Professora do Sertão é a segunda índia doutora
Uma palestra no ensino médio, numa escola da cidade de Águas Belas, município do agreste pernambucano, marcou o início de uma trajetória acadêmica dedicada a estudar, valorizar e preservar o Yaathe, língua indígena brasileira do povo Fulni-ô e que ainda é muito usada na convivência entre filhos, pais e avós que pertencem à etnia.
Naquela ocasião, era a professora Januacele da Costa, da Faculdade de Letras (Fale) da Universidade Federal de Alagoas, que falava aos jovens sobre linguística e estudos de línguas indígenas brasileiras. Entre aqueles estudantes, estava Fábia Pereira da Silva ou Fábia Fulni-ô, como se identifica em citações bibliográficas, que agora é docente do Campus do Sertão e, no dia 23 de fevereiro, tornou-se a segunda índia a obter o título de doutora pela Ufal.
De espectadora, ela passou a ser aluna de graduação e pós da Fale, além de parceira da pesquisadora Januacele na realização de estudos indigenistas.“Senti-me atraída para essa área, pois vi a possibilidade de fazer os estudos acadêmicos e, ao mesmo tempo, poder contribuir para a valorização e manutenção da língua que herdamos dos nossos ancestrais, motivo de orgulho da etnia Fulni-ô da qual sou pertencente”, lembra. A docente ressalta que essa é a única língua nativa ainda viva e plenamente funcional no Nordeste do Brasil.
Numa realidade marcada pelo desaparecimento de tantas línguas indígenas e, com elas, todo um arcabouço cultural, os trabalhos acadêmicos de Fábia Fulni-ô abordam aspectos que buscam garantir a preservação do Yaathe, que numa tradução para o português significa nossa fala. A defesa de doutorado dela foi sobre A organização prosódia do Yaathe - a língua dos índios Fulni-ô, no qual estudou a organização prosódica da língua, enfatizando a delimitação da palavra fonológica. “Dos resultados, posso destacar dois pontos importantes: um para a ciência, que é o fato de contribuir para a discussão sobre tipologia linguística; e outro para o ensino da língua, que é a própria definição do que é uma palavra, o que permite um avanço na sistematização da escrita”, explica.
Na graduação, Fulni-ô se dedicou ao sistema fonológico para fornecer subsídios para a escrita. Já no mestrado, estudou a unidade sílaba com a mesma finalidade. “Do ponto de vista científico, fizemos achados importantes para a linguística, como, por exemplo, estrutura silábica diferente do até então documentado nas línguas humanas”, diz.
Sobre a relevância dos estudos realizados acerca do Yaathe, assim como os que são feitos com outras línguas minoritárias, Fulni-ô defende, concordando com a pesquisadora Januacele Costa, que a luta pela revitalização, manutenção e preservação de línguas é uma questão de direitos humanos. “Quando uma língua morre, morrem com ela sistemas inteiros de cultura, de crenças e de conhecimento. A teoria linguística precisa da diversidade para que a ciência possa entender a gama de possibilidades da linguagem humana. Os estudos das muitas línguas indígenas que agora estão ameaçadas de extinção têm fornecido valiosos insights para os diversos campos da linguística”, argumenta.
Como professora, pesquisadora, estudiosa do Yaathe e pertencente ao povo Fulni-ô, ela garante que irá se dedicar a outros aspectos da língua, contribuir com o ensino na comunidade e com a formação de novos pesquisadores. “Irei sempre defender a preservação e a manutenção da nossa língua, esse tesouro de valor inestimável para o meu povo e para a humanidade”, resslatou.
Estudos sobre o Yaathe na Ufal
Atualmente, apenas a Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas vem realizando trabalhos de pesquisa sobre a língua Yaathe.
Nos anos de 2011 a 2013, um grupo de pesquisa formado pelos docentes Januacele da Costa, Miguel Oliveira Júnior e Fábia Fulni-ô, com o auxílio de estudantes de Iniciação Científica (IC), empreendeu o projeto de Documentação da Língua Indígena Brasileira Yaathe (Fulni-ô). Financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, o principal objetivo foi digitalizar os aspectos linguísticos e culturais dos Fulni-ô para torná-los disponíveis para a própria comunidade indígena. “Foi realizada a coleta de uma grande quantidade de dados linguísticos, registrados em áudio e vídeo. Todas as transcrições e anotações já foram arquivadas numa base de dados que garantirá a sua preservação”, destaca Fábia Fulni-ô.
Além da formação de um banco de dados, as informações da pesquisa serviram para subsidiar a elaboração de uma gramática descritiva, de materiais didáticos para serem utilizados apenas pelos falantes do Yaathe e de artigos científicos tendo em vista a formação de novos pesquisadores para o estudo de línguas indígenas.
A professora Fábia justifica que esses trabalhos acadêmicos são feitos no sentido de preservar a língua nativa do povo Fulni-ô, evitando que desapareça, e que não há o propósito de divulgação à comunidade científica ou ao público em geral. “Por ser considerada sagrada, não há o interesse de que pessoas que não fazem parte da comunidade, que não frequentam os rituais hermeticamente fechados a não índios, aprendam a língua Yaathe. Pelo contrário, isso é proibido. O estudo científico da língua, por si só, não garante que quem o leia a possa falar”, esclarece a pesquisadora.
Retorno dos estudos acadêmicos para o povo Fulni-ô
No decorrer dos estudos, a pesquisadora Fábia Fulni-ô foi descobrindo fatos que, além de permitir o estudo da língua, levavam a uma colaboração mais efetiva para a comunidade, como a possibilidade de sistematizar a escrita, auxiliar os professores com relação ao ensino do Yaathe e à produção de materiais didáticos.
Todos os trabalhos empreendidos por ela vêm sendo realizados em parceria com a pesquisadora Januacele da Costa e os professores de Yaathe da Escola Indígena Fulni-ô Marechal Rondon, unidade de ensino da rede estadual de Pernambuco que recebe estudantes do ensino fundamental ao médio, além da educação de jovens e adultos.
Conforme enfatiza a docente, os resultados dos estudos estão incorporados a diversas atividades aplicadas na escola frequentada pelo povo Fulni-ô.
Pioneirismo da Ufal
Foi na Universidade Federal de Alagoas que, pela primeira vez, uma indígena concluiu um doutorado no Brasil. Maria das Dores de Oliveira, da etnia Pankararu, de Pernambuco, recebeu o título de doutora em 2006, tornando a Ufal pioneira em relação à formação de pesquisadores na área de estudos indígenas.
Pankararu foi uma das docentes que fez parte da banca de defesa de doutorado da professora Fábia Fulni-ô, ao lado dos professores doutores da Faculdade de Letras, Aldir Santos e Miguel Oliveira Júnior. A tese teve como orientadores as professoras Januacele da Costa (Fale) e Stella Telles (UFPE).
A etnia Fulni-ô
A terra indígena dos Fulni-ô, autodenominação que significa o que tem rio, está localizada na cidade pernambucana de Águas Belas, próxima à margem esquerda do Rio Ipanema. De acordo com dados da Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai/2012), a etnia apresenta uma população de 4.687 indivíduos.
Fábia Fulni-ô explica que a origem de seu povo é associada ao século 17, na década de 1680, quando foram instaladas duas missões católicas na região de Águas Belas: as aldeias de índios Carapotó e Xocó. A partir de 1758, com a extinção das missões, as aldeias foram agrupadas em vilas.
A aldeia de Águas Belas, sob a denominação Carnijó, reuniu as outras da região que hoje constituem o povo Fulni-ô, denominação atribuída a partir do reconhecimento da etnia no início do século 20.