Quem nos protege da polícia?
Ministério Público acompanha congestionamento de denúncias na Corregedoria da PM
Aos 25 anos, Gabriel* consegue se lembrar de pelo menos três momentos em que foi agredido ou humilhado pela Polícia Militar. Jovem e preto, o estudante diz que os “baculejos” são comuns, mas conta que quando apanhou da polícia pela primeira vez, aos 22, nem considerou a possibilidade de denunciar.
Em 2019, Gabriel estava ao lado de um amigo no mirante do Jacintinho, quando três militares da Rotam (Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas) encontraram uma quantidade de maconha com eles, durante a revista. De acordo com o relato do jovem, os policiais ameaçaram prender seu amigo, mas a quantidade de droga encontrada caracterizava apenas uso.
Então, os militares agrediram os jovens com tapas e “apreenderam” dinheiro, joias e até o carregador do celular de um deles.
“Meu amigo estava com R$ 100, que usaria para pagar a faculdade. Pegaram a touca que estava usando na cabeça para guardar o que tinham roubado da gente. Eu perguntei ‘você vai levar minha touca também?’ Ele ficou put*, perguntou se estava achando pouco. Ele me puxou pela gola e me forçou a falar que a culpa das crianças morrerem na favela era minha. Ainda me fizeram decidir se eu queria ter minha mochila atirada pelo mirante ou o pneu da bicicleta furado”.
O jovem conta que pediu para que eles apenas jogassem a bolsa, e os militares ainda o fizeram descer pela mata para buscá-la. Quando Gabriel retornou ao mirante, encontrou também o pneu da bicicleta furado.
“Eles nos obrigaram a gravar um vídeo dizendo que não sofremos nenhuma agressão. Não pensei em fazer nada, não tinha muito que fazer, para falar a verdade. Eu não tinha como identificar eles e, mesmo que tivesse, não ia dar em nada. Eu pensei bola pra frente, faz parte. Eu não considerei essa possibilidade”.
A violência sofrida por Gabriel não se soma às estatísticas, que nem são tão contabilizadas assim em Alagoas. A Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP) divulga o número de mortes de policiais em serviço, mas não fornece dados sobre violência ou mortes provocadas por eles.
Dados do Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos (MDH) mostram que o Disque 100 registrou 11 denúncias de integridade (física, patrimonial, psíquica) contra policiais civis e militares. No entanto, a Comissão de Direitos Humanos da OAB/AL é quem tem feito a coleta mais constante ao longo dos últimos quatro anos, mas, ainda assim, o controle é feito por meio de denúncias que a própria Ordem recebe e do que é noticiado na mídia.
Até o momento, foram 27 casos de violência policial no estado em 2022, a maioria envolvendo homens negros. Para o sociólogo, Carlos Martins, não há dúvidas de que os dados estão subnotificados.
“As pessoas não denunciam porque têm medo de sofrer represália. Em 2012, houve um episódio de invasão da polícia na minha casa. Eu fui à imprensa, fiz a denúncia e o governador teve que pedir desculpas em público. Como eu estava nos jornais, me tornei uma pessoa conhecida e me paravam na rua para me contar que tinham sofrido a mesma coisa, mas não denunciaram por medo”.
Casos de invasão de residências “por engano” não ficaram no passado. A própria OAB Alagoas acompanhou a denúncia de um casal, morador do bairro de Jacarecica, em Maceió, que passou por isso no mês de agosto. Além de invadirem a casa à procura de uma suposta arma de fogo que, na verdade, não existia, o casal foi espancado.
Segundo a denúncia, a mulher foi amarrada e o homem algemado durante as agressões. Quando os militares perceberam que não havia arma de fogo, tiraram uma foto da filha deles e ameaçaram matar todos, caso fosse feito algum tipo de denúncia.
Além de colher dados, a OAB/AL desenvolve um trabalho de acompanhamento de cada caso, cobrando para que os órgãos competentes cumpram a função de investigar. A Ordem também oferece assistência psicológica às vítimas.
“A gente também as acompanha durante oitivas junto à delegacia ou à Corregedoria. Elas não querem ir sozinhas, têm medo. Em diversos casos, as pessoas desistem. A gente faz esse acompanhamento para fortalecer a pessoa, para que ela não desista de ir até o final”, explica a vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Mayara Heloise Cavalcanti.
Dentro de casa, na rua e na universidade
Gabriel conta que estava com uma ficante em um lugar mais reservado da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), quando foi surpreendido com uma abordagem da Polícia Militar. “Eu fiquei de cara porque a PM não entra na UFAL, ou não deveria. Estávamos conversando, de boa. Eu pensei que não aconteceria nada. Pensei errado”.
Além de revistarem a mochila do estudante, ele conta que os militares questionaram à jovem que o acompanhava, uma garota branca, se os pais dela sabiam que ela estava andando com um drogado.
“Eles me chamavam de maconheiro, vagabundo e diziam pra ela que eu era má influência. A gente só ficava, não éramos tão próximos. Foi bem humilhante, nos dois ficamos constrangidos. Revistaram a minha bolsa até achar um único papel de seda, aí ameaçaram me bater e jogaram todo material da bolsa no chão, para que eu catasse”.
O sociólogo Carlos Martins fez uma pesquisa sobre o tema, no ano de 2012, com um Batalhão de Polícia Militar que atua na capital alagoana. Ele constatou que parte dos policiais militares, mesmo os com alto nível de escolaridade, não sabiam a diferença entre força e violência. De acordo com ele, ao invés de treinamento, gerenciamento e atendimento à população, eles recebem formação de guerra.
“E dentro desse cenário de guerra, o inimigo que circula o imaginário coletivo dos policiais é o jovem negro, morador da periferia, que anda de um jeito, fala de um jeito, se veste de um jeito. O racismo é quando você elege elementos culturais como negativos e, quando a polícia faz isso, ela institucionaliza o racismo, porque se trata do Estado”.
Ainda segundo o sociólogo, o apoio por parte da sociedade também contribui para a ação violenta da polícia. “Os jovens negros sabem que são alvos. Os sujeitos estigmatizados estabelecem estratégias de sobrevivência. Mas o racismo é tão estruturado na cabeça dos policiais que, quando eles veem um jovem sinalizando que não é um infrator, entendem como uma ação suspeita”.
Apesar de saber do perigo, Gabriel conta que não esperava que acontecesse com ele. “Quando aconteceu de uma forma mais bruta, eu pensei ‘pode crê, os caras não estão pra jogo’”.
“Eu escuto uma sirene e penso porr*, tenho que andar direito para não parecer suspeito. Preciso dar um passo reto sem parecer qualquer coisa, pra não dar abertura”.
Brasil Colônia e a violência institucional
E quando se denuncia?
No início do ano, quando casos graves de violência policial ganharam as manchetes, o Ministério Público do Estado de Alagoas (MP/AL) divulgou que existiam 500 investigações instauradas na Corregedoria da Polícia Militar para apurar as denúncias de desvios de conduta de policiais, e outras 500 denúncias aguardando abertura oficial das investigações.
Através da Promotoria de Justiça do Controle Externo da Atividade Policial e Tutela da Segurança Pública, o MP acompanha a situação.
“Estamos buscando uma solução para que a Corregedoria possa desempenhar melhor seu papel, porque de fato não tem recursos humanos suficientes. Mas não é normal que uma corporação com 8.500 homens, tenha demanda de mais de mil procedimentos. Mais que 10%. É preocupante. Alguma coisa está errada na forma que o trabalho é conduzido”, afirma o promotor Magno Alexandre Moura.
Quando o MP recebe uma denúncia, faz um documento contendo possíveis provas e o rol de testemunhas. A partir disso, encaminha para Corregedoria, que abre procedimento administrativo; pode instaurar um procedimento próprio e, dependendo do caso, determina abertura de inquérito na Polícia Civil.
“Pode existir desdobramentos no âmbito judicial. Em casos como lesão corporal provocada por policial, o MP poderá determinar abertura de inquérito policial para apurar a responsabilidade do autor do fato. No desdobramento das investigações, se o promotor entender, pode apresentar a denúncia à Justiça”.
O promotor Magno Alexandre Moura condena a ideia de que o Ministério Público “protege bandido”. Para ele, trata-se de uma falácia “de quem quer pôr panos quentes para não enxergar a realidade de que, muitas vezes, a atuação policial anda em descompasso com a lei”.
Magno Alexandre Moura ressalta que ações do MP também têm intuito de proteger o próprio policial, como é o caso do procedimento instaurado para acompanhar a implantação das câmeras nas fardas da Polícia Militar de Alagoas.
O processo deve avançar com o fim da eleição para governador de Alagoas. De acordo com ele, a SSP já é favorável à implantação. Questionada pelo 7Segundos, a assessoria de imprensa informou apenas que “a questão está sob estudo”.
“O policial militar terá como provar que atua dentro do protocolo correto, tanto nas abordagens, como nas intervenções. Pode esclarecer ao cidadão que a abordagem foi dentro do parâmetro correto. A polícia vai se tornar cada vez mais eficiente, e vai baixar a letalidade de ambos”.
Em São Paulo, a implantação das câmeras em fardas, do programa ‘Olho Vivo’, é uma das principais responsáveis pela queda de 80% no número de pessoas mortas em supostos confrontos. Os dados foram obtidos pelo UOL e divulgados em julho deste ano.
De acordo com levantamento, entre junho de 2021 e maio deste ano, os 19 batalhões registraram 41 mortes por intervenção policial. Nos 12 meses anteriores ao início do programa, esse número tinha sido de 207.
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, Alagoas registrou 63 mortes por intervenção policial no último ano.
O sociólogo Carlos Martins acredita que, para pensar em mudança, é preciso fazer um paralelo entre ética e medo da punição. Para ele, a ética passa por mudanças na formação do policial, como a desmilitarização, a redução de formação de guerra e o ensinamento de gerenciamento de crise e direitos humanos.
“Na ausência do elemento ético, de fazer o certo porque é certo, esse policial precisa ser monitorado. Esse equipamento [câmera nas fardas] é importantíssimo e precisa ser implantado”.
Mecanismos de defesa
O Cedeca Zumbi dos Palmares é uma entidade sem fins lucrativos com ações que visam construir instrumentos de luta para defesa, garantia e promoção dos direitos humanos. A entidade presta assistência sociojurídica para jovens negros vítimas de violência, e suas famílias.
Membro do Cedeca, o advogado Arthur Lira explica que, com o financiamento que recebem, conseguem acompanhar apenas os casos mais emblemáticos. A exemplo do desaparecimento forçado envolvendo o servente de pedreiro Jonas Seixas, no bairro Jacintinho, no ano de 2020.
“Nós temos muitas atuações. A gente tenta trabalhar no sentido de prevenção. Em 2021, nós provocamos o poder público municipal e estadual para criação de um Plano de Prevenção da Violência”, explica.
O outro lado
O 7Segundos entrou em contato com a assessoria de imprensa da Polícia Militar de Alagoas, com questionamentos sobre o congestionamento de processos na Corregedoria da PM; e possíveis medidas que foram implementadas pela corporação. Não houve resposta até o fechamento da reportagem.
O contato foi feito no último dia 26 de outubro, às 9h42, através de e-mail.
*Nome alterado para preservar a identidade da vítima