Brasil

Política e até 15 horas de trabalho fazem voluntários abandonarem Rio-2016

Falta de treinamento e ordens para reprimir manifestações políticas fazem colaboradores deixarem os Jogos

Por UOL 09/08/2016 06h06
Política e até 15 horas de trabalho fazem voluntários abandonarem Rio-2016
- Foto: Reprodução/Facebook

Falta de treinamento, turnos de trabalho exaustivos, má coordenação e ordens para reprimir manifestações políticas. Essa lista está fazendo voluntários desistirem de colaborar com as Olimpíadas. Aqueles que permanecem à disposição da organização revelam uma série de dificuldades.

A crise ganhou notoriedade com o caso do publicitário Luiz Moreira, 26. Ele diz que deixou de colaborar com os Jogos porque seria obrigado a expulsar espectadores que segurassem cartazes contra o presidente interino, Michel Temer. “Nada é mais importante do que a liberdade de expressão”, afirma Moreira.

O publicitário iria trabalhar nas quadras de tênis, mas nem chegou a entrar em ação. Inscrito como voluntário há cinco meses, conta que começou a perder o encanto pela função quando viu as protestos durante a passagem da tocha olímpica por Duque de Caxias (RJ), cidade onde mora. Na ocasião, a Polícia Militar usou bombas de efeito moral e gás de pimenta para dispersar os manifestantes.

As notícias de pessoas expulsas dos locais de competição por exibirem mensagens contra Michel Temer foi a gota d’água. Moreira reclamou que durante o treinamento online não foi informado que teria de desempenhar essa função. A decisão dele virou post no Facebook e houve muita repercussão. Foram mais de 25 mil curtidas, 6,4 mil compartilhamentos e 600 comentários. Ele conta que recebeu centenas mensagens de apoio de pessoas que se sentiram representadas.

Luiz ressaltou que mesmo defensores do presidente interino concordaram com a atitude por enxergar nela uma defesa da liberdade de expressão. Mas o publicitário admitiu que também houve mensagens agressivas discordando de seu posicionamento.

Sobre o fato da lei que coíbe posicionamentos políticos nos locais de competição ter sido sancionada em maio pela presidente afastada, Dilma Rousseff, ele alegou que está havendo um excesso na aplicação. Luis argumentou que o texto trata de mensagens que incitem a violência, racismo e xenofobia. O publicitário declarou que é contra todas essas formas de manifestação, mas entende que um cartaz escrito #foratemer não se enquadra nos itens citados na legislação.

O Comitê Organizador do Rio-2016 manifestou apoio à proibição, mas na segunda-feira a Justiça Federal do Rio de Janeiro aceitou um pedido do MPF (Ministério Público Federal) e proibiu a repressão de manifestações políticas em qualquer evento olímpico.

No despacho, a decisão em caráter liminar do juiz federal substituto João Augusto Carneiro de Araújo, do Tribunal Regional Federal, determinou que a União, o Estado do Rio de Janeiro e o Comitê se "abstenham de reprimir manifestações pacíficas de cunho político em locais oficiais durante a realização dos Jogos Olímpicos de 2016" e fixou multa de "R$ 10 mil por cada ato que viole a presente decisão".

Pouco treinamento e muito trabalho

Mas a lista de reclamações dos voluntários é maior. Morador de São Paulo, Harry Thomas Jr. nem viajou para o Rio quando viu a escala com turnos diários de 10 horas de trabalho. Num dia, ele deveria permanecer 15 horas disponível para organização do Rio-2016. Outra queixa foi saber os detalhes sobre as tarefas que ia desempenhar muito próximo da abertura do evento, o que dificultou arranjar acomodação.

"Desisti de ir como voluntário, já que enviaram minha escala (bateram o martelo mesmo) com 30 dias de antecedência, e assim ficou impossível arrumar lugar para ficar. A escala era todo dia das 8 horas às 18 horas e umas ia até 23 horas. É puxado", afirmou.

Uma voluntária estrangeira que trabalha na Vila dos Atletas foi além e mencionou que mesmo com escalas tão exigentes a organização fornece uma refeição por dia. Ela também protestou contra a falta de treinamento. Declarou que desde a chegada ao Rio de Janeiro não teve um minuto de instrução. “Isso aqui está muito desorganizado”, resume.

A voluntária acrescenta que o fato de os motoristas dos ônibus oficiais não falarem inglês atrapalha. Contou que numa ocasião tentou explicar aonde o veículo deveria estacionar e as orientações não eram compreendidas. O supervisor dela ficou irritado, desceu e seguiu o caminho a passos largos.

Voluntários têm dificuldade para ajudar turistas e reclamam de falta de treino

"Pode me ajudar, por favor?", pergunta um torcedor com pressa no Parque Olímpico da Barra, aflito para assistir a um jogo de handebol.

"Claro, querido. O que você precisa?", responde uma senhora, vestida com o uniforme de voluntários.

A resposta gentil serve como um drible para o que vem pela frente: desinformação.

A conversa se passa em um dos centros de boas vindas, uma espécie de balcão de ajuda. A tenda carrega uma mensagem: "Seja bem vindo. Somos todos informação".

Quem já passou por ali, porém, sabe que é só um slogan. Não só lá. Em Copacabana e em Deodoro, os problemas são os mesmos.

Ao todo, o Comitê Rio-2016 recrutou 50 mil pessoas para trabalharem durante os Jogos. Elas não ganham salários, mas recebem transporte gratuito e vale-alimentação. Para serem escolhidos, passaram por um processo de inscrição e de preparação.

Foram realizados três treinamentos até o início dos Jogos. Porém, os voluntários reclamam de não terem recebido orientação suficiente e estarem sem coordenação, sem saber a quem se reportar.

No caso dos motoristas dos ônibus que fazem o transporte entre arenas, esses sim remunerados, as perguntas respondidas com "não sei" são ainda mais numerosas.

Nos últimos cinco dias, a Folha acompanhou esse trabalho em diferentes pontos do Rio. Em uma das tentativas, procurou saber onde era a arena de badminton.

"Acho que é em Deodoro. Nunca me perguntaram. Mas olha, não vai pra lá. Se eu estiver errada, você vai ficar brava", disse uma voluntária.

O complexo de Deodoro fica a quase 30 quilômetros de distância da Barra.

Disse mais: que poderia ver no sistema, mas que ele não estava funcionando.

"Podemos entrar com mochila nas arenas?", perguntamos. "Fui com minha mochila na abertura e não teve nenhum problema. Imagino que possa aqui também", diz outra voluntária.

No momento em que o ônibus passava próximo ao terminal Alvorada, na Barra, outro voluntário foi abordado. Desta vez por uma turista do Espírito Santo: "O senhor sabe dizer se saem ônibus para Botafogo deste terminal?".

Outra saia justa. O paulista não saiba o que responder. "Qual é esse terminal? Não sei, não sou daqui", disse ele, já com a face corada.

"Preciso tirar um dia de folga para conhecer a cidade. Estou totalmente perdido."

Durante a manhã de domingo (7), a avenida Atlântica, em Copacabana, estava fechada ao público por causa de uma prova de ciclismo.

Ansiosa para pisar na areia, uma turista mineira abordou um grupo de voluntários perto do Forte de Copacabana. Queria saber que horas a prova terminava, assim como se o Arpoador ficava muito longe dali.

Luís, voluntário de Guaíba (RS), não tinha informações sobre o cronograma da prova, tampouco onde ficava a praia, um dos principais cartões-postais do Rio.

"Comecei a trabalhar como voluntário ontem [sábado, 6]. Estou começando a me situar", afirmou.

Ele relatou que abandonou um curso on-line de inglês, oferecido aos voluntários.

"Era muito básico, tipo 'the book is on the table'. Sei pouco e continuei sem aprender nada". Voluntários que dominam o idioma costumam ostentar uma identificação.

Maria, outra voluntária que veio do interior do Rio, disse que sua equipe passou por uma "dinâmica de grupo, com o objetivo de animar os voluntários, mas sem lições sobre provas e a cidade".

A Rio-2016 afirma que faz um trabalho intensivo com voluntários, para que saibam ajudar o público.

DEODORO

No Complexo de Deodoro, os voluntários desconhecem mesmo as modalidades disputadas nas arenas esportivas. Foi assim no Estádio de Deodoro, local de competição das provas de rúgbi de sete.

"Esse aqui é estádio de futebol americano. Tem aquelas traves grades, sabe?", disse o voluntário, fazendo com os braços um formato de "U" para representar o travessão de conversão do rúgbi de sete.

No Centro Olímpico de Tiros, uma voluntária sugeria que os torcedores perguntassem a um agente da Força Nacional sobre onde ficava um setor da arquibancada, das provas de fossa olímpica (tiro ao prato).

As dúvidas e incertezas variam. Mas o argumento de defesa, este é quase sempre o mesmo: "Cheguei hoje".