rubens Colaço, no bairro da Pintanguinha, em Maceió. As respostas para esses questionamentos dos pequenos surgem após um longo caminho de conquista, acolhimento e aprendizado, cujo objetivo final é reinserir a criança em um ambiente familiar e social.

No primeiro semestre deste ano, Alagoas registrou no Disque 100, serviço de Denúncia de violação de Direitos Humanos do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, cerca de 1.443 denúncias de crimes contra menores. Somente na primeira infância, período que vai do recém-nascido até os 10 anos de idade, foram mais de 540.

Os casos são encaminhados para os Conselhos Tutelares, Poder Judiciário e Ministério Público do Estado (MPE). Dando-lhes suporte, ainda existe a Rede Infância que na capital conta com 53 unidades; formadas por postos de saúde, órgãos da segurança pública, assistência social e educação, que auxiliam nesse processo de acolhimento até a nova vida que o menor terá.

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Atualmente na Casa Rubens Colaço, existem 16 crianças na faixa etária de zero a 11 anos de idade. Cada uma delas com histórias diferentes e acolhidas de forma particular pelos 35 funcionários que trabalham no local. Os “tios” e “tias”, como são chamados pelos menores.

Romerito Oliveira é um dos psicólogos que atuam na Casa. Além dele, existem outro profissional da Psicologia, três assistentes sociais e uma pedagoga.

Quando questionado sobre o estado emocional que as crianças chegam ao abrigo, ele é direto: “Carregam muita tristeza em seus corações”.

O profissional explicou que os menores vêm de diversos tipos de ambientes. “Eles crescem em lares promíscuos, sem higiene e violentos. Também chegam desagregados emocionalmente, por se tratar da única realidade que conhecem. Observamos que não eram acolhidos em seu ambiente familiar”.

“É só carinho que eles precisam. Nosso papel é filtrar as reais necessidades de cada um e diminuir seus sofrimentos”, completou.

Tio, quer ser meu pai?


Romerito relatou uma experiência vivida na Casa. Contou que quatro irmãos foram encaminhados para o local e o mais velho era o que tinha mais resistência para se relacionar com outras pessoas.

“Nós temos, aqui na unidade, um projeto chamado Passos Terapêuticos. São passeios, onde as crianças conhecem a praia, cinema, shopping, levamos até para tomar sorvete aqui perto. Elas saem do abrigo e tem uma outra visão de mundo, já que alguns se sentem aprisionados”, relatou.

Durante essas saídas, o psicólogo foi conversando com o menino e entendendo seu mundo, iniciando uma amizade. Durante um desses passeios, o menor disse: “Tio, queria que o senhor fosse meu pai”.

“Uma criança quando diz isso, é porque criou uma expectativa de futuro e me aceitou, criando novos laços afetivos após experiências de sofrimento”.

Crislane Sá (pedagoga), Romerito (psicólogo) e Rafaela (assistente social) foram a equipe da Casa| Foto: Marcos Filipe Sousa


Família em primeiro lugar

Aproximadamente 90% das crianças que chegam à Casa nem existem para a sociedade, pois nem registro de nascimento possuem. Esse número foi apresentado pela assistente social Rafaela Monteiro.

“Além do problema com documentos, há casos de algumas que estão fora do ambiente escolar. Então, temos que primeiramente resolver essas questões para que o menor se faça sujeito, parte de uma sociedade”, colocou.

Rafaela explicou que a adoção é a última alternativa quando o assunto é reinserir a criança em um ambiente familiar. “Temos um extenso olhar sobre a família e analisamos o que causou a vulnerabilidade naquele lar. A partir daí analisamos o que eles precisam, se querem ser ajudados e qual a visão que têm da criança”.

Ela explica que existem famílias que precisam ser cuidadas e o filho é uma consequência do ambiente vulnerável. “Precisam de um norte e compreender que aquela realidade, muitas vezes de abuso, violência, drogas, pode ser mudada”.

Por isso, a assistente social reforça a importância de uma rede de serviços que funcione. Enquanto a equipe da Casa cuida da criança, outros profissionais, do lado de fora, acompanham a reestruturação da família. “É gratificante quando esse vínculo é restaurado, e vemos evolução de ambos os lados”.

Espaço na Casa de Acolhimento Institucional Rubens Colaço (Foto: Vanessa Napoleão - Ascom Semas)


Um novo lar, uma nova vida

E quando a equipe multidisciplinar, junto com o Judiciário e MPE, não constata uma mudança no lar original da criança? Começa um novo processo, a adoção. Tão delicado quanto o do retorno à família nuclear.

Para entender o processo, Romerito Oliveira, relatou uma situação vivida no abrigo, onde diariamente um menino chorava e dizia: “Tio, me coloque no ônibus da Chã de Jaqueira, eu sei chegar em casa”.

O psicólogo explicou que naquele momento não era possível realizar o seu desejo. “Iniciamos as visitas a sua casa e verificamos um ambiente hostil. Iniciou o processo de acompanhamento, mas não era observada nenhuma evolução. E após dois anos, entregamos o relatório ao Juizado detalhando nossas observações e iniciou-se o processo de procura de uma família substituta”.

Começaram então as conversas com o menino e em paralelo os passeios com os candidatos à adoção. “Foi apresentado um mundo diferente do que ele tinha, então, o garoto começou a vislumbrar um futuro e que precisava avançar”.

Então, o menor após um passeio com os pais candidatos, voltou-se a Romerito e disse: “Tio, eu não quero voltar para a minha família. Eles me esqueceram. Tenho agora outros que gostam de mim”.

O psicólogo explicou que o menor viu naquelas pessoas um “grande futuro”.

Rafaela Monteiro, a assistente social da Casa, reforçou que os profissionais mergulham no mundo do menor. “Perguntamos para eles qual a função dos pais. Ouvimos desde que o pai é aquele que bate ou que a mãe é aquela que traz os namorados para casa”.

A equipe multidisciplinar inicia uma conversa explicando que os pais são aqueles que protegem, cuidam e amam. Realizando um trabalho de associação de valores com seus futuros lares. “Uma das crianças após passar os finais de semana com a família candidata, chegou até nós e perguntou se poderia chamar o tio de pai. Ele associou os cuidados que estava tendo com a figura paterna”.

A assistente social explicou que dentro da Casa de Acolhimento, as crianças aprendem suas responsabilidades e deveres que servirão para sua vida fora do abrigo. “Não romantizamos nada. Aqui elas começam a ter um senso de partilha, coletividade e responsabilidade”

Fiscalização no processo dentro da Rede da Infância


Durante o processo da denúncia até o acolhimento e reinserção da criança na família ou em um novo lar, o Ministério Público do Estado (MPE) acompanha cada etapa.

Promotor Gustavo Arns falou sobre o acompanhamento com os menores (Foto: Assessoria)


O promotor de Justiça, Gustavo Arns, explicou que as 13ª e 44ª Promotorias de Justiça acompanham quaisquer casos em que crianças e adolescentes se encontrem em risco, nos termos do art. 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que trata de direitos ameaçados ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; ou em razão de sua conduta.

“As situações geralmente chegam através do Conselho Tutelar, mas podem também, pela rede de proteção composta por Assistência Social, escolas, hospitais, Segurança Pública, bem como por comunicação de parentes ou pessoa próximas à criança ou adolescente. E os principais casos que chegam são negligência, abandono, maus-tratos e abuso sexual”, colocou.

Outra etapa do acompanhamento é quando o menor já está em uma casa de acolhimento. “O Ministério Público realiza duas inspeções anuais nas instituições, bem como, outras duas vezes no ano, participa de audiências nas sedes dos próprios abrigos, sempre ouvindo as crianças e adolescentes quando possível. O que não exclui visitas extraordinárias e audiências realizadas na Vara”.

Após a resolução do caso, o MPE ainda monitora o menor nesse processo de uma nova vida, seja o retorno ao lar primário ou a adoção.

“A reinserção familiar ou colocação em família substituta é acompanhada tanto pelo Ministério Público, como pela Vara da Infância e Juventude e sua equipe multidisciplinar, pela equipe técnica do abrigo e pela rede de assistência social”.

O promotor acredita que o microssistema jurídico brasileiro de proteção à criança e ao adolescente é bem robusto, sendo considerado um dos melhores do mundo. Desde o ECA até a Lei Henry Borel.

Arns acredita no investimento em políticas públicas para aumentar a rede de proteção e acolhida. “Diversos problemas impactam na dificuldade da proteção da criança e adolescente, desde a baixa qualidade da educação, passando pela ausência de vagas em creches, pouca conscientização sobre a violência sexual, sucateamento da assistência social, inobservância da criança e adolescente como prioridade absoluta no orçamento público, dentre outros”.

A promotora Dalva Tenório, titular da 59° promotoria que trata de crimes contra vulneráveis, também recebe casos envolvendo menores e tem uma análise parecida, como a do seu colega promotor. sobre as leis que amparam os menores.

Promotora Dalva Tenório falou sobre a importância de políticas públicas de amparo ao menor (Foto: Assessoria)


“Acredito que a legislação que temos é suficiente. O problema são as políticas públicas que não alcançam quem deveria”, disse.

E falou sobre a importância de profissionais capacitados nesse processo. “Os políticos não colocam pessoas com bagagem técnica em locais chaves, e isso faz com que não haja um trabalho efetivo e competente. Então nós, temos uma legislação completa, o que precisamos é melhorar as políticas públicas e as pessoas que trabalham com ela”.