O poder do olhar acolhedor na trajetória de empreendedores negros
O que muda realidades no país cujo rendimento é 32% inferior ao de empreendedores brancos?
Quase vinte anos de pedidos de empréstimos negados em bancos, pressão psicológica, o medo de “não chegar lá” e a culpa por ter chegado. Histórias que poderiam ser vividas por qualquer empreendedor negro no Brasil. O país em que o rendimento de empreendedores negros é, em média, um terço inferior ao de empreendedores brancos.
Nos atendimentos da empresa Mirant Gestão Maior, a especialista em treinamento Glória Walker não cobra por hora para clientes pretos. Ela diz que precisa ouvir suas histórias antes de qualquer consultoria. “Quando uma mulher preta se senta na minha frente, e eu sento na frente dela, preciso interagir com o ser humano antes de tudo. Eu não posso culpá-la. Não posso ignorar a bagagem dela. É preciso olhar pelo lado psicológico”.
Para a empresária Yalla Barros, fundadora do salão Afroyalla, além de um acolhimento que entenda a realidade de cada pequeno empresário, o letramento racial, compreensão das relações raciais do país, faz toda diferença.
“Minha vivência como mulher preta não é a mesma de uma branca, dona de salão no Ponta Verde [bairro nobre da capital alagoana]. Ela consegue entrar num banco e pegar um empréstimo. É preciso ter esse entendimento. Como uma trancista lida quando é criticada por fazer tranças em uma pessoa branca? Mexe com o psicológico, principalmente quando ela não tem conhecimento sobre o racismo estrutural, sobre o que é ser empreendedor negro nesse mercado”, afirma.
Glória Walker conta que tenta mudar a relação dos clientes, empresárias negras em sua maioria, com seus empreendimentos. “São mulheres que empreendem desde crianças, às vezes começam ajudando a mãe e não param mais. Há quase uma romantização do trabalho excessivo. Eu as ajudo a desenvolver um plano para que essas empresas funcionem de maneira sustentável, sem que estejam lá 24 horas por dia”.
E muitas vezes quando esses empresários começam a ascender financeiramente precisam lidar com a culpa. “Hoje, o que faço por mim é terapia. Hoje, entendo que a população negra precisa ocupar os espaços, ser referência para crianças que estão vindo”, afirma Yalla.
O sociólogo Carlos Martins explica que há uma transferência de responsabilidade, que isenta a elite brasileira e faz com que a população pobre, historicamente colocada em condições de prejuízo social, se sinta culpada.
“Na maioria das vezes, a população negra não dispõe dos equipamentos necessários para empreender, não está dentro de uma condição social que lhe permita aquisição de conhecimentos necessários na área de gestão, de criação, gerenciamento de empresa. Depois de muito tempo, alguém ali consegue romper a barreira social e se destacar. A maior parte padece nos impedimentos sociais de ascender economicamente”.
De onde vem o prejuízo social da população negra?
Além da ideia e força de vontade
Com sede em uma galeria no bairro da Jatiúca, o AfroYalla nasceu na periferia da cidade há quase 20 anos e hoje é um dos principais salões especializados em trança de Alagoas.
"Muitas vezes, a gente começa a empreender em casa, na casa de clientes, sem nem saber precificar o serviço. A gente olha o preço de um bairro, de outro e coloca o nosso ali no meio. Quando você faz uma consultoria, como eu fiz a do Sebrae, começa a compreender o processo de empreender. Você encontra fornecedores e entende que é bem mais profundo do que só ter uma ideia”, diz Yalla Barros.
É do Sebrae, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) do IBGE, o levantamento que diz que o rendimento médio dos negros donos de negócios é 32% inferior. A mesma pesquisa mostra que esses empresários têm menores empresas e níveis de escolaridade. Além de fornecedor dados, o Sebrae também promove projetos voltados unicamente para pequenos empresários negros.
A analista de negócios de impacto socioambiental do Sebrae Alagoas, Ana Madalena Sandes, enxerga possibilidades de atuação em empreendimentos de ciência e inovação, como é o caso do Sebrae São Paulo com programa exclusivo para startups de empresários negros. Mas também ressalta a importância do trabalho de base. “É olhar para aquele empreendedor que é MEI (Microempreendedor individual) e vive na periferia. Quando você se direciona e fortalece esse segmento do afroempreendedorismo, considerando essa questão da ancestralidade, faz com que esses negócios continuem.”
“É uma troca. A gente se ajuda”
Ana Madalena Sandes contou que era sua prioridade compor uma equipe técnica de pessoas negras no Empreende Afro Alagoas, o projeto do Sebrae que ofertou capacitação e treinamento para empreendedores negros, em 2021. “Cada negócio que chega vemos que são potentes, que têm história por trás, ancestralidade. Quando nasceu o coletivo Nosso Ilê, a gente viu o quanto tem de potencialidade, o quanto pessoas pretas se apoiam dentro de um grupo. A gente está falando de cultura, de um modo de ser, uma história”.
Do programa do Sebrae, nasceu o coletivo Nosso Ilê. O objetivo é trocar ideias, contatos e se unir, como explica a vice-presidente do coletivo, a chefe de cozinha e sócia do restaurante Odara, Ivanilda Luz. “A gente compreende as dores um do outro, na luta contra o racismo. Mas não vivemos só disso, também temos muita alegria e vitórias”.
O impacto dessa compreensão também reflete na contratação. Yalla Barros dá oportunidades para trancistas da periferia. A empresária também entrou no ramo da educação e passou a comercializar curso online de trancista, do básico ao avançado. Duas funcionárias de seu salão saíram de lá. “É uma retratação diante do que eu já vivi. Já perdi de ser contratada em entrevistas de emprego por causa do local onde morava”.
Localizado no bairro da Jatiúca, parte baixa de Maceió, o restaurante Odara também funciona como espaço cultural, espaço para dar visibilidade a artistas negros. Segundo Ivanilda Luz, são exposições, feiras de artesanato, apresentações de dança, música e capoeira. “Ainda queremos fazer muito mais. É uma troca. A gente se ajuda”.