80% das mães brasileiras se sentem cansadas com a vida doméstica na pandemia. Entre pais, índice é 48%
Toda essa sobrecarga se reflete no mercado de trabalho, principalmente com o desemprego
Desde março do ano passado, a rotina de Tatiana Dantas de Lima, de 34 anos, começa às sete da manhã e não tem hora para acabar. Mãe solo de Marina, de sete anos, ela se divide entre as aulas online que ministra como professora de Língua Portuguesa e Redação para adolescentes entre 11 e 17 anos e as aulas e tarefas escolares da própria filha. “Eu sento na frente do computador de manhã e só levanto à noite. Tem dias que estou dando aula em um cômodo e Marina está tendo aula no cômodo ao lado”, conta Tatiana por telefone desde Salvador, onde mora com a filha e a mãe. Ela é uma das milhares de mulheres que tiveram uma sobrecarga de trabalho —tanto o remunerado quanto o de cuidado— devido à pandemia de covid-19.
De acordo com uma pesquisa do Atlas Político encomendada pelo EL PAÍS, 74% das mães afirmam que o trabalho doméstico e com os filhos aumentou por conta da suspensão das aulas presenciais, contra 69% dos pais que têm essa mesma percepção. No levantamento, que ouviu 1.425 pessoas em todas as regiões do Brasil ―todos mães e pais com filhos até 12 anos de idade― a maioria absoluta das mães (80%) afirma que sente cansaço pela situação provocada pela crise sanitária, enquanto apenas 48% dos pais dizem o mesmo.
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“Pode ser que haja algum efeito de gênero que faz com que os homens se mostrem mais valentões e não admitam tanto cansaço da mesma forma que as mulheres, mas o fato é que o fechamento das escolas e a suspensão de aulas presenciais aumentou o volume de trabalho doméstico para as mães”, comenta Andrei Roman, diretor do Atlas Político.
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Tatiana se sente afortunada de poder contar com a ajuda da mãe, mas, ainda assim, confessa que tem dias em que sequer tem tempo de lavar o cabelo, ou o faz à noite, antes de dormir. “Se eu morasse sozinha, não sei o que faria, porque eu não dou conta de tudo. E isso que não tem um dia que eu consiga dormir cedo”, desabafa. Quando ela termina de dar aulas, por volta das 19h, ajuda Marina com as tarefas escolares. Quando a criança dorme, Tatiana ainda tem de dar conta de outras obrigações. “É desgastante, sinto enxaqueca... Como durmo pouco, já acordo com dor de cabeça”, conta.
E ainda tem a culpa de não conseguir cumprir com todas as obrigações nem dedicar tanta atenção à filha. “Sempre digo que filha de mãe solo tem uma independência forçada. Durante a pandemia, Marina teve que aprender a tomar banho sozinha, porque eu não tinha mais tempo para ajudá-la”, diz Tatiana. Apesar da sobrecarga, ela está no time das mães que acredita que as escolas devem permanecer fechadas neste momento. De acordo com a pesquisa do Atlas Político, 56% das mulheres com filhos é contra a retomada das aulas presenciais, enquanto 55% dos pais é a favor dessa medida.
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“Acho minha filha bastante madura para a idade dela, mas ainda não o suficiente para ter o cuidado necessário no uso de máscaras, para saber que não pode tocar ou abraçar os coleguinhas... A preocupação que eu teria em mandá-la para a escola agora não compensaria a economia de trabalho em casa”, diz Tatiana.
A pesquisa inédita da consultoria Atlas mostra também que há clara diferença entre os pais quando o assunto é a reabertura das escolas se considerada a renda. Para 88% dos pais que têm renda maior que 10.000 reais mensais não é hora de reabrir as escolas. Para 72% dos pais que ganham entre 2.000 e 3.000 reais, as aulas presenciais deveriam ser retomadas nos colégios. Os números provavelmente refletem um outro fator de desigualdade na pandemia: quem pode e quem não pode fazer home office.
Exaustão mental e desemprego
Os dados do Atlas Político são corroborados por outras pesquisas, como a da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, que mostra que 83,8% das mães de crianças e adolescentes sentiram maior sobrecarga do cuidado dos filhos durante a pandemia. O mesmo levantamento indica que 39% dessas mães apresentaram sintomas de estresse pós-traumático; 26,7% tiveram sintomas de ansiedade e 25% apresentaram sintomas depressivos. Os números constam no e-book Mães na pandemia, publicado pela consultoria Think Eva.
Apesar de os homens terem aumentado sua colaboração em tarefas domésticas durante a pandemia —uma pesquisa do Instituto Datafolha em julho de 2020 mostrou que 56% deles tiveram de se implicar mais nas obrigações de casa— ainda há um desequilíbrio de gênero. “As mulheres ainda realizam 61 horas de trabalho não remunerado por semana. Isso acaba acarretando exaustão mental, depressão e ansiedade”, lembra Amanda Kamancheck, gerente de inovação e responsável pelo Laboratório Mulheres em Tempos de Pandemia na ONG Think Olga. Nas horas extras de trabalho não remunerado está o fato de que, neste período de crise sanitária global, 50% das mulheres passaram a cuidar de alguém, como mostra uma pesquisa do Gênero e Número.
Toda essa sobrecarga se reflete no mercado de trabalho, principalmente com o desemprego: só na América Latina, o número de mulheres fora do mercado saltou de 66 milhões para 83 milhões em 2020, de acordo com dados da ONU, já que a crise econômica agravada pelo coronavírus atingiu principalmente os setores em que a força de trabalho é predominantemente feminina, como varejo, turismo e serviços domésticos.
“Isso mostra como as mães estão sendo absolutamente penalizadas pelo cuidado dos seus filhos. Não há o mesmo impacto na carreira de pais com filhos de zero a 12 anos, por exemplo”, analisa Thaís Fabris, cofundadora da consultoria de comunicação 65/10, que tem feito relatórios sobre a situação das mulheres brasileiras na pandemia. “As mães estão à deriva, muitas perderam o contato próximo com suas redes de apoio e, por mais que os homens estejam colaborando mais, a carga mental ainda é só das mulheres. São elas, e principalmente as mães, que sempre sabem o que fazer e tomam decisões”, acrescenta Fabris.
Tanto ela quanto Amanda Kamancheck citam práticas que devem ser adotadas para amenizar a carga de trabalho e estresse sobre as mães, como a adoção de rotinas flexíveis no âmbito laboral, e lamentam a falta de políticas públicas nesse sentido. “A resposta a esse problema não está refletida na gestão orçamentária e nas políticas de renda e emprego do Governo. O debate ainda está pequeno, o Legislativo não pauta essa questão e também faltam políticas estaduais e municipais em prol dessas mulheres”, comenta Kamancheck.
Para Fabris, a crise global catalisada pela pandemia ainda não foi suficiente para que se entenda que o trabalho de cuidado, realizado essencialmente por mulheres em todo o mundo, é fundamental para a manutenção do sistema capitalista no qual se baseiam a maioria das sociedades. “Estamos falando o tempo todo sobre o futuro após a pandemia, mas não cuidamos minimamente das mulheres que estão tornando possível a construção desse futuro”, conclui.