'Perdi meu filho com 8 meses de gestação após ser infectada pelo novo coronavírus'
A cake designer Beatriz Torres Bachot estava com a saúde em perfeitas condições antes de ser infectada pelo novo coronavírus
Comecei a sentir os primeiros sintomas no dia 18 de fevereiro quando estava com 32 semanas de gravidez (8 meses). Eu imaginei que as dores que sentia pelo corpo eram causadas pelas longas horas de trabalho como cake designer.
Mas, em meio à correria do dia a dia, ignorei os sintomas e mantive minha rotina normal preparando bolos de casamento. Até que na madrugada do dia 26 de fevereiro acordei com febre alta, de quase 40 graus, e sem olfato. Meu corpo estava dizendo que havia algo realmente errado comigo.
Eu sabia que precisava investigar a causa dos sintomas, mas tinha dois bolos de casamento encomendados para entregar no dia seguinte e, como gosto de cumprir compromissos, decidi seguir com meu trabalho.
Somente fui buscar ajuda ao anoitecer quando fui a uma consulta médica com o obstetra que estava acompanhando minha gravidez. Ao ouvir minhas queixas, ele solicitou um teste de Covid-19 e outros exames para investigar as possíveis causas.
Neste momento, eu comecei a ficar muito preocupada com a situação. Por isso, liguei para meu plano de saúde para agendar com urgência um teste rápido de Covid-19. Mas fui informada pela operadora que não poderia fazer um teste rápido e deveria marcar o exame em um laboratório credenciado. O resultado ficaria pronto dias depois.
Àquela altura, precisava de respostas rápidas para proteger a minha saúde e a do meu bebê. Foi quando tive a ideia de ir até o hospital público da minha cidade, São Luís do Quitunde, no Alagoas. Ao chegar lá, infelizmente, fui muito mal atendida pela médica de plantão. Além de negar o teste rápido, ela, em tom de deboche, me orientou a buscar um hospital particular ou, então, tentar marcar uma consulta em um posto de saúde.
Enquanto isso, minha febre não dava trégua. Nos dias que se seguiram, tentei conseguir fazer um teste rápido na maternidade do meu plano de saúde e, novamente, no hospital público da minha cidade. Mas não consegui. Tudo o que fizeram por mim foi receitar uma medicação para aliviar os sintomas --e somente depois de minha mãe brigar muito para que me ajudassem.
Quando foi na terça-feira (02.03), voltei à unidade de saúde da minha cidade para conversar com a parteira sobre minha situação. Ela foi uma das únicas profissionais de saúde que me ouviram e entenderam a gravidade da situação. Com sua ajuda, consegui um teste rápido que confirmou a suspeita de Covid-19.
A doença causada pelo novo coronavírus é muito perigosa para mulheres grávidas. Em questão de horas, agravou meu quadro clínico e antecipou o parto do meu bebê, embora eu ainda estivesse no oitavo mês de gestação. Tudo isso aconteceu enquanto eu estava na unidade de saúde da minha cidade, que não tinha condições de realizar o parto.
Mal sabia eu, mas ainda havia um longo e triste caminho a percorrer. Em função da falta de leitos, fiquei cinco horas aguardando uma vaga em um hospital que atendesse gestantes em situação de alto risco. Foi somente por volta das 23h que meu plano de saúde me encaminhou à Maternidade de Santo Antônio, em Maceió. De lá, fui transferida à Maternidade Escola Santa Mônica, onde havia cerca de 15 bebês com Covid-19 isolados na UTI neonatal.
A situação na maternidade era tão grave que as mães estavam impedidas de ver os próprios filhos recém-nascidos. E eu somente descobri isso posteriormente lendo notícias pelo celular.
Nas três unidades de saúde em que fui atendida naquele dia, os médicos ouviram os batimentos cardíacos do meu bebê, mas nenhum deles realizou um ultrassom para verificar o sofrimento fetal. Eu considero isto como um erro fatal, porque meu bebê estava morrendo e nenhum deles conseguiu identificar isso.
A atitude dos médicos da Maternidade Escola Santa Mônica foi a oposta da que deveria ter sido tomada. A equipe seguiu um protocolo para impedir o trabalho de parto apesar de eu estar apresentando sangramento no exame de toque.Quando amanheceu, uma médica veio verificar os batimentos cardíacos do bebê, mas, para minha tristeza, eu e minha mãe já não ouvíamos nada. Àquela altura eu sabia identificar o som do coraçãozinho dele. E estava tudo em silêncio.
A médica, no entanto, disse ter ouvido os batimentos, contrariando a mim e a minha mãe. Nós sabíamos que ela estava errada e, por isso, pedimos um exame de ultrassonografia.Depois de muita briga para que o hospital atendesse nosso pedido, o exame foi feito, mas já era tarde demais. O resultado mostrou que a bolsa amniótica havia secado completamente, causando o óbito do bebê.
Enquanto lidava com a dolorosa morte do meu filho, também lutava pela minha vida, que estava em risco. As minhas plaquetas estavam muito baixas e eu não tinha condições de enfrentar um parto. Mas, ainda assim, a médica decidiu seguir com a cirurgia. Ela tomou essa decisão depois de discutir calorosamente na porta do meu quarto com outros profissionais de saúde. Eu a ouvi dizendo que houve um erro de digitação no meu exame. As plaquetas, segundo ela, estavam em 140 e não em 40, conforme mostrava o teste.
Pouco tempo depois, eu fui levada à sala de cirurgia para o parto. Eu permaneci acordada e vi o momento em que tive uma hemorragia. Houve muita movimentação no centro cirúrgico naquele momento.
Quando a hemorragia foi controlada e o parto chegou ao fim, fui levada ao quarto, onde minha mãe me aguardava. Ela me deu todo o apoio e foi fundamental para que eu tivesse forças.
Foi ela, inclusive, que notou uma mancha roxa estranha na minha barriga no momento em que fui trocar o curativo do parto. Eu aguardei a chegada da médica para perguntar o que era aquilo. Sua resposta, no entanto, foi muito evasiva, apenas disse que era normal.
Mas a mancha somente foi piorando ao longo do tempo sem que a equipe médica tomasse qualquer atitude. Cinco dias depois do parto, minha mãe decidiu entrar em contato com a Secretaria de Saúde de Maceió para tentar obrigar o hospital a investigar qual era o problema. O órgão chegou a intervir na Maternidade e a forçou a realizar um ultrassom. No exame ficou constatado que eu estava com sangue preso no abdome.
O problema, felizmente, foi solucionado com drenagem manual, sem necessidade de me submeter a mais uma cirurgia.
Nos nove dias em que fiquei internada na Maternidade Escola Santa Mônica, ouvi as enfermeiras comentando sobre mães e bebês com Covid-19 que morreram ali. Hoje sei que eu poderia ter sido uma delas.
Quando tive alta, depois de uma transfusão de sangue, resolvi entrar em contato com o laboratório responsável pelos meus exames. Constatei que os médicos mentiram para mim.
Os exames mostram que eu não poderia ter passado por uma cirurgia, poderia ter morrido por estar com poucas plaquetas no sangue. Eu sofri muita negligência em todos os hospitais pelos quais passei, tanto público quanto particular, e isso custou a vida do meu filho.Depois de todo o sofrimento que vivi, eu penso, sim, em buscar reparação na justiça, mas bancar um advogado acaba sendo muito caro e nós não temos condições. O que me conforta é saber que fiz tudo o que pude pelo meu filho.
OUTRO LADO
Procurada por Vogue, a Maternidade Escola Santa Mônica informou não ter recebido nenhuma notificação oficial sobre o caso e, por esta razão, não poderia se manifestar.
“Considerando o fato de o prontuário médico ser um documento sigiloso e as acusações morais e técnicas envolvendo profissionais da unidade, a direção fica impossibilitada de se manifestar sem a prévia notificação de órgãos competentes”, diz a nota.
A maternidade informou ainda que, apesar de ter registrado casos de Covid-19 na UTI neonatal, não ocorreu nenhum óbito materno em decorrência da doença.